Arquivos Ciro Barros - Canal MyNews – Jornalismo Independente https://canalmynews.com.br/post_autor/ciro-barros/ Nosso papel como veículo de jornalismo é ampliar o debate, dar contexto e informação de qualidade para você tomar sempre a melhor decisão. MyNews, jornalismo independente. Fri, 15 Jul 2022 19:35:39 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Expansão de roçados de coca no Peru aquece busca por mão de obra indígena no Alto Solimões https://canalmynews.com.br/brasil/expansao-de-rocados-de-coca-no-peru-aquece-busca-por-mao-de-obra-indigena-no-alto-solimoes/ Fri, 15 Jul 2022 19:35:39 +0000 https://canalmynews.com.br/?p=31591 Na fronteira com o Brasil, “patrões” enviam barcos para recrutar indígenas brasileiros que vivem nas comunidades à beira do rio

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O mototaxista Genaro apontou a moto vermelha no horizonte de uma comunidade indígena nos arredores de Benjamin Constant (AM). O clima ali era calmo, alheio ao alvoroço da vizinha Atalaia do Norte (AM), que naqueles dias ainda vivia a tensão das buscas pelos então desaparecidos Bruno Pereira e Dom Phillips. Genaro vestia uma calça jeans, um boné para aliviar o sol do meio-dia de verão amazônico e uma camiseta colorida de tecido sintético em tons azulados. Indígena Tikuna, ele concordou em encontrar a reportagem da Agência Pública para contar um drama pessoal: a história do filho preso por narcotráfico na Colômbia. O sobrenome de Genaro foi suprimido para preservar a identidade do filho.

Peru - Amazônia

Genaro, morador de comunidade indígena em Benjamin Constant (AM). Foto: Avener Prado/Agência Pública

Cláudio* foi detido em 9 de abril deste ano na cidade de Puerto Nariño, cidade à beira do rio Amazonas, no lado colombiano, em um trecho em que o rio marca a fronteira da Colômbia com o Peru. A Pública obteve os documentos colombianos que comprovam a prisão do jovem por posse de cocaína — ele atualmente é investigado por tráfico. Após uma audiência de custódia no dia seguinte, o jovem foi levado à prisão na vizinha Leticia, a capital da província colombiana do Amazonas, que faz fronteira com a brasileira Tabatinga. As duas são chamadas de “cidades irmãs” por formarem quase que uma única área urbana encravada na tríplice fronteira entre Peru, Brasil e Colômbia (região conhecida como Trapézio Amazônico).

Antes de ser preso, Cláudio se dedicava a um trabalho cada vez mais comum nas comunidades indígenas da região, tanto no lado brasileiro como nos países vizinhos: a colheita de folhas de coca nos chamados “roçados” do lado peruano para a produção de cocaína. Indígenas, pesquisadores e servidores públicos que acompanham o tema disseram à Pública que os indígenas são recrutados pelos “patrões”, os fazendeiros de coca peruanos, nas comunidades onde vivem.

Peru - Colômbia - brasil

Fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia; região é dominada por roçados de coca. Foto: Avener Prado/Agência Pública

O Peru está a poucas horas de barco das comunidades indígenas de Benjamin Constant e de outros municípios do Alto Solimões. De acordo com os relatos ouvidos pela reportagem, os barcos são enviados pelos patrões na época da colheita de coca para recrutar a mão de obra nas comunidades à beira do rio Solimões. Muitos vão para o município peruano de Islandia, que fica na mesma margem do rio Javari (ou Yavarí, como é chamado no Peru) de Benjamin Constant.

Os indígenas, sobretudo os jovens, são atraídos pelo prometido pagamento em cidades que quase não têm oportunidades de emprego. Os nove municípios do Alto Solimões são marcados pela desigualdade social elevada e baixo desenvolvimento humano, segundo os indicadores do IBGE e do índice de Gini. Das nove cidades, apenas Tabatinga está acima da faixa de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) baixo ou muito baixo, segundo dados do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil. Outro traço local marcante é a concentração de população indígena.

O Alto Solimões possui a maior densidade populacional indígena do país, segundo o último censo do IBGE. São cerca de 65 mil indígenas vivendo na zona urbana dos municípios, de acordo com os dados reunidos pelo Núcleo de Estudos Socioambientais da Amazônia (Nesam), formado por pesquisadores da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Quando se inclui a população residente nas terras indígenas situadas nas áreas rurais dos municípios, o número chega a cerca de 123 mil indígenas de pelo menos 13 grupos étnicos em 35 territórios demarcados e em diferentes estágios do processo de demarcação.

Genaro conta que o filho estava fazendo um curso técnico em enfermagem quando foi convidado por outra jovem indígena, colega de comunidade, a trabalhar nos cultivos peruanos.

“Uma menina chamou ele pra ir pra lá [para os cultivos]. Ficou primeiro um mês lá, aí chegaram sem nada. Depois voltou de novo, aí ficou mais três meses e nunca chegavam. Aí a mãe dele ficou preocupada, eu também. Aí passou mais uma semana e um colega dele falou com a gente que ele estava preso. A gente ficou assustado, a gente não trabalha com isso de droga. Aí perguntei pro menino: ‘Por que ele tá preso?’ [O menino respondeu:] ‘Por causa de droga’”, relembra o mototaxista Tikuna, com uma fala pausada, parando às vezes para olhar para o horizonte.

Genaro ouviu que o filho foi abordado portando cocaína em um “pec pec”, um barco pequeno e de motor lento, junto com outros trabalhadores do cultivo peruano. As circunstâncias da prisão de Cláudio não estão totalmente esclarecidas pelas autoridades colombianas. Uma das hipóteses que circulam entre outros trabalhadores dos cultivos na comunidade é que ele estava atuando como “mula”, nome dado às pessoas que atuam como atravessadores de drogas. É comum, segundo essas fontes, que alguns trabalhadores passem do cultivo à atividade de mula. Para Genaro, porém, importam mais as condições do filho na prisão. Segundo ele, Cláudio foi até hospitalizado em Leticia devido a agressões sofridas na cadeia. “Três dias ele ficou no hospital de Leticia”, diz. Antes de ser transferido ao presídio da cidade, Cláudio estava com outros três brasileiros não indígenas de Tabatinga em uma cela na delegacia de Leticia. A avó de um deles era quem repassava as notícias a Genaro.

Pai de outros três filhos, ele sofre para pagar os mantimentos enviados ao filho em outro país, não tem recursos para contratar advogados e pouco sabe sobre o andamento do processo na Justiça colombiana. “Mototáxi, você sabe. Todo o dinheiro vai só com peça de moto”, diz, reclamando dos buracos das ruas de Benjamin Constant. A última vez que falou com o filho, disse que ele pediu material de artesanato. “Ele quer começar a trabalhar”, disse Genaro à Pública. “Eu fico sem dormir o tempo todo. Pensando… A família fica sofrendo muito”, reflete de modo reticente, pausado.

Peru

Desigualdade e trabalho escasso na região faz com que jovens e adultos se arrisquem no trabalho manual da colheita de coca no Peru. Foto: Avener Prado/Agência Pública

“Perdição dos jovens” 

A reportagem da Pública ouviu, sob a condição de anonimato, outros dois indígenas do Alto Solimões que trabalham em cultivos no Peru há décadas. Apesar de os roçados existirem na fronteira há muito tempo, eles contam que o recrutamento vem se intensificando nos últimos anos — percepção compartilhada por outras pessoas das comunidades e pelas lideranças. “Aqui é muito simples. Estamos na tríplice fronteira. Não tem fiscalização, não tem segurança na fronteira, não tem. As pessoas chegam aqui pelo rio Javari, a maioria são os peruanos que vêm de lá. Chegam com drogas, com armas e ninguém revista”, afirma o cacique Isaque Almeida Bastos, liderança da comunidade Filadélfia, em Benjamin Constant (AM), desde 2019. “É ruim porque acaba trazendo esse prejuízo da perdição dos jovens”, avalia, referindo-se ao trabalho nos roçados de coca. O cacique lamenta que o trabalho nos cultivos de coca esteja se tornando, na avaliação dele, mais presente para a juventude.

Alguns dados disponíveis sugerem que a percepção está correta. Segundo dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês), somente entre 2015 e 2017 houve um aumento de 24% nas áreas de cultivo de folhas de coca no Peru, que passaram de 40,3 mil hectares para 49,9 mil hectares. O aumento ocorreu com maior intensidade na região de Bajo Amazonas, na província de Loreto, onde está localizada a fronteira com a Colômbia e o Brasil. Os cultivos de coca nessa região aumentaram 41%, superando a média nacional, entre 2016 e 2017, e a área plantada foi de 1.292 hectares para 1.823 hectares. A principal rota de destino da coca produzida na região é o rio Amazonas, passando por Leticia e indo em direção ao Brasil. Além do Amazonas, os rios peruanos Ucayali e Yavarí também são canais de escoamento não só da droga produzida na fronteira, mas também em outras partes do país, de acordo com o documento do UNODC.

A cocaína produzida no Bajo Amazonas (e no Peru de maneira geral) não se destina em sua maioria ao consumo interno peruano, que é um dos mais baixos da América Latina e representa menos da metade do brasileiro em termos da taxa de consumo pela população, segundo dados de 2019 da Comissão Interamericana para o Controle de Drogas (Cicad). Além de abastecer o imenso mercado consumidor do Brasil, o segundo maior do mundo de acordo com estudo da Unifesp, a droga tem como um de seus principais destinos a Europa. A própria UNODC aponta que o Brasil já é a “principal via de transporte de cocaína para a Europa”.

Os rios que atravessam o Trapézio Amazônico deságuam em áreas portuárias cada vez mais importantes na logística de exportação de drogas na Amazônia, como a região metropolitana de Manaus e a cidade de Santarém. “O Peru hoje é o grande produtor de cocaína na tríplice fronteira”, afirma o chefe da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) da Polícia Federal (PF) no Amazonas, o delegado Victor Mota. “A maior parte da cocaína que entrava no Brasil era de origem boliviana antes e agora é de origem peruana. A gente verifica isso nos dados da Polícia Federal, de cocaína apreendida no Brasil. A maior parte da cocaína tem origem no Peru nos últimos quatro, cinco anos”, afirma o doutor em geografia e pesquisador da Universidade do Estado do Pará (Uepa) Aiala Colares Couto.

Trabalhadores do roçado

“De uns anos pra cá, tem muito mais roçado na fronteira”, afirma José*, um indígena Tikuna também residente em uma das comunidades visitadas pela Pública. Ele fala com a experiência de quem há 13 anos se dedica aos trabalhos nos roçados de coca, segundo ele, o melhor trabalho que conseguiu até hoje. O primeiro contato se deu quando tinha 18 anos. Hoje, José tem 31. Ele conta que havia abandonado os estudos na época de seu primeiro contato e não tinha opções de trabalho. Resolveu entrar em um dos barcos peruanos que atracaram em sua comunidade e passar sua primeira temporada nos roçados.

José diz que estranhou os seguranças armados, que ele viu às dezenas em algumas das fazendas, mas destaca que as condições de trabalho foram as melhores que já encontrou. “Aqui não tem trabalho. Lá, eu ganho pelo menos R$ 60 a diária. Os patrões dão alojamento, alimentação, dão tudo. Quando você termina [o trabalho em] uma roça, você pode ir para outra, e aí vai ganhando mais. Lá no Peru mesmo eles chamam. Se você quiser ir embora, é só falar que eles levam”, relata.

Ele diz que o máximo que já ganhou na cidade foi descarregando barcos em um dos portos locais, o que lhe rendia R$ 400 mensais. Recolhendo folhas de coca nas roças para ajudar a fazer a pasta base nos laboratórios das fazendas, já ganhou R$ 4 mil em uma semana. Na ocasião, José conta que levou outros indígenas à fazenda e recebeu uma remuneração extra por cada trabalhador. Diz que, apesar da presença ostensiva dos sicários dos patrões, sempre com armas longas como fuzis e metralhadoras, nunca testemunhou nenhuma situação de violência. Mas conta que já ouviu falar de trabalhadores mortos por tentarem roubar pasta base das fazendas e sobre invasões armadas de fazendas por traficantes rivais. Apesar de ser sua maior fonte de renda, José diz que não consegue viver só do que ganha nos cultivos. “Eu tenho que fazer um monte de bico por aí. De pedreiro, de um monte de coisa.”

Juan* é um Tikuna peruano que cruzou a fronteira para o Brasil quando se apaixonou por uma indígena Tikuna brasileira 27 anos atrás. Ele contou à reportagem da Pública que trabalhou pela primeira vez nos cultivos de coca ainda criança, aos 10 anos, quando ainda vivia no Peru. Já na casa dos 40, acumula mais de três décadas de experiência nos cultivos de coca e levou os filhos para a atividade.

“Lá é tranquilo, bom para trabalhar. Não é perigoso. É só você trabalhar e ir embora”, diz em um português ainda com muito sotaque. Diz que, em geral, recebe os mesmos R$ 60 por dia trabalhando nos cultivos, que ganha R$ 1,50 por quilo de folha e consegue juntar até 40 quilos em um dia bom de trabalho. As folhas são entregues aos outros funcionários dos patrões, que trabalham com a pasta base, em laboratórios no meio da mata. O máximo que já ganhou, emendando trabalhos nos roçados, foi R$ 5 mil. Ele diz que já ouviu muitas histórias de trabalhadores brasileiros assassinados por roubarem os patrões. “Eles preferem os indígenas porque eles não roubam”, afirma.

Pública foi à PF em Tabatinga tentar repercutir com as autoridades o assédio do narcotráfico nas comunidades indígenas no Alto Solimões. Com o efetivo mobilizado pela investigação do assassinato de Dom Phillips e Bruno Pereira, só havia um delegado na sede da PF, Wesley Urzêda, que acabara de retornar das diligências em Atalaia do Norte. Ele disse à reportagem que não poderia entrar em detalhes sobre a questão específica do trabalho indígena nos cultivos por serem “informações sensíveis”, mas que há denúncias que chegam sobre o tema, muitas vezes sem “muitos elementos” e que não justificariam diligências.

Urzêda falou sobre o desafio da PF de policiar a área do Trapézio Amazônico, onde a droga é escoada pela maior bacia hidrográfica do mundo, sobretudo na cheia dos rios, quando os “furos” (cursos d’água menores) criam uma imensidão de rotas para os barcos do tráfico. “Os países vizinhos ao Brasil produzem a cocaína que é vendida no mundo. Uma grande parte dela é escoada por meios fluviais. A fiscalização da PF ocorre em pontos específicos, frequentemente ocorrem as apreensões”, disse à reportagem.

Servidores da Funai ouvidos pela Pública sob anonimato por temerem represálias internas no órgão disseram ter conhecimento do assédio do narcotráfico às áreas indígenas. “Quando tem alguma denúncia, ela é encaminhada para a [Polícia] Federal. Mas a Funai não tem poder de polícia, não tem gente… Geralmente, ela só encaminha para a PF, o MPF [Ministério Público Federal]”, diz um servidor. “A PF também são poucos servidores. Essa questão indígena eles nunca se ativeram muito, deixam rolar. Sempre mudam os delegados também. Mas desde que eu cheguei tem muito essa questão. Muitos indígenas são usados como ‘mulas’ do tráfico, muitos vão para os cultivos. E vem aumentando bastante o problema do narcotráfico, com a chegada das facções. Isso tem rolado muito. É um problema nos três países da fronteira”, afirma.

“Hoje o problema é a droga”, diz coordenador de guarda indígena em Tabatinga

Era uma noite de sábado a comunidade indígena Umuriaçu II, nos arredores de Tabatinga, estava em festa pelos 50 anos de fundação da Missão da Ordem Cruzada, Católica, Apostólica e Evangélica (mais conhecida como Irmandade Santa Cruz) quando a reportagem da Pública chegou. Seguindo pela estrada de terra, surge uma casinha amarela, a base da Segurança Comunitária Indígena da comunidade. Quando o táxi se aproxima, é possível ver um grupo de indígenas fardados. A Segurança Comunitária Indígena é uma organização criada pelos indígenas de Umuriaçu II para suprir a demanda por segurança. “Aqui não tem Polícia Militar, Polícia Federal, Funai. A gente ficou cansado. A gente mesmo resolveu fazer a nossa segurança”, conta o segundo coordenador da segurança comunitária, Cristóvão Pinto.

Os guardas indígenas vestem camisetas verde-escuras, calças e coturnos pretos. Alguns portam cassetetes pretos de madeira maciça. Quase todos possuem lanternas e ostentam no fardamento a onça-d’água, o animal símbolo da Segurança Comunitária Indígena. A base da segurança possui uma cela, e os indígenas mostraram à Pública seus registros de ocorrência — os casos mais recentes eram de violência doméstica, furtos e uso de drogas. A guarda indígena se sustenta com contribuições da comunidade e os membros fazem o serviço de patrulhamento voluntariamente. De forma periódica, principalmente de quinta a domingo, a guarda indígena anda pela comunidade em rondas para garantir a segurança local. Quando encontram algo, eles avisam a Polícia Militar pelo rádio e, por vezes, detêm os suspeitos na base. A reportagem acompanhou uma das rondas in loco, com um grupo de cerca de 20 guardas.

A Segurança Comunitária Indígena é uma reencarnação da Polícia Indígena do Alto Solimões (Piasol), instituição criada nos anos 2000, para defender territórios indígenas do Alto Solimões. Há registros de atuação da Piasol em ao menos nove comunidades indígenas da região. Segundo as lideranças da comunidade e os membros da guarda indígena, ela foi criada em resposta ao cansaço com o jogo de empurra das autoridades: o vai e vem de denúncias dos indígenas entre órgãos do Estado e a falta de ações concretas para garantir a segurança no território pela Funai e pelas polícias Federal e Militar. “Durante anos, nós pedimos uma base da Polícia Federal ou da Polícia Militar aqui dentro. Nunca tivemos resposta”, relata o vice-cacique e ex-vereador por Tabatinga Manoel Nery. A polícia indígena foi alvo de inquéritos da PF, que a acusou em 2009 de abrigar uma milícia privada, e acabou desativada por determinação do MPF em 2011.

Após ser recriada, em 2017, os indígenas passaram a atuar em parceria com a Polícia Militar, mas contam que encontraram, após a refundação, um cenário diferente em relação à violência. Cristóvão Pinto diz que no início da guarda a preocupação maior eram as brigas entre os jovens das comunidades Umuriaçu I e II. “Esse problema terminou. Agora o problema é a droga”, relata, referindo-se tanto ao consumo de drogas quanto ao aliciamento da juventude pelo narcotráfico. “Tem pessoal daqui mesmo que vende droga. Chegam denúncias pra gente de jovens que compram droga em Tabatinga e vendem para outros jovens daqui”, diz. Ele puxa pela memória ocorrências de apreensões com dezenas de papelotes de cocaína dentro da comunidade.

“A gente sabe que tem gente da cidade [Tabatinga] que manda eles venderem aqui dentro”, diz o cacique Rokeson Cruz. Ele e os membros da guarda afirmam que foram ameaçados após apreenderem fuzis e metralhadoras na casa de um morador da comunidade em 2017, ano de recriação da guarda indígena.

Também foi em 2017 que o Amazonas viveu o massacre no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), quando 56 pessoas morreram após uma rebelião no presídio de Manaus. Uma das motivações do massacre seria a disputa entre a Família do Norte (FDN) e o PCC pelo narcotráfico no Trapézio Amazônico. Há uma disputa entre as facções criminosas do país pelo controle da passagem de drogas na fronteira que fez aumentar significativamente a violência na região. Entre 2019 e 2021, os homicídios aumentaram 1.600% em Tabatinga, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do Amazonas. Enquanto a Pública esteve na região, Afonso Celso Caldas de Lima, o “Celsinho da Compensa”, foi executado em um restaurante em Leticia. Celsinho foi denunciado na Operação La Muralla, da PF, como um dos responsáveis pelo escoamento de drogas da FDN na tríplice fronteira.

Nas comunidades indígenas visitadas pela Pública, é comum ver pichações nas paredes com referências a facções criminosas com presença local como o Comando Vermelho e Os Crias. Há indícios de que, além dos cultivos, já existam indígenas faccionados no Brasil e nos outros países da fronteira, segundo fontes ligadas à área de segurança ouvidos pela reportagem, mas ainda não há clareza sobre que papéis ocupam na hierarquia do crime organizado.

O professor da UEA e coordenador do Nesam, Pedro Rapozo, aponta o contraste entre a desorganização do Estado e a articulação das organizações criminosas. “Você vê uma ausência de fiscalização e monitoramento nessas áreas, que deixam esses territórios vulneráveis. Na medida em que há essa ausência do Estado, você vê, por outro lado, organizações de agentes ilegais que manejam redes de contato e comunicação inclusive com os próprios indígenas, agenciando e aliciando parte das famílias e populações que não têm uma outra perspectiva e que são desassistidas pelo governo”, avalia. “Não se trata simplesmente de criminalizar essas pessoas que estão envolvidas nas redes do narcotráfico e dos mercados ilegais. A questão é muito maior que isso: está na ausência de oportunidades e de políticas governamentais que possam assistir e possibilitar geração de renda para a sociedade local”, pontua.

Rapozo aponta a contradição do que vem chamando, em seus trabalhos, de “ausência presente” do Estado. “Aqui você tem Polícia Federal, Ministério Público, Funai, Forças Armadas, mas a capilaridade dessas instituições não é tão efetiva. Elas não chegam até onde deveriam chegar”, critica.

O especial Vale do Javari — terra de conflitos e crime organizado é uma série de reportagens da Agência Pública com apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund (Amazon RJF) em parceria com o Pulitzer Center

 

Reportagem originalmente publicada na Agência Pública

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Família de Maxciel fez investigação própria do caso mas nunca recebeu resposta da PF https://canalmynews.com.br/brasil/familia-de-maxciel-pereira-fez-investigacao-propria-do-caso/ Wed, 22 Jun 2022 18:29:34 +0000 https://canalmynews.com.br/?p=30467 Parentes criticam investigação do homicídio do ex-servidor da Funai e esperam elucidação do caso após a repercussão do assassinato de Bruno e Dom.

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selo agência pública

Cansado de meses de silêncio da Polícia Federal, um familiar do indigenista Maxciel Pereira dos Santos, ex-servidor da Funai assassinado a tiros aos 35 anos na cidade de Tabatinga (AM) em setembro de 2019, resolveu ir a campo tentar colher informações sobre os mandantes e executores do crime. No ano de 2020, Pedro* rodou Tabatinga e os municípios vizinhos para tentar levantar alguma informação do homicídio.

maxciel pereira

Assassinato do indigenista Maxciel Pereira dos Santos, em setembro de 2019, segue impune. Foto: Avener Prado/Agência Pública

 

“Cheguei na Federal várias vezes e vi que não ia ter solução ali”, contou o parente em entrevista à Agência Pública. “Primeiro porque não teve perícia nem nada. Nós recebemos o corpo do Maxciel do jeito que chegou da rua. Nós tivemos que limpar. Já pensou a família ter que fazer isso? Era pra ir pro IML, fazer exame de balística, fazer exame criminal pra poder criar uma peça incriminatória. Se você ler a perícia que fizeram do corpo do Maxciel você não vai acreditar”, relata. Segundo ele, a perícia era muito vaga na descrição das lesões que causaram a morte do indigenista.

“Aí eu pensei: ‘o que eu vou fazer para ajudar no caso?”, afirma Pedro. Ele começou seus trabalhos visitando o Ministério Público Federal em Tabatinga, depois foi às polícias Federal e Civil na cidade em que Max morreu. Na sequência, partiu para Atalaia do Norte (AM), município mais próximo da base da Funai onde o ex-servidor trabalhava, ouviu e gravou conversas com comerciantes, taxistas, pescadores, indígenas e colegas de Funai de Maxciel. “Aí foi que eu ouvi sobre as ameaças que ele recebia, inclusive dentro de prédios da Funai”, disse.

Pedro ouviu sobre possíveis mandantes e executores do crime e entregou o material à PF. A resposta foi uma reprimenda. “Disseram para eu não me arriscar e deixar o trabalho de investigação para eles”, afirmou. Ele diz que consentiu com a orientação dos policiais federais, entregou a eles o material que produziu há aproximadamente dois anos, mas desde então não recebeu mais informações sobre o caso. Telefonou e foi à Polícia Federal várias vezes, mas só recebeu respostas protocolares.

Karina*, outra familiar, diz que ouviu de pessoas na cidade nomes dos dois executores que o balearam na Avenida da Amizade. Soube depois que os dois teriam sido mortos, mas a polícia nunca confirmou a informação. O inquérito permanece em sigilo. A PF não respondeu aos pedidos feitos pela Pública para comentar as investigações.

Filhas de Max viviam da renda dele e aparentam ter traumas psicológicos, dizem familiares

Desde então, restou a Pedro e aos demais familiares lidar com a dor. Ele conta que deu um emprego a uma das filhas de Maxciel, mas que a jovem não conseguiu seguir no serviço pois ela não conseguia se concentrar no trabalho. “Ela trabalhou comigo um tempo, mas eu tinha a impressão que ela era meio desligada, sempre falava no pai dela. Tocava no assunto. Inclusive eu até disse para ela: ‘olha, infelizmente ele não volta mais. Tem que seguir a vida, trabalhar’. Mas ela ficou meio desnorteada”, diz.

Karina diz que a única renda das filhas de Maxciel vinha da remuneração dele na Funai. “Elas ficaram sem renda nenhuma. Elas precisam de um apoio psicológico, precisam de um apoio financeiro”, diz.

Também a viúva de Maxiel, falou à Pública e disse que não recebeu informações sobre investigação por parte da Polícia Federal.

Mariana*, outra parente de Maxciel ouvida pela Pública, disse que não queria que o ex-servidor ficasse nas bases da Funai próximas à Terra Indígena Vale do Javari. “Ele gostava daquela área, daquela mata, daquela base. Ele gostava do trabalho dele, só que eu não queria que ele ficasse ali. Chamava ele muitas vezes para ele vir embora de lá”, relembra.

Aras pediu informações e cobrou soluções do caso de Maxciel em contato com a PF

Agência Pública apurou que o Procurador Geral da República, Augusto Aras, pediu informações e cobrou a elucidação da investigação relativa à morte de Maxciel Pereira dos Santos durante reunião realizada na visita do PGR a Tabatinga no último domingo. Aras conversou pessoalmente com um dos delegados da PF, mas que não é o responsável pelas investigações do caso de Maxciel.

Com a repercussão internacional do assassinato de Bruno e Dom, os familiares de Max esperam, enfim, uma solução para o inquérito do ente querido, que já dura quase três anos. “Se tivesse sido feito a tempo um trabalho em cima do caso do Maxciel, de investigação e elucidação, eu acredito que Bruno e Dom não estariam mortos hoje”, avalia Pedro.

 

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Polícia diz ter encontrado a embarcação de Bruno Pereira e Dom Phillips https://canalmynews.com.br/brasil/policia-diz-ter-encontrado-a-embarcacao-de-bruno-pereira-e-dom-phillips/ Mon, 20 Jun 2022 14:55:52 +0000 https://canalmynews.com.br/?p=30278 Procurador-Geral da República, Augusto Aras, fez primeira visita à região e ouviu críticas sobre a ‘atuação tímida’ do Estado contra o crime.

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selo agência pública

A primeira visita de Augusto Aras como Procurador-Geral da República a Tabatinga (AM) durou menos de doze horas. Aras desembarcou na manhã deste domingo, 19 de junho, na cidade do oeste amazonense na sede do 8º Batalhão de Infantaria de Selva do Exército Brasileiro, fez um sobrevoo em Atalaia do Norte (AM) e depois seguiu para a sede da Procuradoria da República em Tabatinga. Lá, fez uma série de reuniões com membros da Polícia Federal, do Ministério Público Estadual, da Secretaria de Segurança Pública e da Procuradoria Geral da Justiça do Amazonas e de uma comissão de lideranças indígenas da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari). No fim da tarde, seguiu para Manaus, onde realizará novos encontros com órgãos estaduais.

Também neste domingo, a embarcação de Bruno Pereira e Dom Phillips foi encontrada no Amazonas, diz Polícia Civil. A embarcação foi localizada pela Marinha na altura da comunidade Cachoeira, no leito do rio Itaquaí. As imagens a seguir foram obtidas pela nossa reportagem no Vale do Javari.

LEIA TAMBÉM: PF tem mais 5 suspeitos de participar da morte de Dom e Bruno Pereira

Univaja cobrou Aras

“Nós reiteramos todas as denúncias que nós já fizemos ao Ministério Público agora na figura do doutor Aras. Isso vai servir para que a gente restabeleça a ordem daquilo que já foi apresentado e que a gente possa apurar eventual responsabilidade por omissão em caso de não atuação das autoridades”, declarou o procurador jurídico da Univaja, Eliézio Marubo.

Eliézio lembrou Aras das inúmeras denúncias formuladas ao Ministério Público Federal cobrando a atuação das instituições no Vale do Javari. “Fizemos inúmeras denúncias, centenas até. E nunca tivemos resposta. Pelo contrário, soubemos semana passada pela imprensa que havia sido instaurado o primeiro processo de uma das denúncias que fizemos no ano de 2021”, contou. “As acusações têm sido muito pouco diligenciadas nesse ponto. É importante que as autoridades de fato assumam sua responsabilidade, sobretudo a autoridade de investigação. Eles têm uma atuação muito tímida”, classificou.

Marubo também disse ter cobrado de Aras o fortalecimento dos órgãos socioambientais como a Funai. “O Estado é ausente no Vale do Javari. É necessário que as instituições se façam presentes principalmente a partir desse fato que ocorreu agora [o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips]. Queremos o fortalecimento da Funai e as forças de segurança mais próximas da nossa comunidade”, disse.

Aras anuncia 30 novos ofícios do MPF na Amazônia

Após as reuniões, Augusto Aras fez um pronunciamento e concedeu entrevista coletiva ao lado de Eliana Torelly, coordenadora da 6ª Câmara do Ministério Público Federal, voltada aos direitos das Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais, da procuradora da República em Tabatinga, Nathalia di Santo, e do promotor de Justiça de Atalaia do Norte, Helanderson Lima.

Aras anunciou que criará 30 novos ofícios do Ministério Público Federal para a região da Amazônia. “Teremos mais trinta procuradores trabalhando em toda a Amazônia, em contexto de exclusividade. Dez deles atuarão com exclusividade em matéria ambiental e indígena”, disse o PGR.

“Tomamos conhecimento através da Univaja do encaminhamento de ofícios não só ao Ministério Público Federal, mas também à Polícia Federal e a outros órgãos. No plano do Ministério Público Federal, foram feitas as comunicações de estilo. Ocorre que nós temos um problema estrutural entre aquilo que é factual e aquilo que é simbólico, jurídico e formal. O tempo da Justiça, do Ministério Público não é o tempo dos fatos reais. As medidas foram tomadas. Lamentavelmente, sem tempo oportuno para que essas medidas de cautela e proteção fossem efetivadas”, justificou Aras. “Voltamos a Brasília também com o propósito de levar às autoridades propostas de reforçar a segurança não somente das lideranças da Univaja e do Vale do Javari, mas também de reforçar o efetivo não só do Ministério Público, mas de outras instituições”, relatou.

Perguntado se acionaria o Governo Federal judicialmente para provocar o fortalecimento dos órgãos socioambientais na região onde ocorreu o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, Aras disse “preferir o diálogo”.

“Antes de qualquer medida judicial contra quem quer que seja, nós nos dirigiremos às autoridades competentes para buscarmos a solução dessas pendências. Temos mais chances em dialogar com a Funai e as demais instituições encarregadas de cuidar dessas populações isoladas, do que começar simplesmente movendo uma ação como no passado se fazia. Uma ação não tem tempo de acabar”, afirmou Aras.

Polícia Federal fala em oito suspeitos

Um terceiro suspeito de envolvimento no assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips, Jefferson Lima da Silva, vulgo “Pelado da Dinha” foi levado ontem, 18 de junho, para audiência de custódia no Fórum de Atalaia do Norte.

Pelado da Dinha, segundo a PF, confessou ter sido também um dos executores dos assassinatos. A Polícia Federal informou neste domingo (19) que, além dos três presos, outros cinco suspeitos já foram identificados por terem participado da ocultação dos cadáveres de Pereira e Phillips.

“O comitê de crise, coordenado pela Polícia Federal do Amazonas, informa que até o momento há três suspeitos presos pela morte do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips e outras cinco pessoas já foram identificadas por terem participado da ocultação dos cadáveres”, diz o comunicado da PF.

O especial Vale do Javari — terra de conflitos e crime organizado é uma série de reportagens da Agência Pública com apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund (Amazon RJF) em parceria com o Pulitzer Center

Reportagem originalmente publicada na Agência Pública

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Motivação das mortes de Bruno Pereira e Dom Phillips vai definir o caminho do processo https://canalmynews.com.br/brasil/motivacao-das-mortes-de-bruno-pereira-e-dom-phillips-vai-definir-o-caminho-do-processo/ Fri, 17 Jun 2022 19:43:22 +0000 https://canalmynews.com.br/?p=30143 Uma transferência do caso para a Justiça Federal dependeria de a polícia apontar conexão do crime com a Terra Indígena Vale do Javari

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Por que mataram Bruno Pereira e Dom Phillips? A resposta a essa pergunta definirá o caminho que o processo seguirá na Justiça, de acordo com fontes próximas à investigação ouvidas pela Agência Pública em Atalaia do Norte (AM).

No caso de o processo permanecer na Justiça estadual, o Ministério Público poderá pedir o desaforamento para a cidade de Manaus (AM), ou seja, solicitar que o futuro Tribunal do Júri seja realizado na capital do Amazonas, a cerca de 1.100 km em linha reta de Atalaia do Norte (AM). A medida contornaria eventuais dificuldades na escolha do júri e pressões políticas e sociais, já que a família dos acusados é grande e bem conhecida na região.

O inquérito sobre os homicídios hoje tramita na Justiça estadual do Amazonas conduzido pela Polícia Civil e sob a supervisão do Ministério Público e da Justiça estaduais. Um segundo inquérito, sobre os desaparecimentos, tramita na Polícia Federal.

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Para a Polícia Civil, a autoria do crime foi resolvida a partir de uma confissão do pescador Amarildo da Costa Oliveira, o “Pelado”, do relato de testemunhas, do trabalho da perícia técnica e da reconstituição do crime que resultaram na localização de restos mortais em área próxima à comunidade São Gabriel. A perícia nos corpos será concluída no decorrer da próxima semana, segundo nota da Polícia Federal.

bruno e dom

Chegada de restos mortais em Atalaia do Norte (AM) na noite de 15 de junho. Perícia em Brasília irá confirmar se são de Bruno e Dom. Foto: Avener Prado/Agência Pública

A investigação agora deverá detalhar o que levou Oliveira a matar o indigenista e o jornalista. Definir a motivação do crime terá impacto na decisão que a Justiça deverá tomar em algum ponto do processo sobre a esfera judicial na qual o processo tramitará, se estadual ou federal.

Caso o inquérito hoje conduzido pela Polícia Civil conclua que há conexão do crime com a atuação de Bruno Pereira na Terra Indígena Vale do Javari, o Ministério Público estadual poderá suscitar um conflito de competência, ou seja, indagar ao Judiciário sobre qual esfera deverá julgar o processo criminal. O MP poderá solicitar ao juízo que remeta o processo à Justiça Federal, já que terras indígenas são registradas em cartório como patrimônio da União e devem ser protegidas por órgãos federais, como a Funai, o Ibama e a própria PF. Além disso, Bruno era servidor público federal.

Para a investigação ir para a instância federal, é necessário que a Justiça entenda que as ameaças de “Pelado” a Bruno ocorreram em razão de sua atuação como indigenista. Inúmeras denúncias documentadas pela Univaja, a principal entidade indígena do Vale do Javari, demonstram ameaças e intimidações contra Bruno Pereira e outros indígenas da fiscalização por conta de sua atuação para impedir o saque de riquezas dentro da TI.

Outro argumento que pode ser usado para o caso ir à Justiça Federal seria a comprovação de que os executores agiram a mando de alguma terceira pessoa com interesse em áreas da União ou relacionada ao tráfico internacional de drogas.

Em nota divulgada nesta sexta-feira, a Polícia Federal negou a hipótese de “crime de mando”. Ela disse que, de acordo com as investigações, “os executores agiram sozinhos, não havendo mandante nem organização criminosa por trás do delito”.

A Univaja emitiu uma nota criticando o comunicado da Polícia Federal. A entidade disse que “a PF desconsidera as informações qualificadas, oferecidas pela UNIVAJA em inúmeros ofícios, desde o segundo semestre de 2021.” Segundo a organização dos indígenas, as informações enviadas nos ofícios apontam para a existência de um grupo organizado atuando nas invasões à TI Vale do Javari. “A nota à imprensa, emitida pela PF hoje corrobora com aquilo que já destacamos: as autoridades competentes, responsáveis pela proteção territorial e de nossas vidas, têm ignorado nossas denúncias, minimizando os danos, mesmo após os assassinatos de nossos parceiros, Pereira e Phillips”, afirma a nota.

Por outro lado, pesa contra a tese de que o processo deverá passar à Justiça Federal, segundo uma fonte próxima à investigação disse à Pública, o fato de Pereira estar licenciado do cargo que ocupava na Funai (Fundação Nacional do Índio) quando foi morto.

Outros pontos a serem esclarecidos, diz outra fonte próxima à investigação, é se “Pelado” exercia de fato a pesca ilegal dentro da TI Vale do Javari e se a decisão de matar Bruno se deu em decorrência de ações de fiscalização realizadas pelo indigenista dentro ou fora da terra indígena. Para policiais estaduais, é possível que Bruno tenha confrontado “Pelado” e realizado ações de fiscalização, como a inutilização de material de pesca, em áreas fora do perímetro da TI Vale do Javari. Tal entendimento faria com que o inquérito e o processo continuassem tramitando em âmbito estadual, segundo esta fonte.

bruno e dom

As imagens mostram a movimentação das equipes de busca no dia 15 de junho no rio Itaquaí. Foto: José Medeiros/Agência Pública

Uma outra hipótese sobre o desfecho do processo seria a chamada “federalização”, chamada tecnicamente de IDC (Incidente de Deslocamento de Competência). Pela lei, o IDC só pode ser ajuizado pela PGR (Procuradoria Geral da República) junto ao STJ (Superior Tribunal de Justiça). Poucos casos foram “federalizados” no país até hoje.

A “federalização” foi demandada pelo movimento indígena em um ato público realizado no centro de Atalaia do Norte na última segunda-feira. Após as buscas terem encontrado os restos mortais na última quarta-feira, a Univaja reiterou, em nota, que “o assassinato de Pereira e Philips constitui um crime político, pois ambos eram defensores dos Direitos Humanos e morreram desempenhando atividades em benefício de nós, povos indígenas do Vale do Javari”.

A Constituição estabelece que serão julgados na Justiça Federal os “crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas.” Também são de competência federal os processos judiciais relacionados aos direitos indígenas.

Parentes de “Dos Santos” e “Pelado” foram ouvidos pela Polícia Civil nesta quinta-feira

Nesta quinta-feira, cinco familiares dos presos Oseney Oliveira, conhecido como “Dos Santos”, e “Pelado” prestaram depoimentos na delegacia da Polícia Civil de Atalaia do Norte. Essas pessoas negaram supostos mandantes do crime.

Os depoimentos foram acompanhados pelo advogado Ednilson Almeida Tananta, que também representa Oseney e Amarildo Oliveira no inquérito, e por servidores da Polícia Federal. “Estou acompanhando o desenrolar das investigações nessa fase de inquérito policial”, disse Tananta à reportagem, sem confirmar se seguirá no caso a partir da eventual apresentação da denúncia, pelo Ministério Público.

O advogado não quis dar detalhes do que conversou com os suspeitos nas suas celas ou sobre os depoimentos de ontem e nem apresentou nenhuma linha da defesa que fará de seus clientes. Oseney e Amarildo seguem presos na delegacia de Atalaia do Norte.

Parte dos depoimentos foi colhida enquanto uma procissão de fiéis da Paróquia de Atalaia do Norte concentrava-se em frente à delegacia de polícia. A procissão, realizada no feriado de Corpus Christi, saiu da delegacia e foi até a igreja da cidade. “Rezamos pelo Bruno e pelo Dom para que sejam acolhidos no festim da eternidade”, disse o padre Alberto, da paróquia de Atalaia.

Nesta sexta-feira, equipes da Marinha, do Corpo de Bombeiros do Amazonas e do Exército seguem as buscas pela embarcação em que estavam Dom Philips e Bruno Pereira, supostamente afundada pelos suspeitos no leito do rio Itaquaí.

O especial Vale do Javari — terra de conflitos e crime organizado é uma série de reportagens da Agência Pública com apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund (Amazon RJF) em parceria com o Pulitzer Center

*Reportagem originalmente publicada na Agência Pública

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Irmão de Pelado é preso por suspeita de “homicídio qualificado”, segundo delegado https://canalmynews.com.br/brasil/irmao-de-pelado-e-preso-por-suspeita-de-homicidio-qualificado-segundo-delegado/ Wed, 15 Jun 2022 16:16:17 +0000 https://canalmynews.com.br/?p=30007 Preso preventivamente, delegado diz que "testemunhas teriam colocado" Oseney e seu irmão, Amarildo, no local do crime

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agência pública

Nesta terça-feira, 14 de junho, foi preso preventivamente Oseney da Costa de Oliveira, vulgo “Dos Santos”, de 41 anos, por suspeita de participação junto com seu irmão, Amarildo da Costa de Oliveira, vulgo “Pelado”, no caso do desaparecimento do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira.

A prisão, registrada com exclusividade pela equipe da Agência Pública na delegacia de Atalaia do Norte (AM), ocorreu por ele ser suspeito de “homicídio qualificado”, segundo informações da polícia à imprensa.

O delegado Alex Peres disse ainda, na frente da delegacia, que Oseney foi preso na cidade de Atalaia do Norte, na rua do Quixito. Indagado sobre a suposta participação do suspeito sob apuração, o delegado respondeu “efetiva”.

A respeito das motivações que o levaram a solicitar a prisão, o delegado respondeu: “Testemunhas. Elas colocaram os dois no local, supostamente, onde ocorreu o crime”. Perguntado sobre qual seria o crime sob investigação, o delegado disse “Suposto homicídio qualificado”.

Mais cedo, a Polícia Federal e a Polícia Civil de Atalaia do Norte realizaram uma operação na comunidade São Rafael, onde reside Amarildo, o “Pelado”, irmão de Oseney.

No local, apreenderam objetos dos moradores, dentre eles um remo. Segundo o delegado Alex Perez, alguns moradores foram ouvidos informalmente.

Em nota, o comitê de crise formado por diversos órgãos públicos, informou que Oseney da Costa de Oliveira será interrogado e encaminhado para audiência de custódia na Justiça de Atalaia do Norte. A nota informa ainda que “houve o cumprimento de 02 (dois) mandados de busca e apreensão expedidos pelo Poder Judiciário em Atalaia do Norte/AM, tendo sido apreendidos alguns cartuchos de arma de fogo e um remo, os quais serão objeto de análise”.

As buscas

Agência Pública apurou que o comitê de crise decidiu que as buscas se concentrarão até o final da tarde de amanhã, 15 de junho, no local em que foram encontrados pertences pessoais de Bruno Pereira e Dom Phillips. Caso outros itens não sejam localizados, as buscas deverão partir para outras partes a serem indicadas por indígenas ou ampliar o raio da procura a partir do ponto onde os itens foram encontrados.

O mau cheiro detectado no local, a princípio considerado um indício da presença de corpos naquele mesmo ponto, pode ter sido gerado pela decomposição de outros materiais orgânicos nos igapós, acelerada pela seca do rio, que teria baixado cerca de 60 cm naquele ponto do rio Itaquaí desde o domingo da semana passada, dia 5.

 

*O especial Vale do Javari — terra de conflitos e crime organizado é uma série de reportagens da Agência Pública com apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund (Amazon RJF) em parceria com o Pulitzer Center

Reportagem originalmente publicada na Agência Pública

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