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Grupos antivacina usam Telegram como terra sem lei

Grupos antivax se refugiam no aplicativo Telegram e negociam comprovantes falsos de vacinação. Canais têm número ilimitado de participantes e são parte de problema maior. MyNews acompanhou fóruns e mostra como movimento anticiência se fortalece com a desinformação

por Julia Melo em 26/11/21 21:25

“Que morram”, diz um comentário num grupo antivacina no Telegram, acompanhado pelo MyNews durante um mês. O desejo expresso de forma violenta faz referência à morte de uma jornalista, defensora da vacinação, que morreu em decorrência de complicações da covid-19. “Gado” é a expressão usada para mencionar apoiadores da vacinação e pessoas que acreditam em evidências científicas.

A reportagem do MyNews acompanhou durante 30 dias, no aplicativo de mensagens Telegram, algumas comunidades que se dedicam a propagar informações antivacina. A liberdade de difusão de informações falsas e a quantidade de pessoas presentes nesses grupos faz refletir sobre o poder das redes sociais.

telegram - grupo antivacina
Participantes de um dos canais acompanhados pelo MyNews ironizam a morte de uma jornalista por covid-19/Imagem: Reprodução/Telegram

No Telegram é permitida a criação de grupos que suportam até 200 mil participantes. Neste formato é possível que todos os membros mandem mensagens para uma conversa compartilhada. Outra possibilidade, usada fortemente por personalidades, influencers e políticos, como o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), é a abertura de um canal, um perfil próprio. Neste caso, o número de pessoas é ilimitado e somente moderadores podem enviar mensagens. As pessoas podem comentar as publicações, mas é criada uma aba em separado para os comentários.

Num dos canais acompanhados pelo MyNews no Telegram são mais de 20.500 pessoas. Chamaremos este canal de C1. Nele, há uma seleção e organização de conteúdos. O que mais vimos no C1 foram publicações de jornais que falam sobre adversidades atribuídas às vacinas. Na maioria das vezes, de veículos que não são confiáveis e sem comprovação científica. Notícias de mortes pela covid em pessoas que tomaram as duas doses também são usadas para legitimar o descrédito aos imunizantes.

A imprensa profissional só é creditada quando noticia problemas com a aprovação das vacinas e entraves com órgãos reguladores. Também é muito comum encontrar publicações de prefeituras e governos estaduais que aprovaram medidas relacionadas à exigência de passaportes da vacina. O canal acompanhado pelo MyNews compartilha os links das postagens e incentiva que seus participantes comentem, nas publicações, desinformação e xingamentos. A estratégia é bombardear as publicações e constranger seus autores até que eles deletem o post. Toda publicação apagada é fortemente celebrada, é mais uma conquista da luta pela “liberdade”.

Um exemplo é um vídeo do prefeito de Florianópolis, Gean Loureiro (DEM), de 17 de novembro, no qual o gestor fala sobre o número de habitantes imunizados e convoca idosos com a segunda dose atrasada a comparecerem aos postos de vacinação.

prefeito de Florianópolis - Gean Loureiro (DEM)
Print de tela de vídeo do prefeito de Florianópolis, Gean Loureiro (DEM), no Instagram, convocando a população a tomar a segunda dose da vacina contra o covid-19 e comentário para que integrantes do canal critiquem a iniciativa/Imagem: Reprodução/Telegram

Instagram, Facebook e YouTube são aliados dos antivacina quando a intenção é atacar iniciativas que promovem a imunização. Mas se tornam vilãs quando moderam conteúdos das contas dos organizadores do canal no Telegram e de pessoas ligadas a eles. Os antivacina mantêm contas de compartilhamento de desinformação sobre imunização no Instagram. Estas contas são constantemente suspensas.

Os imunizantes são chamados de “veneno”, quem os toma, seriam “pacientes em teste”. A dose de reforço é vista como prova de que ela não funciona. O que é falso: a dose de reforço é uma forma de prolongar o êxito da vacinação. A comunidade científica sempre anunciou a possibilidade de doses extras para as vacinas contra a covid. O reforço vacinal é visto como uma manobra do governo e dos fabricantes de vacinas para ganhar dinheiro.

mensagem antivacina
Preocupação dos grupos é crescente em relação à possibilidade da vacina contra covid-19 ser autorizada para crianças. Mensagens falam sobre a necessidade de defender as crianças/Imagem: Reprodução/Telegram

Venda de comprovantes falsos de vacinação acontece livremente

Observamos também um grupo com cerca de 1.200 membros, o chamaremos aqui de GR1. Neste caso, todos podem enviar mensagens, o que torna as postagens bastante caóticas e desorganizadas. Repetem-se as temáticas e ações citadas acima, mas aqui, além de duvidar das vacinas, os participantes falam sobre nova ordem mundial, illuminatis e teorias conspiratórias. Um exemplo: a imagem de um dinossauro que aparece quando um código não é carregado é associada ao indício de uma dominação reptiliana.

No grupo GR1 há também quem anuncie a venda de comprovantes falsos de vacinação. Um documento emitido através do sistema oficial de vacinação, exigido por estabelecimentos comerciais e em vários destinos de viagens, está sendo falsificado e oferecido livremente no grupo.

O anúncio desperta interesse em algumas pessoas, que pedem mais informações. A vendedora explica que falsifica um documento do Ministério da Saúde – que possui um QR Code para atestar a veracidade. Mas a anunciante diz que as fiscalizações “não checam o QR Code”, e por isso, “é fácil e seguro usar a falsificação”.

  • oferta de certificado falso de vacinação em grupo do Telegram

Telegram tem sido alternativa para negacionistas que propagam desinformação após banimentos noutras redes sociais

O Telegram tem sido uma alternativa para quem é banido das redes sociais. No dia 26 de outubro, o caminhoneiro bolsonarista Marcos Antônio Pereira Gomes, o “Zé Trovão”, avisou para os 18.550 inscritos no seu canal do Telegram que iria estourar uma “bomba no Brasil”. A bomba viria a ser a notícia de que ele entregaria à Polícia Federal.

Zé Trovão ficou foragido por dois meses, após o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes decretar prisão por incitação à violência e por atos antidemocráticos – às vésperas do sete de setembro. Desde que foi preso, o conteúdo mais atualizado sobre ele no Telegram data de 2 de novembro. Trata-se de um áudio em que sua esposa fala que ele está bem e sendo “bem tratado” no presídio de Joinville, Santa Catarina.

Outro procurado pela Polícia Federal, banido das redes sociais e que mantém canal na plataforma é o blogueiro bolsonarista Allan dos Santos, com mais de 122.650 inscritos. Ele está foragido da Polícia Federal desde 5 de outubro, mas segue bastante atuante em sua conta no Telegram.

Num único dia o grupo chega a compartilhar cerca de 20 publicações. Allan dos Santos publica suas participações no Pânico, na Jovem Pan, e comenta notícias do Brasil e do mundo. Os ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF), ao ministro Alexandre de Moraes, aos veículos de imprensa brasileiros, à esquerda e às pessoas que ele considera comunistas e socialistas seguem firmes. O blogueiro também pede contribuições para o próprio blog.

Allan dos Santos em depoimento à CPI Mista das FakeNews
Allan dos Santos mantém canal no Telegram com mais de 120 mil inscritos. Considerado foragido pela Polícia Federal, ele faz em média 20 publicações por dia na comunidade/Foto: Roque de Sá/Agência Senado – 5/11/19

O jornalista, pesquisador da área de comunicação e política e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom), Juliano Domingues, comenta o fenômeno: “A adesão a canais alternativos é um comportamento esperado de grupos que se sentem excluídos da mídia corporativa. No caso do ambiente digital, essa adesão é facilitada pelo baixo custo”.

Enquanto essa adesão acontece rapidamente, as autoridades levam tempo para compreender as movimentações. Questionado se o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) está desatento ao risco que o Telegram oferece para as eleições de 2022, Domingues explica que o aplicativo é mais um exemplo de tecnologia que está descompassada com o ritmo real das instituições que têm o papel de regulá-las. “Assim como outros aplicativos, pertence a um universo que não reconhece determinadas regras basilares de instituições tradicionais, incluídas aquelas relacionadas a processos de fiscalização e controle, tão comuns no Judiciário”, analisa.

O Telegram é procurado justamente pela falta de moderação e cresce em ritmo cada vez mais acelerado e difícil de ser compreendido pelas instituições. “É como o cachorro correndo atrás do próprio rabo”, diz Juliano Domingues.

Juliano Domingues - professor e pesquisador
O professor e pesquisador Juliano Domingues analisa o ambiente sem regras das redes sociais/Foto: Rodrigo Lobo

O debate sobre a regulação precisa retornar à pauta

A regulação das redes sociais é uma pauta que ganha destaque desde o escândalo da Cambridge Analytica, revelado em 2018. A empresa norte-americana Cambridge Analytica esteve ligada à campanha de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos em 2016. Ela conseguiu dados pessoais de 50 milhões de usuários do Facebook, ao se aproveitar de grandes lacunas nas políticas de privacidade da rede.

A necessidade de nitidez nas regras das plataformas e de como os algoritmos que as compõem funcionam são reivindicações importantes. E ainda não foram propriamente atendidas. Isso não é somente válido para a proteção de dados pessoais e evitar casos como o da Cambridge Analytica. Também é fundamental para se criar uma cultura de que a internet não é um espaço em que se pode fazer o que quiser.

A ideia da “terra sem lei” no mundo digital é, segundo o doutor em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Ivo Dantas, uma herança da época da popularização da internet nos anos 2000. “A internet cresceu com a promessa de liberdade plena e ampla. Foi vendida como um espaço novo em que você pode fazer o que quiser, mas, na prática, você pode criar conteúdos dentro de uma determinada lei, código de ética”, afirma ele.

Ivo Dantas - professor e pesquisador
Para o pesquisador Ivo Dantas, a ideia de “terra sem lei” no mundo digital é uma herança da época da popularização da internet nos anos 2000/Foto: Arquivo Pessoal

Para Dantas, o Telegram não tem a mesma força do WhatsApp. Nem é o principal problema quando falamos de regulação e das políticas das redes sociais. É, na verdade, um sintoma que a falta de transparência criou. Além das políticas não explicitarem o que não pode ser veiculado, falta deixar nítida a questão da própria moderação. Como ela funciona? Quem ou o quê avalia que um conteúdo não é próprio? Se o ex-presidente Donald Trump foi banido do Twitter, por que outros líderes que compartilham desinformação não são?

João Brant, diretor do Instituto Cultura e Democracia e coordenador do coletivo Desinformante, concorda que o peso do Telegram é muito menor porque, segundo ele, menos pessoas o utilizam em comparação ao WhatsApp. Ele ressalta as especificidades dos aplicativos de mensagens que tornam a regulação mais complexa e ainda mais necessária de ser debatida. “Como a maioria das mensagens, do ponto de vista numérico, é privada, se aplica para o conjunto [das mensagens] regras de proteção de confidencialidade. (…) Isso cria uma bomba: um meio de comunicação de massa majoritariamente anônimo. É a primeira vez que isso acontece na história”, explica Brant.

O coletivo Intervozes tem uma série de publicações que tratam de temas relacionados à regulação das redes, sobre como enfrentar a desinformação e sobre a comunicação como um direito humano.

A solução? Ainda não existe. Mas tanto Ivo Dantas quanto João Brant são unânimes: é uma questão urgente e que precisa de amplo debate. Eles alertam que o vácuo que vai se criando pela falta de atenção ao assunto permite que as plataformas fiquem cada vez mais independentes e criem regras que não são fiscalizadas por mais ninguém.


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