Arquivos Agência Pública - Canal MyNews – Jornalismo Independente https://canalmynews.com.br/post_autor/agencia-publica/ Nosso papel como veículo de jornalismo é ampliar o debate, dar contexto e informação de qualidade para você tomar sempre a melhor decisão. MyNews, jornalismo independente. Wed, 10 May 2023 15:45:49 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Comissão do Senado sobre Yanomami já gastou R$ 690 mil com viagens a Roraima https://canalmynews.com.br/politica/comissao-do-senado-sobre-yanomami-ja-gastou-r-690-mil-com-viagens-a-roraima/ Wed, 10 May 2023 15:30:55 +0000 https://canalmynews.com.br/?p=37581 Senador pró-garimpo foi a Roraima duas vezes em abril e agora vai a cidade do Mato Grosso, onde não há crise yanomami

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Criada à revelia e sob protesto das organizações indígenas, a comissão temporária externa do Senado voltada para a crise humanitária Yanomami já gastou R$ 690 mil em duas viagens realizadas num espaço de duas semanas em abril. A maior parte dos valores (84%) foi paga pelo Senado ao Ministério da Defesa, que cobrou deslocamentos em aeronaves da FAB (Força Aérea Brasileira) e até um almoço servido à comitiva no pelotão do Exército de Surucucu.

Na última quinta-feira (4), a comissão decidiu ir além. Por maioria de votos, os senadores presentes à sessão acolheram um requerimento apresentado pelo presidente do colegiado, Chico Rodrigues (PSB-RR), a fim de realizar uma viagem “na região de Peixoto de Azevedo, Mato Grosso, com o objetivo de avaliar os processos da atividade garimpeira na região, bem como possíveis soluções alternativas e sustentáveis para os garimpeiros”.

Peixoto de Azevedo fica a 1.581 km em linha reta de Boa Vista (RR), capital do Estado no qual se localiza a Terra Indígena Yanomami. A comissão, porém, foi instalada no Senado com o objetivo de acompanhar “a situação dos Yanomami e a saída dos garimpeiros de suas terras”. O senador foi indagado pela Agência Pública na última quinta-feira, por meio de sua assessoria, sobre os gastos da comissão e a necessidade da viagem a Mato Grosso, mas não houve resposta até o fechamento deste texto.

Sessão da comissão temporária externa do Senado voltada para a crise humanitária yanomami. Na imagem é possível ver o presidente e o relator da comissão sentados em uma mesa à frente e outros senadores participantes sentados em bancadas ao fundo

Comissão temporária externa do Senado voltada para a crise humanitária Yanomami já gastou R$ 690 mil em viagens

Foto: Jefferson Rudy/Agência Senado

Os custos das duas viagens foram obtidos pela Pública junto ao Senado e com base num documento de cobrança encaminhado à comissão pelo Ministério da Defesa. Assinado pelo comandante do Exército, o general Tomás Paiva, o ofício diz que a viagem ocorrida entre os dias 12 e 14 de abril custou R$ 358 mil e a de 28 de abril e o almoço, R$ 225 mil. “Solicito as gestões necessárias para a descentralização do valor total de R$ 583 mil, a título de ressarcimento a este Ministério”, escreveu o general.

Em resposta a um pedido de informações, a assessoria do Senado informou à Pública que foram gastos, nas duas viagens, R$ 64 mil com passagens aéreas e R$ 42,2 mil com diárias de servidores do Senado.

O segundo deslocamento foi cumprido por apenas um dos parlamentares da comissão: o próprio presidente, Chico Rodrigues — técnicos do Senado e do Ministério dos Povos Indígenas integraram a comitiva. A quase nula participação dos parlamentares evidencia o descompasso dentro da comissão. Senadores da base do governo, como Eliziane Gama (PSD-MA), Humberto Costa (PT-PE) e Leila Barros (PDT-DF), não participaram das duas viagens. No primeiro deslocamento, ocorrido entre os dias 12 e 14 de abril, participaram apenas Rodrigues, “Dr. Hiran” e Mecias de Jesus (Republicanos-RR), todos parlamentares de Roraima que já deram declarações favoráveis aos garimpeiros e à mineração.

Senador Chico Rodrigues, presidente da Comissão Yanomami, é um homem branco na faixa dos 70 anos, com cabelos e bigode grisalhos. Ele veste terno azul listrado com camisa social azul clara e gravata listrada nas cores azul marinho e dourado

O presidente da comissão Chico Rodrigues (PSB-RR) vai viajar a cidade do Mato Grosso, onde não há crise Yanomami

Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado

Comissão foi orientada pelo Ministério da Saúde a adiar viagem, mas a manteve

A segunda viagem só ocorreu após os senadores da base governista terem deixado de participar da primeira, tendo em vista manifestações contrárias de indígenas e do Ministério da Saúde. Em 12 de abril, um dia antes do embarque dos parlamentares de oposição ao governo Lula de Brasília para Boa Vista, a Urihi Associação Yanomami dirigiu um ofício em caráter de urgência para o senador Chico Rodrigues. A carta alertava sobre “um surto de malária” na região de Surucucu, onde “alguns profissionais de saúde e indígenas foram acometidos”. Era o destino inicial da viagem programada pelo comando da Comissão.

“Neste momento a necessidade é de ampliar esforços com o maior número de profissionais para resolutividade da situação exposta, e que é imprescindível evitar a entrada de equipes que não sejam da saúde para o território, até que se estabilize a situação. Dessa forma, reforçamos que a visita não seja realizada neste momento, em razão da situação de vulnerabilidade dos povos Yanomami da região do Surucucu”, escreveu o presidente da Urihi, Junior Hekurari Yanomami, autor de inúmeras denúncias durante o governo de Jair Bolsonaro que alertavam sobre o genocídio em curso no território indígena.

No dia 11, a chefia de gabinete da presidente da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), Joênia Wapichana, já havia feito um alerta semelhante. A Funai anexou uma mensagem eletrônica recebida do COE (Centro de operações de Emergência) Yanomami, montado em janeiro pelo Ministério da Saúde para enfrentar a crise humanitária. O documento confirmava um “surto de malária no território Yanomami” e falou da “necessidade de ampliar nossos esforços para encaminharmos o maior número de profissionais ao território”. O COE informou que “não aprova essa solicitação” da Comissão do Senado e que “sugerimos os dias 20 a 22 de abril para entrada dos mesmos”, ou seja, os parlamentares.

O COE mencionou de novo uma “dificuldade” nas ações de logística e lembrou que atuava para “evitar o envio de equipes que não sejam de saúde para o território”. Em outras palavras, para o COE, se os senadores queriam de fato contribuir para debelar a crise Yanomami, a melhor decisão naquele momento agudo era não ingressar na terra indígena nem mobilizar meios aéreos que deveriam ser usados pelo pessoal da Saúde. Os senadores Eliziane, Costa e Barros, além de Zenaide Maia (PSD-RN), pediram que a comissão fizesse alterações na viagem e que evitasse entrar na terra indígena.

Mas Chico Rodrigues manteve o deslocamento, com apoio do relator, “Dr. Hiran”. Diferentemente do programado, porém, a comissão não fez visitas a aldeias dentro da terra indígena. Permaneceu em Boa Vista (RR), onde visitou hospitais e a casa de saúde indígena e promoveu reuniões com representantes de órgãos públicos, como a Polícia Federal e o Ministério Público Federal.

Além das viagens, a comissão passa a ser usada para pressionar politicamente autoridades do governo Lula. Só após a posse do novo governo, em janeiro, é que vieram a público as imagens que confirmaram desnutrição grave e causas evitáveis como a diarreia entre crianças e adultos Yanomami, descortinando a tragédia sanitária que se desenrolou ao longo do governo de Jair Bolsonaro em grande parte motivada pela invasão garimpeira. Para o senador Hiran, contudo, a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, é que deve ser “convocada” pela comissão para “prestar esclarecimentos” sobre supostas “acusações públicas direcionadas à população de Roraima e ao governador do Estado”, Antonio Denarium, um apoiador declarado de Bolsonaro. Nenhuma alta autoridade do governo de Jair Bolsonaro apareceu para falar sobre a crise Yanomami sob pressão da Comissão. O ex-presidente da Funai, Marcelo Xavier, por exemplo, foi convidado, mas deixou de comparecer.

Senador Dr.Hiran, relator da Comissão Yanomami, é um homem pardo na faixa dos 50 anos. Ele tem cabelos e barba grisalhas, veste terno cinza, camisa social branca e gravata estampada na cor azul

Senador Dr. Hiran (PP-RR), que visitou o território indígena em abril às custas da comissão, já deu declarações favoráveis ao garimpo

Foto:Jefferson Rudy/Agência SenadoJefferson Rudy/Agência Senado

O senador usa como argumento para a “convocação” uma entrevista coletiva concedida por Sonia Guajajara em Roraima em 1º de maio. Ele escreveu no requerimento que Sonia afirmou que Roraima “tem como principal atividade econômica o garimpo ilegal, e que o Governo Estadual insiste em apoiar a permanência da extração mineral ilícita em terras indígenas”.

A fala de Sonia foi diferente. Em 1º de maio, ela foi indagada por jornalistas sobre leis aprovadas pró-garimpo por Denarium, conforme amplamente noticiado pela imprensa. Segundo a transcrição feita pelo jornal Valor Econômico, Sonia respondeu: “O Estado não pode insistir em permanecer, apoiar ou incentivar a permanência desses garimpeiros no território Yanomami. O Estado não pode ter como principal atividade econômica uma atividade ilícita”. Ou seja, ela disse o que o Estado não poderia fazer.

A ministra teria dito ainda, segundo a transcrição, que “é isso que Roraima precisa entender, que o governador [Antonio Denarium] precisa entender. Ele não pode ficar fomentando a atividade ilícita porque alguém vai pagar por isso. Se ainda há uma conivência de tentar legalizar, ele está incentivando. Esses garimpeiros acreditam que o governador vai poder permitir a permanência deles lá e eles não vão porque tem a Constituição que rege. Estamos aqui com respaldo legal, em nenhum território indígena há permissão para se explorar minério”.

Assista ao Almoço do MyNews com participação do autor da reportagem, Rubens Valente.

selo Publica

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“Nós estamos sozinhos no Vale do Javari”, dizem servidores da Funai https://canalmynews.com.br/brasil/nos-estamos-sozinhos-no-vale-do-javari-dizem-servidores-da-funai/ Sun, 19 Jun 2022 12:31:31 +0000 https://canalmynews.com.br/?p=30164 Funcionários expressam à Agência Pública raiva, frustração e impotência; presidente do órgão indigenista nunca esteve na região mesmo depois do assassinato de colaborador em 2019.

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agência pública

As falas contundentes denotam raiva, frustração, indignação e impotência.

“A Funai está sozinha, estamos sozinhos, abandonados aqui.”

“Nós estamos de mãos amarradas.”

“Hoje o servidor da Funai está com a mão amarrada.”

“Nós estamos sozinhos no Vale do Javari. Só a Funai. Mas a obrigação de proteger esses territórios não é só da Funai.”

“É uma queda vertiginosa de servidores.”

“Temos o poder de apreensão, mas não o de portar arma, numa região onde todo mundo anda armado.”

“O Estado de fato nos abandona completamente aqui.”

Agência Pública colheu declarações de diversos servidores da Funai (Fundação Nacional do Índio) na região de Atalaia do Norte (AM) impactados e emocionados com a confirmação, anunciada pela polícia, do assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips.

O crime destampou uma panela de pressão que vinha crescendo desde o assassinato impune e sem solução do colaborador da Funai Maxciel Pereira, ocorrido em 2019 numa rua da vizinha cidade de Tabatinga (AM). No começo da manhã desta sexta-feira (17), alguns servidores fizeram um protesto-relâmpago na frente do órgão em Atalaia. Ataram suas próprias mãos e pés e colocaram sacolas plásticas na cabeça.

servidores da funai

Servidores da FUNAI protestaram por direito, justiça e proteção aos povos indígenas nesta sexta-feira (17). Foto: José Medeiros/Agência Pública

Os servidores dizem que o atual presidente do órgão, o delegado da Polícia Federal Marcelo Xavier, desde que tomou posse no cargo, há três anos, nunca apareceu na região que concentra o maior número de registros de povos indígenas isolados do mundo e que detém a segunda maior terra indígena em extensão do país, com 8,5 milhões de hectares.

Ao contrário de Xavier, Bruno era muito conhecido na região, tanto por autoridades quanto por moradores comuns, comerciantes e políticos. Ele coordenou, por cerca de cinco anos, os trabalhos da Funai em Atalaia até 2016 e era amigo de praticamente todos os servidores do órgão indigenista na região, para onde voltou em 2021 a fim de auxiliar a Univaja, principal organização dos povos indígenas na região, a realizar o trabalho de organização de equipes de vigilância indígenas. Era uma forma de tentar ocupar os vazios deixados pelo governo federal na repressão aos crimes ambientais.

Falando sob a condição de não ter seus nomes publicados, os servidores desnudam as péssimas condições de trabalho e a falta de apoio institucional, material e político. Pelos relatos fica claro que o atual cenário é devastador e o futuro, sombrio.

A Funai, que chegou à região durante a ditadura militar, no começo dos anos 1970, hoje mantém uma CR (Coordenação Regional) em Atalaia do Norte, que cuida de cinco terras indígenas, e uma FPE (Frente de Proteção Etnoambiental) na Terra Indígena Vale do Javari, que por sua vez é responsável por cinco bases dentro do território, localizadas nos rios Jandiatuba, Quixito, Figueiredo, Coari e Ituí-Itaquaí, a mais antiga e maior base do gênero do país, construída ainda nos anos 1990, logo após a demarcação da terra indígena. A CR está há quase um ano sem um coordenador titular.

A FPE é administrativamente vinculada à coordenação dos índios isolados e de recente contato da direção da Funai, em Brasília. Nos últimos seis anos, a frente nunca teve um coordenador efetivo, só temporários, com exceção de um curto período de três meses.

São territórios imensos – apenas o da terra Vale do Javari é do tamanho de Portugal – e cerca de 14 mil indígenas que vivem em mais de 134 aldeias localizadas ao longo de mais de duas dezenas de calhas de rios, mas a força de trabalho da Funai é irrisória. Na CR de Atalaia há apenas 12 servidores, dos quais apenas cinco são do quadro efetivo.

Para atender 7 mil indígenas de outros quatro territórios fora do Javari, há apenas três servidores.

O auxiliar de indigenismo deveria ser o cargo mais relevante nas atividades das cinco bases que funcionam 365 dias por ano e 24 horas por dia dentro do território Javari voltadas para atividades de monitoramento, controle de embarcações e fiscalização de ilícitos ambientais. Nas cinco unidades, contudo, de um total de dez servidores apenas dois são auxiliares de indigenismo.

“Temos dois auxiliares especializados para cinco bases. Não temos sequer um servidor para cada uma das bases, para se ter ideia do nível da precariedade”, disse um servidor.

Recentemente pressionado por decisão do STF (Supremo Tribunal Federal), o governo federal contratou temporariamente cerca de 85 pessoas para atuar junto às bases como responsáveis por barreiras sanitárias de combate à Covid-19. Contudo, são cargos de baixa remuneração, em sua maioria ocupados por indígenas do próprio Javari. Cerca de 80% dos contratados, dizem os servidores, recebem pouco mais de um salário mínimo mensal. Foram contratações temporárias por seis meses que podem ser prorrogadas por, no máximo, dois anos.

A degradação dos cargos pode ser vista a partir da comparação histórica. Em 2010, quando a Funai realizou um concurso público, 25 auxiliares de indigenismo foram enviados para a FPE do Vale do Javari. Na época, havia apenas duas bases em funcionamento. Daqueles 25 novos servidores, restaram na região apenas dois, e agora dedicados a cinco bases.

“Esse declínio de servidores é inclusive anterior ao governo Bolsonaro, mas agora se aprofundou. Ele está sobretudo relacionado às precárias condições de trabalho dos servidores no Vale do Javari. Não temos plano de carreira, adicional de fronteira, de periculosidade, nada. Isso faz com que servidores cheguem aqui e na primeira oportunidade vão fazer outra coisa da vida. Não querem ficar aqui porque o Estado brasileiro não forneceu as mínimas condições de trabalho”, disse outro funcionário da Funai.

Em 2009, o governo federal realizou uma chamada “reestruturação” da Funai, eliminando as unidades instaladas diretamente nas aldeias e então chamadas de “postos indígenas”. Com a eliminação dos postos, os servidores passaram a atuar mais nas cidades, o que provocou, em uma reação em cadeia, a ida de mais indígenas aos centros urbanos atrás dos serviços oferecidos pela fundação.

“Hoje no Juruá para atendermos 70 aldeias temos apenas quatro pessoas. É uma queda vertiginosa de pessoal, resultado da falta de concurso, da falta de política de recursos humanos, ninguém se interessa para vir para a Amazônia, não há atrativos. Para chegar a uma aldeia, os servidores têm que viajar quatro, cinco dias numa canoa junto com galões de gasolina. Agora estamos proibidos de receber diárias se estamos dormindo dentro de uma terra indígena, como se estivéssemos num hotel do governo.”

O deslocamento dos servidores da Funai por todos esses locais, hoje visados pelas quadrilhas de assaltantes de recursos naturais e de narcotraficantes, é considerada uma atividade de risco, mas nada é feito para amenizá-lo.

“O Javari faz fronteira com o Peru, uma área de grande plantio de drogas. Nosso trabalho é passar por esses locais e não temos nenhuma agência do Estado conosco, Exército, Marinha, Polícia Federal, nada. Ficamos viajando sozinhos nesses locais. Apesar de termos poder de polícia administrativa, por exemplo, temos a capacidade de aprender uma canoa, mas não temos o poder de Polícia Judiciária. Temos o poder de apreensão, mas não o de portar arma, numa região onde todo mundo anda armado.”

O rio Curuçá, um dos principais dentro do território Javari, é invadido frequentemente por pescadores clandestinos e embarcações ligadas às atividades do narcotráfico. A base da Funai no rio fica a apenas uma hora e meia de barco de um pelotão do Exército. Mas isso não garante nada, conforme desabafam os servidores. Os pescadores ilegais estão cada vez mais empoderados e abusados.

“O pelotão do Exército várias vezes foi chamado e eles não vão até nós, alegando que não tem efetivo, que não tem combustível, que é necessária ordem de cima. Também já pedimos que o governo nos dê um efetivo qualificado. Não temos esse treinamento de fiscalizar posse de armas, de deter pessoas. Não temos uma estrutura adequada, só há pouco tempo, três meses, colocamos um sinal de internet. Fazemos várias viagens para lá e vamos com a cara e a coragem. Pois o Estado de fato nos abandona completamente aqui.”

Na Funai em Atalaia do Norte há um cargo importante que está vago desde 27 de maio de 2021. Conforme o regimento interno do órgão, o titular chefe do Segat (Serviço de Gestão Ambiental e Territorial) da CR da Funai tem por atribuição acompanhar as ações de proteção territorial e ambiental de terras indígenas e dos povos em isolamento e de recente contato. O chefe do Segat “poderia exercer o papel de articulação com Ibama, Polícia Federal”, segundo os servidores, para fazer frente “à situação gritante de invasão” da terra indígena. Contudo, a CR indicou um servidor de carreira para ocupar a chefia do Segat mas o comando do órgão rejeitou o nome por “oportunidade e conveniência”. Nenhum servidor foi colocado no lugar.

A Univaja, a principal entidade representativa de povos indígenas do Vale do Javari, tem denunciado a inação da Funai no sentido de conter as invasões. “Por que a Funai aqui não faz nada com essas informações que recebe da Univaja? É que nós estamos sozinhos no Vale do Javari. Só a Funai. E a obrigação de proteger esses territórios não é só da Funai. Crimes ambientais, quem cuida é o Ibama. Mas o Ibama é ausente do Vale. Crimes contra patrimônio da União, é a Polícia Federal. A PF está ausente do Vale. A terra está na região de fronteira, mas o Exército é ausente no Vale. O rio Javari é um rio de águas internacionais, cadê a Marinha? Não ‘fazemos nada’ nesse sentido porque a Funai está sozinha, estamos sozinhos, abandonados aqui. Por isso que não conseguimos fazer nada e temos nossas limitações.”

A Funai tem divulgado notas para defender sua atuação na região. Na mais recente, publicada em seu site na internet nesta semana, ela diz que “realiza ações permanentes e contínuas de monitoramento, fiscalização e vigilância territorial na Terra Indígena Vale do Javari em conjunto com órgãos ambientais e de segurança pública competentes”. Argumenta que “o investimento da Funai em ações de proteção a indígenas isolados e de recente contato chegou a R$ 51,4 milhões entre 2019 e 2021 em diferentes regiões do país, superando em 335% o total investido entre os anos de 2016 e 2018, cujo aporte foi de R$ 11,8 milhões. Os recursos foram empregados principalmente em ações de fiscalização territorial e combate à covid-19 em áreas habitadas por essas populações”.

Os servidores explicam que o grosso desse dinheiro foi utilizado para aquisição de cestas básicas, o que inclusive tem provocado profundas e preocupantes alterações nos hábitos alimentares dos indígenas de recente contato.

Um outro complicador para as atividades da Funai na região tem relação com as falas do presidente Jair Bolsonaro que “enfraquecem o nosso trabalho”, dizem os servidores.

“Da Presidência vem um discurso aberto, público e notório anti-demarcação de terras indígenas, falou que não iria demarcar nada e cumpriu. Também um discurso aberto notoriamente negacionista sobre a destruição da Amazônia. Por fim, um discurso de aproximação com garimpeiros, madeireiros e outras práticas que devastam a Amazônia. Esse governo tem feito esforço para regulamentar garimpo em terra indígena, arrendamento de terra indígena. Tudo isso nos fragiliza. O discurso do presidente se aproxima do dos invasores que estamos combatendo. Esses invasores muitas vezes se sentem protegidos pelo presidente da República.”

Não há uma política de substituição dos servidores, que passam às vezes anos nas mesmas atividades de campo, já normalmente cansativa e estressante na Amazônia, mesmo sob ameaças. Quando um servidor passa a ser alvo de ameaças, nada é feito para retirá-lo do perigo.

“Não há nenhuma política de segurança voltada aos servidores que aqui atuam. Vai chegar uma hora em que, para preservar minha vida, eu vou fechar meus olhos.”

O especial Vale do Javari — terra de conflitos e crime organizado é uma série de reportagens da Agência Pública com apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund (Amazon RJF) em parceria com o Pulitzer Center

*Reportagem originalmente publicada na Agência Pública

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As acusações não reveladas de crimes sexuais de Samuel Klein, fundador da Casas Bahia https://canalmynews.com.br/mais/as-acusacoes-nao-reveladas-de-crimes-sexuais-de-samuel-klein-fundador-da-casas-bahia/ Thu, 15 Apr 2021 23:42:52 +0000 http://localhost/wpcanal/sem-categoria/as-acusacoes-nao-reveladas-de-crimes-sexuais-de-samuel-klein-fundador-da-casas-bahia/ Falecido em 2014, empresário teria mantido, durante décadas, um esquema de aliciamento de crianças e adolescentes para a prática de exploração sexual

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Da Agência Pública

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Uma história de violência sexual na infância marcou para sempre a trajetória de Karina Lopes Carvalhal, hoje com 40 anos. Aos 9, ela soube pelas irmãs que um grande empresário de sua cidade natal, São Caetano do Sul (SP), dava dinheiro e presentes a crianças e adolescentes que fossem à sede da empresa na av. Conde Francisco Matarazzo, número 100. À época com 12 anos, a irmã mais velha de Karina avisou que poderia conseguir um tênis novo se fosse até lá. “Eu não tinha um tênis pra pôr, usava o das minhas irmãs, meus dedos eram todos tortos.” 

Karina subiu até o andar da presidência e esperou até ser chamada ao escritório particular do dono. Ficou surpresa ao ver um senhor, já na casa dos 70 anos. “Minha irmã tinha me dito: ‘Ká, não se assuste porque ele vai te dar um beijinho’. Mas ele me cumprimentou e já passou a mão nos meus peitos. Ele dizia: ‘Ah, que moça bonita. Muito linda’”, relembra, imitando o sotaque polonês do empresário Samuel Klein, fundador da Casas Bahia, uma grande rede do varejo brasileiro. Ela saiu levando consigo uma quantia em dinheiro e um tênis da marca Bical. Era 1989.

“A gente ficava contente que tinha ganhado um tênis. Não tínhamos noção dessa situação de violência”, avalia Karina ao falar com exclusividade à Agência Pública. A possibilidade de conseguir outros bens materiais a fez voltar nas semanas seguintes. “A segunda vez, ele já me levou pro quartinho.” Ela conta que o empresário mantinha um quarto anexo ao seu escritório, onde havia uma cama hospitalar. Era ali, segundo ela, que ocorriam os abusos. 

Karina não teria sido a única a ser aliciada e explorada sexualmente por Samuel Klein. A Pública ouviu mais de 35 fontes, entre mulheres que o acusam de crimes sexuais, advogados e ex-funcionários da Casas Bahia e da família.

A reportagem, que pode ser lida na íntegra no site da Pública, consultou também processos judiciais e inquéritos policiais e teve acesso a documentos, fotos, vídeos de festas com conotação sexual e declarações de próprio punho das denunciantes, além de gravações em áudio que indicam que, ao menos entre o início de 1989 e 2010, Samuel Klein teria sustentado uma rotina de exploração sexual de meninas entre 9 e 17 anos na própria sede da Casas Bahia, em São Caetano do Sul, e em imóveis de sua propriedade situados na Baixada Santista e no município de Angra dos Reis (RJ). 

O empresário teria organizado um esquema de recrutamento e transporte de meninas, com uso de seus helicópteros particulares, até mesmo com a participação de funcionários na organização de festas e orgias, pagas com dinheiro e produtos de suas lojas. 

A partir das denúncias mais recentes envolvendo o filho do patriarca da família Klein, o empresário Saul Klein, investigado pelo Ministério Público do Estado São Paulo (MP-SP) por aliciamento e estupro de dezenas de mulheres, a reportagem foi atrás do passado de Samuel e encontrou histórias semelhantes às práticas descritas pelo MP-SP na investigação sobre seu filho.

Samuel Klein morreu em 2014, deixando uma imagem quase heroica. Nascido na Polônia em 1923, perdeu a família em um campo de concentração. Emigrou para o Brasil na década de 1950, quando começou a vender produtos em uma charrete. Anos mais tarde, fundou a Casas Bahia, hoje parte do conglomerado Via Varejo, com faturamento médio anual de R$ 30 bilhões. 

Mas “o rei do varejo”, como ficou conhecido, foi acusado por diversas mulheres de praticar abusos sexuais e de exploração de crianças e adolescentes. Um desses casos é o de Renata*, que afirma, em processo ao qual a Pública teve acesso, ter sido estuprada pelo empresário quando tinha 16 anos. 

Renata contou à polícia que em outubro de 2008 foi à casa de praia do empresário em Angra dos Reis. “Ele me pegou a força, rasgou minha roupa e me violentou. Não adiantava gritar”, diz um trecho do depoimento. 

Na época, Samuel Klein reconheceu, em depoimento à Polícia Civil de São Paulo, que Renata e sua colega estiveram na casa dele em Angra dos Reis, mas disse que as moças não eram “menores de idade”. Renata não quis dar entrevista. 

A Pública buscou, ao longo dos últimos meses, contato com 26 mulheres que moveram processos judiciais, além de outras que não o processaram. Dez mulheres concederam entrevistas, a maioria pediu para não revelar a identidade por medo de retaliação. Três entrevistadas, porém, concordaram em ter seu nome divulgados.

Abusos ocorriam em imóveis do empresário e na sede da empresa, dizem os relatos

Segundo os relatos, após um primeiro contato, que frequentemente já incluía abusos sexuais, mulheres e meninas eram selecionadas para participar de festas do empresário nas suas propriedades, como os apartamentos em São Paulo, no edifício Universo Palace, em Santos (SP), na Ilha Porchat, em São Vicente (SP), uma casa em frente à praia da Enseada, em Guarujá (SP), além da mansão no Condomínio Porto Bracuhy, em Angra dos Reis.

As adolescentes geralmente eram aliciadas em bairros de baixa renda do entorno de suas propriedades e também vinham de vários estados. Uma das mulheres contou que, ainda adolescente, viajou várias vezes para a mansão e disponibilizou à Pública fotos das viagens. Ela aparece abraçada ao empresário em frente ao helicóptero Agusta A09 Power, pousado em Angra, em 1999. Segundo o registro da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), o helicóptero fotografado havia sido registrado em nome da Casas Bahia em 1998. 

Cláudia* tinha 20 anos quando participou pela primeira vez de um jantar com Samuel na sede da Casas Bahia, em São Caetano do Sul, em 2008. 

“Disseram que eu ia jantar e fazer companhia, carinho nele”, conta. Assim como outras vítimas relataram, o encontro teria ocorrido no andar da presidência da loja, e ela contou que foi orientada a dizer que tinha 17 anos para atender “o estilo de Samuel, que gostava mais de menininha”. “Ele gostava de meninas com o corpo menos evoluído, que era meu caso.”

Testemunhas do suposto esquema

Funcionários da Casas Bahia confirmaram os frequentes pagamentos em dinheiro e produtos às chamadas “samuquetes”, como eram apelidadas as “meninas do Samuel” — depoimentos confirmando a situação constam, inclusive, em condenações na Justiça do Trabalho. 

Josilene*, que foi gerente numa loja da Casas Bahia na Vila Diva, zona leste de São Paulo, entre 2005 e 2008, contou à Pública que tanto Samuel quanto Saul Klein usavam o caixa das lojas como parte dos pagamentos dessas meninas e mulheres. Segundo ela, “as meninas tinham direito de escolher o que elas queriam na loja. Na época, como era menina nova, pegava muito celular, som, televisão”. 

Em 2010, a Casas Bahia foi condenada em diversas ações trabalhistas. Em sete delas, os funcionários alegaram danos morais em razão de situações vexatórias vividas no trabalho. Eles descrevem que frequentemente tinham que pagar mulheres que apareciam nas lojas cobrando dinheiro e mercadoria e que, geralmente, traziam bilhetes com a letra de Samuel ordenando pagamentos. 

“Parece que ele vivia para isso. Ele recebia meninas várias vezes por semana, o mês inteiro”, conta à Pública um segurança que trabalhou para a família Klein por 19 anos. 

Os relatos das mulheres e de alguns ex-funcionários apontam para Lúcia Amélia Inácio, secretária pessoal que trabalhava na sede da Casas Bahia, como uma das principais organizadoras do suposto esquema. Lúcia é citada na biografia autorizada do empresário, escrita por Elias Awad, como “fiel enfermeira e responsável pelo departamento de benefícios” da Casas Bahia. 

No relato das entrevistadas e de ex-funcionários, Lúcia é apontada como a responsável por convidar as meninas escolhidas por Samuel para as viagens, fazer pagamentos e doações de cestas básicas a mulheres e familiares e até participar de algumas das festas promovidas nos imóveis de Samuel. Depois de várias tentativas, a reportagem não conseguiu contato com Lúcia. 

Os depoimentos de ao menos seis mulheres mencionam também Káthia Lemos como uma “aliciadora de meninas” do empresário. Ela aparece em fotos no iate e na piscina da casa de Samuel em Angra dos Reis e em um vídeo de uma festa de aniversário do empresário, que ocorreu em 11 de novembro de 1994 em uma casa em Guarujá. “Eu só posso agradecer especialmente a vocês três [indicando Káthia e outros dois seguranças] por fazer essa festa maravilhosa para 150 amigas minhas”, discursa Samuel na gravação. 

Em conversa com a reportagem, Káthia negou que fizesse agenciamento de mulheres e meninas. Ela disse conhecer “mais de 100 mulheres, de vários estados brasileiros, que frequentavam os encontros” com o empresário, mas nega que houvesse menores de idade. “Algumas mentiam a idade dizendo ter 18 anos para agradá-lo. Era a fantasia dele.” 

As entrevistas sugerem que Samuel aproveitava a situação vulnerável de famílias empobrecidas e se colocava como “benfeitor”, criando uma lógica que, ao misturar abusos e recompensas financeiras, prendia as vítimas ao esquema criminoso.

Itamar Gonçalves, gerente da Childhood, organização que atua na proteção à infância e à adolescência, explica que meninas exploradas sexualmente podem acabar introduzindo outras nos esquemas criminosos. “São estimuladas a trazerem a irmã, parentes, amigas e amigos para aumentar os ganhos”, explica. Nesses casos, as vítimas não podem ser responsabilizadas. “O papel do aliciador é do adulto que está se aproveitando da situação. Infelizmente, porque temos uma Justiça machista, a atuação de um adulto que se beneficia e/ou articula esse tipo de situação é muitas vezes normalizada.”

A pobreza e a vulnerabilidade social são os principais fatores que levam crianças e adolescentes para esquemas de exploração sexual, segundo a socióloga Graça Gadelha, especialista em direitos infantojuvenis. “Existem ainda questões culturais, de contextos sociofamiliares, de situações de abandono — inclusive por parte de políticas públicas. São vários aspectos que confluem para a entrada precoce de meninos e meninas em situações de violência sexual”, analisa.

Discursos morais, preconceitos, machismo e falta de acolhimento silenciam vítimas de violência sexual, que muitas vezes são culpabilizadas enquanto seus agressores seguem impunes, diz Graça. 

Processos não avançam

Na Justiça, nenhum procedimento para a responsabilização de Samuel Klein prosperou. Jorge Alexandre Calazans, advogado que representou quatro vítimas, conta que estabeleceu acordos entre os advogados do empresário e as mulheres que o procuraram. “O acordo foi feito rapidamente, elas receberam o dinheiro e extinguiram o processo de indenização que tinham aberto”, relata. 

Outro advogado ouvido pela reportagem afirmou ter fechado um acordo judicial, com pacto de confidencialidade, com seis mulheres que alegaram abusos de Klein, todas menores de idade na época dos fatos. Já o escritório Aquino Ribeiro Advogados & Associados, localizado em Santos, representou seis casos de mulheres que teriam sido abusadas sexualmente por Klein no final da década de 1990. Os advogados do escritório receberam as denúncias apenas em 2011.

Cinco dos seis casos levados à Justiça pelo escritório tiveram a prescrição reconhecida porque, naquele momento, o prazo prescricional de 20 anos começava a correr a partir da maioridade da vítima. Mas, como o empresário tinha mais de 70 anos quando as mulheres foram em busca de reparação, o tempo para viabilizar o processo caiu pela metade, dez anos. 

“Na cabeça da vítima, ela ainda fica pensando que ela pode ser culpada. Ela leva um tempo achando que a agressão, que o que ela passou, é culpa dela. Era isso que a gente queria: que ao menos tivesse uma perícia, um psicólogo ou psiquiatra que pudesse aferir por quais motivos elas não entraram na época com ação”, argumenta o advogado Antônio Sérgio de Aquino, que representa essas mulheres. Desses casos, apenas um ainda corre na Justiça, que aguarda análise dos recursos pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Além de fotos das adolescentes nas propriedades de Klein e relatos de próprio punho das mulheres, os advogados instruíram os processos com base em um inquérito policial aberto contra Samuel Klein em 2006 — o que mais avançou em termos investigatórios. 

A análise do inquérito traz a história de Bianca*, que relatou ter sido vítima de abusos sexuais e estupros cometidos por Samuel Klein quando tinha 13 anos, em 2001. O caso foi denunciado por ela em abril de 2006 ao Conselho Tutelar de Campina Grande (PB), onde passou a morar com sua mãe. 

Em uma carta escrita de próprio punho, ela relata que o empresário tentava “acariciar” e “forçar de forma horrorizante”. “Estou aqui para denunciá-lo para que isso não venha acontecer com as demais jovens, que passaram e estão passando por isso e não tem coragem de fazer a denúncia, por medo e por constrangimento, igual eu tive”, escreveu. 

Em 2011, o juiz Valdir Ricardo, da 1ª Vara de Justiça de Guarujá, julgou extinta a punibilidade de Samuel Klein no caso de Bianca e determinou o arquivamento do inquérito contra o empresário. 

No caso, há o registro de uma tática recorrente da defesa de Klein: evitar a intimação, até o esgotamento do prazo, para as oitivas, que é o momento em que o ofendido pode ser ouvido no curso do inquérito.

A mesma estratégia foi observada no processo de Francielle Wolff Reis. Aos 14 anos, em 2008, ela foi convidada por uma conhecida para visitar o fundador da Casas Bahia. Conforme o relato, o empresário prometeu dinheiro se ela praticasse sexo com ele, à época com 85 anos.

Por um ano e meio, a menina teria frequentado o escritório de Samuel de duas a três vezes por semana. Em 2013, ela entrou com uma ação de indenização por danos morais contra Samuel. O processo de Francielle patinou por anos e o empresário faleceu sem ao menos ter sido citado pela Justiça. Em 2017, três anos após a morte do “rei do varejo”, uma oficial de justiça conseguiu enfim citar o herdeiro de Samuel, o filho mais velho, Michael Klein. 

A ação ainda tramita na Justiça. Em fevereiro de 2021, a juíza do caso negou a indenização pedida por Francielle. Ela acatou os argumentos da defesa, de que Klein estava acamado desde 2006, estando impossibilitado de praticar os abusos denunciados.

Em março, os advogados de Francielle recorreram. O processo está em vias de ser analisado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.

Samuel Klein foi investigado também em um inquérito aberto em outubro de 2008 na Delegacia de Defesa da Mulher, em Santos. O caso virou uma ação penal que tramitou na 1ª Vara Criminal da cidade, e Samuel foi investigado por crimes previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente. O caso foi arquivado devido à morte do empresário, seis anos mais tarde. 

Outro lado

A reportagem procurou Lúcia Amélia Inácio, apontada como secretária pessoal de Klein na Casas Bahia, que teria sido responsável pelo aliciamento e pagamento de meninas — segundo as denúncias. Buscamos contato em quatro telefones diferentes, na portaria de sua residência e notificando o interesse em ouvi-la. Até a publicação desta reportagem, não recebemos nenhum retorno.  

Também foi procurado o escritório Faria Advogados e Consultores de Empresas, que já representou Samuel Klein quando ele era vivo e no espólio do patriarca, em processos de indenização por danos morais contra o empresário. Por telefone, um dos sócios, João da Costa Faria, afirmou que “não quer falar sobre esses assuntos” e que não representa mais Samuel. 

Em relação ao processo movido por Francielle Wolff Reis, que alega ter sofrido abusos sexuais do empresário quando tinha entre 14 e 15 anos, Faria declarou que “se trata de uma estelionatária, alguém que não tem o que fazer e está desrespeitando a memória do Samuel”. Foram enviadas por e-mail perguntas ao escritório, e a reportagem permaneceu por sete dias à disposição para receber as respostas. Até a publicação, não houve outras manifestações. 

Michael Klein, filho e braço-direito de Samuel Klein na gestão da Casas Bahia até 2010 e acionista majoritário da Via Varejo, também foi procurado. Por meio de sua assessoria, informou que não se manifestará sobre as perguntas da reportagem. 

A Via Varejo, empresa que controla a marca Casas Bahia, respondeu em nota reproduzida integralmente abaixo. 

“Esclarecemos que a família Klein nunca exerceu qualquer papel de controle na Via Varejo, holding constituída em 2011 para gerir as marcas Casas Bahia, Pontofrio, Extra.com.br e Bartira. A holding, que até agosto de 2019 fazia parte do Grupo Pão de Açúcar, é hoje uma corporação independente, sem bloco controlador, como pode ser conferido no link. Dessa forma, não comentamos sobre casos que possam ter ocorrido em período anterior ao da atual gestão da empresa.

A Via Varejo é muito clara em seus valores e princípios de conduta. Repudiamos veementemente todo e qualquer tipo de assédio, práticas ilegais e atos discriminatórios em nossas dependências, incluindo nossa sede administrativa e nossas lojas. Nosso código de ética e conduta, distribuído para todos os nossos colaboradores, é o guia que regula todas as ações da empresa, sendo sua aplicação acompanhada por auditorias independentes.

Somos ainda signatários de diversos acordos e compromissos que oferecem parâmetros institucionais para nossas estratégias de responsabilidade corporativa, como, por exemplo: Princípios de Empoderamento das Mulheres, elaborado pela ONU Mulheres; Coalizão Empresarial de Luta pelo Fim da Violência contra Mulheres e Meninas, liderado pela Avon, ONU Mulheres e Fundação Dom Cabral; Coalizão Empresarial para Equidade Racial e de Gênero, liderado pelo Instituto Ethos, Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT) e Institute for Human Rights and Business (IHRB), com apoio do Movimento Mulher 360 e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).”

Esta reportagem da Agência Pública faz parte do especial “Caso K”.

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