Arquivos da Revista AzMina - Canal MyNews – Jornalismo Independente https://canalmynews.com.br/post_autor/da-revista-azmina/ Nosso papel como veículo de jornalismo é ampliar o debate, dar contexto e informação de qualidade para você tomar sempre a melhor decisão. MyNews, jornalismo independente. Thu, 07 Jul 2022 16:53:58 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 O que é “dororidade”? https://canalmynews.com.br/mais/o-que-e-dororidade/ Sat, 02 Jul 2022 10:57:22 +0000 https://canalmynews.com.br/?p=31073 Conceito feminista trata das dores que unem as mulheres negras para além do machismo.

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Há grandes chances de “sororidade” ter sido uma das primeiras palavras que você ouviu quando conheceu o movimento feminista. É um termo bastante usado para remeter à ideia do acolhimento de mulheres que estão juntas tentando vencer o patriarcado. Isso foi pauta até no BBB – vamo galera mulheres – lembra? Mas você já ouviu falar em “dororidade”?

Não é apenas a luta contra o machismo que une as mulheres: quando se trata de mulheres negras, há um sofrimento que é embasado nas opressões de raça. Além de enfrentarem a dor do machismo, ainda há o enfrentamento do racismo. O feminismo branco hegemônico excluiu as mulheres negras. E é para acolher essas mulheres, em um lugar onde a sororidade não as alcança, que surge o conceito de “dororidade”.

LEIA TAMBÉM: Como denunciar violência doméstica e familiar em segurança?

O que significa “dororidade”?

O conceito foi cunhado pela professora e escritora Vilma Piedade, que escreveu o livro “Dororidade”, publicado em 2017. “A sororidade parece não dar conta da nossa pretitude. Foi a partir dessa percepção que pensei em outra direção, num novo conceito que, apesar de muito novo, já carrega um fardo antigo, velho, conhecido das mulheres: a Dor – mas, nesse caso, especificamente, a Dor que só pode ser sentida a depender da cor da pele. Quanto mais preta, mais racismo, mais dor”, conta Vilma no livro.”

Parte do diagnóstico, da dor, mas não para aí, o conceito convoca ao enfrentamento das violências herdadas pela colonização: o não lugar, a não escuta, a invisibilidade das mulheres negras. É o que explica Danila de Jesus, doutoranda, mestre e pesquisadora no NEIM-UFBA (Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher da Universidade Federal da Bahia).

E isso se reflete na prática das mulheres negras na resistência do machismo e do racismo e na busca do bem viver. Sempre que uma mulher negra acolhe a outra, isso é dororidade. São exemplos iniciativas de mulheres negras que visam dar suporte e apoio a outras mulheres negras. O Indique uma Preta, por exemplo, faz isso conectando  pessoas negras ao mercado de trabalho. Já o AfroGrafiteiras é um projeto de formação em arte urbana que foca na expressão e promoção do protagonismo de mulheres afro-brasileiras. São projetos tocados por mulheres negras para promover os direitos de todas elas.

Por que a dororidade é importante?

“O conceito de dororidade busca olhar como as ausências, os silenciamentos, os apagamentos e os racismos epistêmicos nos afetam. Quais são as implicações do racismo? Qual é a cor dessa dor? Essa dor, ela é preta”, afirma Danila.

Ao encontrar um ponto em comum – a mulher negra -, o conceito de dororidade aprofunda o diálogo do feminismo com o movimento negro. Assim, ele se encontra também com o  feminismo interseccional, que cruza as opressões e mostra que as mulheres pretas são as mais afetadas pelos processos de racismo, machismo e opressões de classe. Como explica a filósofa e professora norte-americana Angela Davis, “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela, porque tudo é desestabilizado a partir da base da pirâmide social onde elas se encontram”.

Mas o feminismo incorporado no Brasil foi, por muito tempo, branco – com demandas que atendiam majoritariamente pautas de mulheres brancas, urbanas, de classe média. É por isso que, segundo Danila, a “dororidade” surge para pensar em lutas anti-racistas que o termo sororidade não alcançava.

“Um dos problemas do pensamento feminista foi perceber o movimento como um projeto único, moldado para a mulher branca, ocidental, de classe média, instruída. Uma visão mais relativista de feminismo é incorporada em 1980, em que o movimento começa a pensar em questões relativas aos diferentes tipos de mulher, considerando aspectos culturais, sociais e, principalmente, étnicos”, explica Vilma no livro.

Mas qual a diferença entre “dororidade” e “sororidade”?

O termo “sororidade” vem do latim “sorór”, que significa “irmãs”. Não se conhece a criadora do termo, mas ele surge no contexto da Revolução Francesa (1789-1799). Lembra do lema “Liberté, Egalité, Fraternité”? Então, para as mulheres que lutavam pelos seus direitos, na época, a palavra de ordem era “Sororité”.

É a solidariedade e empatia entre as mulheres. Na prática, ela remete à união de mulheres, que se protegem, se escutam sem julgamentos, se apoiam. Mas ignorar a interseccionalidade, ou seja, como raça e classe, além de gênero, atravessam as mulheres ou como elas experienciam a vida em sociedade, é quase como uma sororidade seletiva.

Apesar de diferentes, esses conceitos não se anulam. Em uma de suas falas, Vilma Piedade diz que a dororidade vem para dialogar com a sororidade e não anulá-la. É também uma provocação: o movimento feminista precisa olhar para a luta antiracista.

Por que falamos pouco de “dororidade”?

Além de ser recente, esse não é um conceito que surgiu na Europa ou nos Estados Unidos, que costumam estar no centro das discussões da cultura ocidental. Segundo Danila, por conta disso ainda é algo pouco debatido. A autora Vilma Piedade, inclusive, usa do “pretoguês” da socióloga e ativista antirracista Lélia Gonzalez, que reivindica a marca da africanização no português falado no Brasil, para construir o conceito de dororidade – subvertendo a lógica eurocentrada.

Para a pesquisadora da UFBA, é importante ampliar o uso do termo a partir do letramento racial e da consciência sobre raças em ambientes como o da educação. É possível fazer isso, por exemplo, no cumprimento da Lei 10.639, que obriga o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas, inserindo no currículo o conceito para que seja discutido em ambientes formativos.

*Reportagem originalmente publicada no site AzMina

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Entre o medo do assédio e do contágio: como a pandemia afeta a mobilidade das mulheres nas cidades https://canalmynews.com.br/mais/entre-o-medo-do-assedio-e-do-contagio-como-a-pandemia-afeta-a-mobilidade-das-mulheres-nas-cidades/ Sat, 15 May 2021 16:15:37 +0000 http://localhost/wpcanal/sem-categoria/entre-o-medo-do-assedio-e-do-contagio-como-a-pandemia-afeta-a-mobilidade-das-mulheres-nas-cidades/ Maioria na linha de frente de combate à Covid-19, mulheres são as mais vulneráveis aos problemas estruturais da mobilidade urbana agravados pela pandemia

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Da Revista AzMina

Aguardar o ônibus se aproximar do ponto para só então sair do hospital. A estratégia, usada para driblar o risco de ser uma mulher sozinha no ponto tarde da noite, ficou mais séria, já que com menos ônibus circulando na pandemia, o tempo de espera ficou maior. No rosto, uma máscara PFF2 e, na bolsa, um frasco de álcool em gel, itens fundamentais no deslocamento pela cidade. Uma vez dentro do ônibus, é hora de buscar o lugar menos aglomerado e, de preferência, próximo à janela, longe do vírus e dos assediadores. No metrô, se os vagões estão cheios, a saída é esperar por um novo trem. 

Há pouco mais de um ano a psicóloga Vanessa Santos, 29 anos, enfrenta a rotina de encarar o transporte público sendo mulher, com os novos obstáculos trazidos pela pandemia. Moradora no bairro do Vale dos Lagos, em Salvador, Vanessa acorda todos os dias às 5h para bater ponto às 7h no Hospital das Clínicas, no Canela. São 20 km de distância, percorridos com caminhada, metrô e dois ônibus. Na linha de frente do combate ao coronavírus, Vanessa é uma das milhares de profissionais de saúde que não puderam cumprir o isolamento.  Dados da Organização Mundial da Saúde estimam que as mulheres representam 70% da força de trabalho na área da saúde no mundo e o Brasil segue o padrão mundial.

Também em Salvador, a nutricionista Juliana Dias, 32 anos, usuária de transporte público, tomou a decisão de só utilizar carro por aplicativo durante a pandemia, para diminuir sua exposição. Desde março de 2020, tem pagado mais caro ou aproveitado a carona de amigas para se deslocar de casa para o trabalho. Moradora do Itaigara e funcionária do hospital Aliança, Juliana leva menos de 10 min para percorrer os 3 km de casa ao trabalho. Para isso, paga cerca de R$ 9 por viagem, aproximadamente o dobro do que pagaria com a tarifa do ônibus em Salvador, que passou a custar R$ 4,40 no último reajuste realizado em março.

mobilidade mulheres pandemia

A rotina das duas profissionais revela que nem todas as pessoas estão em iguais condições dentro da economia do cuidado e que quando se fala em políticas de mobilidade urbana, é essencial se considerar o fator gênero. Profissionais de saúde, domésticas, trabalhadoras informais, babás, cuidadoras de idosos e até mesmo as donas de casa, que necessitam se deslocar pela cidade, estão ainda mais expostas às problemáticas da mobilidade na pandemia.

“De modo geral, em todo o mundo, as mulheres têm acesso a meios mais precários de transporte. É comum, por exemplo, que quando se tem um carro ou moto na família, esse veículo fique com o homem mais velho do domicílio. Ou seja, as mulheres são maioria no transporte público e na caminhada”, explica Jessica Lima, doutora em engenharia de transportes, professora da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e criadora de conteúdo em @atransportista

Por serem mais dependentes do transporte público, são as mulheres as mais sujeitas aos riscos de contaminação dentro dos veículos por conta das aglomerações vistas desde o início da pandemia em diversas cidades brasileiras. 

Velhos e novos medos

Além do medo do contágio pelo coronavírus em um transporte lotado e mal higienizado, as mulheres passaram a lidar com a redução da oferta de ônibus, ruas vazias e um maior tempo de espera nos pontos, aumentando o medo de sofrer assaltos  e violências sexuais. Ou seja, os fatores de risco comuns às mulheres nos deslocamentos urbanos se amplificaram no período.

Não à toa, o uso dos carros por aplicativo saltou de 54% para 67% entre as passageiras da 99 de fevereiro a outubro do ano passado, segundo dados da própria empresa.. Além disso, 42% das passageiras ouvidas pela empresa disseram não ter conseguido cumprir a quarentena e 18% declararam que não puderam realizar nenhum isolamento. 

Apesar de não haver um levantamento sobre o comportamento das usuárias mulheres durante a pandemia, a Uber encomendou uma pesquisa junto ao Datafolha em outubro, que revelou que  os critérios mais importantes para escolher o meio de transporte na pandemia são grau de aglomeração (29%), a segurança que o transporte oferece (20%) e, empatados com 14%, a facilidade de acesso ao meio e o risco de contaminação. 

No caso da psicóloga Vanessa, do início dessa reportagem, o grau de aglomeração é uma das suas principais preocupações, mas raras foram as vezes em que ela usou transporte por aplicativo no último ano. “Para ser mais exata, foram três vezes nos finais de semana em que passava das 18h, o ponto estava vazio e tive de esperar mais de 30 minutos pelo ônibus”, recorda. O motivo de recorrer pouco ao aplicativo é o custo das viagens e o impacto disso no rendimento mensal, já que uma viagem no trajeto casa-trabalho custa a ela cerca de R$ 26. 

“No início, eu tinha mais medo do ambiente hospitalar, não tinha medo em relação à contaminação no transporte público. Por conta dos fechamentos, do lockdown, eu pegava ônibus vazios e tinha poucas pessoas na rua. Quando o comércio foi reabrindo, que fui vendo mais gente na rua usando máscara incorretamente, aí passei a ficar mais receosa” – Vanessa Santos, psicóloga.

Com as ruas mais vazias e a redução na frota de ônibus, a sensação de insegurança também passou a ser uma constante na rotina de Vanessa. Para evitar passar tanto tempo no ponto sozinha, baixou um aplicativo que estima o horário de chegada do ônibus e começou a combinar de sair do hospital junto com outros colegas.

 “Dá mais segurança sair em grupo, porque meu medo não é só ser assaltada, mas sofrer algum tipo de violência física. Na Estação Pituaçu, onde espero o ônibus que me leva direto para a casa, eu chego a ficar 30 minutos absolutamente sozinha à noite, sem nenhum outro passageiro esperando. Então, sempre bate uma insegurança quando eu vejo algum homem se aproximando”, conta a psicóloga.

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A insegurança de Vanessa é a mesma das mulheres que, por falta de renda, precisaram abrir mão do transporte público e passaram a se deslocar mais a pé pela cidade. “A gente tem visto diversas notícias falando sobre famílias que passaram a cozinhar com lenha por conta do preço de botijão e o mesmo acontece com o transporte público. Sem renda, as pessoas acabam necessitando fazer caminhadas mais longas para se deslocar e, se a gente considera as enormes distâncias das cidades, se deslocar e acessar determinados serviços se torna inviável”, compara Jessica Lima. 

Em 2016, a pesquisadora  fez um um estudo com duas comunidades pobres da cidade de Recife e identificou que quase 60% dos entrevistados se deslocavam a pé, mesmo quando esse deslocamento não era restrito ao bairro. Além da questão da renda, pesava para isso a baixa oferta de linhas e a quantidade de veículos nessas regiões. 

Ela acredita que isso piorou durante a pandemia de Covid-19, quando houve empobrecimento geral da população e também estrangulamento do sistema de transporte. Em muitas cidades, houve redução de linhas e da frequência dos transportes públicos.  

Para Haydee Svab, cientista de dados e pesquisadora em mobilidade urbana, que atua como consultora de tecnologia d’AzMina, a insegurança que as mulheres sentem no deslocamento a pé se deve ao fato de as cidades serem inóspitas e pouco acolhedoras para as mulheres.  “O modo andar a pé é bom e em si não deveria ser motivo de insegurança, o que faz o andar a pé ser mais inseguro é o nosso ambiente construído, que não gera sensação de segurança, seja através de uma iluminação pública adequada a pedestres, de fachadas ativas (com portas e janelas voltadas para a rua),  de atividades de comércio e serviços (uso do solo) que funcionem em diversos horários do dia gerando movimentação”, elenca.

Para ela, compreender a mobilidade urbana é essencial para a construção de uma cidade menos desigual. “Por que a gente ainda não pensa no transporte como um direito fundamental, tal qual a saúde e educação? Se não há transporte público acessível, outros direitos são barrados, porque a falta de transporte estrangula a possibilidade das pessoas chegarem aos serviços”, explica Svab. E no cenário de crise que vivemos, isso se intensifica. 

Quem vai pagar a conta?

Dados sobre a demografia das mortes pelo coronavírus no Brasil demonstram que a maior parte das vítimas são pessoas pobres e pretas. Uma pesquisa do Instituto das Cidades da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), conduzida pelo professor Anderson Kazuo Nakano, revela que usar transporte público, trabalhar como profissional autônomo e ser dona de casa são as três variáveis que mais influenciam as mortes pelo novo coronavírus na cidade de São Paulo. 

No caso específico das donas de casa, que em teoria não necessitam fazer uso recorrente de transporte público, a pesquisa trabalha com duas hipóteses para a alta incidência do coronavírus: a primeira é que, apesar de estarem em casa, essas mulheres seguem fazendo viagens curtas no comércio local, contraindo a doença; a segunda é que elas também podem fazer parte de famílias mais empobrecidas, composta por trabalhadores essenciais e autônomos,  que estão usando o transporte coletivo, e na volta para casa acabam contaminando outros moradores.

Tal cenário prova o quanto é importante pensar soluções de mobilidade que levem em conta raça, classe e gênero e priorizem os modos e razões pelas quais homens e mulheres se deslocam pelas cidades. 

“Devido à forma como os papéis de gênero se desenvolveram na sociedade, cabe às mulheres o cuidado doméstico. Sempre que adoece uma criança ou uma pessoa idosa da família, é a mulher que está ali para ajudar, para acompanhar. Isso nos leva a crer que se alguém da família ficou doente na pandemia coube à mulher ir se deslocar para ir à casa desse parente, acompanhar em hospitais, ir em farmácias”, considera Jessica Lima, que caracteriza este como um movimento encadeado, em contraposição ao movimento pendular dos homens.

Pensar novas formas de conceber o transporte público passa por enfrentar problemas estruturais antigos do setor, que, como este, foram escancarados na pandemia de Covid-19. Um levantamento da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) mostra que o prejuízo já é de quase R$ 12 bilhões. Nos primeiros meses de lockdown, a queda da demanda de passageiros chegou a 80%, e agora, após um ano de restrições, a média nacional está em 40%. 

Como consequência, operadoras e concessionárias decidiram suspender atividades ou mesmo encerrar serviços, gerando uma onda de atrasos de pagamentos e desemprego, que culminaram em protestos e movimentos grevistas em todo o país – 78 sistemas de transporte por ônibus foram atingidos por 182 greves, protestos e/ou manifestações que ocasionaram a interrupção da oferta de serviços.

Tudo isso se deve não somente à pandemia, mas principalmente ao modelo de financiamento e arrecadação, que atualmente se baseia principalmente na cobrança de tarifa por passageiro. Nele, as empresas prestadoras do serviço lucram com o aumento da relação passageiro/veículo. Com menos usuários no sistema, as tarifas tendem a ficar mais caras.

“A própria cobrança de tarifa, em si, já é um limitador do acesso ao transporte para grande parcela da população, cada vez mais empobrecida”, comenta Haydee Svab, ao lembrar que pelo menos dez cidades brasileiras subsidiam o transporte público e já adotam a tarifa zero.

Saída pela frente

A aglomeração vista no transporte público e o aumento do tempo de espera dos veículos durante a pandemia decorreram de um estrangulamento proposital da oferta. Na tentativa de driblar a crise, empresas suspenderam contratos de rodoviários e reduziram o número de veículos na rua, numa decisão alinhada com muitas prefeituras cujo pensamento é o de que oferecer menos transporte implicaria em menos circulação de pessoas – quando na verdade as pessoas circulam porque precisam trabalhar.

“O transporte lotado não é a raiz do problema, é o sintoma”, alerta Jéssica Lima, para quem é impossível exigir que os veículos transportem apenas pessoas sentadas ou mesmo determinar o aumento da oferta de ônibus durante a pandemia, devido à forma que o transporte público foi estruturado no país. Para ela, a única solução para conter o “sintoma” e a propagação do coronavírus, neste momento, seria o pagamento da renda básica à população e o lockdown.

Haydee Svab classifica como desastrosa a forma como o transporte público foi tratado durante a pandemia. “Quem faz política não entende a natureza do transporte. Você não resolve problema de transporte só com transporte”, critica. Falar de lotação dos ônibus exige olhar para a forma como as oportunidades e atividades econômicas são distribuídas na cidade. Afinal, se todos os serviços se concentram em uma única região, é natural que todas as pessoas se desloquem para esse lugar nos horários de pico. 

“Onde estão as oportunidades de emprego e trabalho nas cidades? É para onde as pessoas vão se deslocar. Todo mundo para o mesmo lugar, no mesmo horário”, conclui Svab. Por isso, além da redistribuição espacial, ela destaca que outra forma de desafogar o transporte, na pandemia e também fora dela, seria o escalonamento dos horários das atividades econômicas como forma de redistribuição da demanda ao longo do dia.

As capitais brasileiras também podem seguir o exemplo de cidades como Bogotá e Bruxelas, que se prontificaram a implementar políticas de apoio aos transportes ativos, com incentivo ao uso de bicicletas e construção de infraestrutura cicloviária segura. 

“Quando você faz isso, você pensa o transporte junto a diversos outros setores: segurança, meio ambiente, saúde. Uma pessoa mais ativa é uma pessoa mais saudável, então vai responder melhor em caso de uma doença e é importante pensar nisso, especialmente em um momento como esse de caos no sistema de saúde. Temos mais um ano de pandemia e estamos perdendo a oportunidade de fazer essa mudança”, finaliza Jéssica Lima.

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“Sua raça é resistente à dor”: mulheres relatam racismo em atendimentos médicos https://canalmynews.com.br/mais/sua-raca-e-resistente-a-dor-mulheres-relatam-racismo-em-atendimentos-medicos/ Sun, 28 Feb 2021 13:33:30 +0000 http://localhost/wpcanal/sem-categoria/sua-raca-e-resistente-a-dor-mulheres-relatam-racismo-em-atendimentos-medicos/ Ofensas explícitas, diagnósticos imprecisos e procedimentos desnecessários fazem pacientes negras e indígenas evitarem consultas e tratamentos

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Da Revista AzMina

“Agora eu uso a desculpa da pandemia, mas na verdade o buraco é bem mais embaixo”. É desse modo que a estudante universitária Jé Hámãgãy, 22 anos, justifica o fato de estar evitando ir a médicos desde que o seu filho nasceu, há pouco mais de seis meses.

Uma “desculpa”, como ela mesma diz, já que foi durante a pandemia que ela fez todas as consultas e exames de pré-natal, em hospitais públicos de Belo Horizonte e de Lagoa Santa, na região metropolitana de BH. Mas foi justamente nessas ocasiões, que Jé vivenciou uma série de situações racistas, que reviveram novos e velhos traumas de toda uma vida em atendimentos médicos.

“São vários episódios, mas durante a gravidez foi pior. A médica disse que era muito cedo para eu estar grávida, não fez nenhum exame para comprovar se eu estava ou não gestante, e me fez pagar uma endoscopia urgente para o enjoo e desconforto no estômago. Não fui anestesiada e senti muita dor. Depois descobri que mulheres grávidas não podem fazer esse procedimento”, conta Jé. Ela é indígena e acredita que a postura da médica foi totalmente motivada pelo preconceito.

Histórias como a dela alertam para como o racismo, que perpassa todas as relações sociais no Brasil, assume formas específicas dentro de consultórios, clínicas e hospitais. Para discutir o assunto e saber como isso acontece, AzMina coletou mais de cem relatos de mulheres de todo o país sobre suas experiências em atendimentos médicos.

83% das respostas foram de mulheres não-brancas: 60,6% pretas, 19,2% pardas e 3% indígenas. Destas, quase 68% afirmou já ter sofrido racismo durante atendimento médico e pouco mais de 16% disse que “talvez” tenha sofrido. As especialidades com maiores ocorrências, relatadas no formulário foram ginecologia (43 casos), clínica (40), dermatologia (19) e obstetrícia (10).

Os dados que coletamos não têm validade estatística, mas os relatos que recolhemos dão uma noção da complexidade do tema. A naturalização e a multiplicidade das situações geram dificuldade em conceituar a violência, muitas vezes percebida pela paciente algum tempo depois ao ouvir outras histórias e, sobretudo, ao comparar sua experiência com a de mulheres brancas. Nas respostas que coletamos, 26% das mulheres afirmam ter percebido que foram vítimas de racismo na assistência à saúde  logo depois ou algum tempo depois do atendimento.

Prova de obstáculos

Explícitas ou veladas, as barreiras começam antes mesmo da conversa com o médico. Foi o caso da culinarista Marinalda Soares, 50 anos, cujas piores experiências aconteceram ainda na recepção da Unidade de Saúde da Família do bairro onde mora, em Feira de Santana, na Bahia. “Há anos venho reclamando do tratamento desproporcional que a atendente dá aos pacientes, ela privilegia alguns e sempre são as pessoas de pele clara”, denuncia Marinalda.

Certa vez, nesse mesmo posto, ela ouviu do médico que ele precisava de uma pretinha como ela para cuidar dele e fazer comida. “Eu rebati imediatamente, perguntando: ‘É o quê, doutor?’, mas ele desconversou”, lembra a culinarista, escancarando o assédio e também o racismo da situação.

No caso de Jé, citada no início da reportagem, ela ouviu de funcionários, ainda no corredor do hospital, que “índia não fecha as pernas e, por isso, engravida cedo”; na hora do preenchimento da sua ficha cadastral, marcaram sua cor como “parda”. “Puseram lá que eu era parda e ponto. Não fui questionada em nenhum momento sobre como me declaro. Essa foi a primeira vez que de fato eu bati pé. Fiz questão que alterassem, colocando ‘indígena’ tanto na minha ficha, quanto na do meu filho”, recorda.

A recorrência de comportamentos como esses  foi o que motivou a assistente social Lúcia Xavier, coordenadora da ONG Criola, uma das 150 organizações que integram a Coalizão Negra por Direitos, a pressionar o Ministério da Saúde para incluir os indicadores de raça/cor nos boletins sobre a pandemia.

“Há uma tendência em dizer que a população não gosta de ser inquirida sobre raça/cor, que se sente ofendida, que esse dado não serve para muita coisa. Se não for obrigatório ser preenchido, as pessoas pulam ou definem elas mesmas a raça/cor das outras”, alerta Lúcia.

“A gente precisa ser reconhecida até para a formulação de políticas públicas. Se não constamos nos registros, não existimos. Sou indígena, meu filho também, e eu não vou aceitar ser parda” – Jé Hámãgãy, estudante universitária

Consequências para toda a vida

Diagnósticos imprecisos, tratamentos equivocados e gastos com medicamentos desnecessários são algumas das consequências mais imediatas de um atendimento racista. Nas respostas que coletamos via formulário, são recorrentes histórias envolvendo as três questões.

Em um caso de uma leitora que não quis se identificar, a médica receitou um remédio para piolho, quando na verdade o problema da paciente era uma dermatite. “Ela disse que eu estava com piolho, mas que não dava para ver porque meu cabelo é cacheado. Disse que era para eu usar o remédio por duas horas, mas eu li na bula que não podia passar de 10 minutos.  Foi aí que eu vi que tinha algo muito errado. Fui em outra médica e ela identificou a dermatite. Ou seja: a outra médica “confundiu” caspa com lêndea e ainda disse pra eu deixar um inseticida na cabeça por duas horas! Ainda bem que não deixei”.

O receio de passar por novas violências também faz com que elas deixem de procurar assistência médica, “Estava grávida de gêmeas idênticas mas a obstetra não sabia, pois não solicitou ultrassonografia. Tive parto prematuro e perdi uma menina. Gestante de alto risco com pré-natal de baixa qualidade por ser negra, tive sorte de não morrer, pois sou hipertensa. Na época, 1982, eu desconhecia a existência do racismo estrutural e institucional. Perdi mais 3 filhos e fui histerectomizada sem necessidade”, diz uma mulher negra, vítima de racismo obstétrico, que também não quis ser identificada.

É comum que as mulheres que sofrem racismo sintam vergonha e não queiram se identificar ou denunciar formalmente tais situações, inclusive por medo de não conseguir provar. “Quando essas denúncias chegam ao sistema de saúde, aos órgãos competentes, elas são mal compreendidas. As mais graves se tornam problema dos profissionais envolvidos, e as mais leves são entendidas enquanto um problema da vítima. Por muito tempo, inclusive, havia uma plaquinha de desacato à autoridade em hospitais e postos de saúde, como se a pessoa  que exigisse seus direitos, estivesse desacatando os profissionais. Tudo isso tem a ver com a dinâmica entre as instituições, o público e as relações de poder”, explica Lúcia Xavier.

“Na hora você se sente impotente, o médico está naquela posição de que sabe tudo sobre o corpo humano. Então se ele está subestimando a minha dor,  logo penso que não deve ser mesmo coisa séria. Isso é muito perigoso e muito angustiante também. Como mulher preta, noto na minha história e na de mulheres da minha família uma dificuldade em se cuidar, em prevenir. Já é difícil, e se quando me dou ao luxo de cuidar de um problema que não é agudo, o médico subestima minha queixa, aí fica mais difícil ainda”, diz a advogada Letícia Pereira.

Tudo isso, faz com que a mulher sofra de modo mais intenso com as consequências psicológicas do racismo e a consulta de rotina vira sinônimo de medo e ansiedade.

“A violência obstétrica que sofri foi um gatilho para muitos transtornos de ansiedade que tenho até hoje. Foi um sofrimento mental muito grande ficar a mercê de médicos que se recusaram a fazer meu parto cesárea alegando que eu tinha quadris largos e que mulheres negras nasceram para ter parto normal (sim, eu ouvi isso!). Eu já estava na 41ª semana de gestação, e um mês antes tinha ficado internada com pré-eclâmpsia por 15 dias. Uma sensação de impotência e um medo enorme de sofrer isso de novo”, recorda outra mulher.

Não é mau atendimento, é racismo

“As situações que vivi sempre foram veladas, nada muito direto. Mas depois de um tempo vem a sensação de que houve uma falta de cuidado, falta de zelo, que não aconteceria com uma paciente branca”, conta a advogada Letícia Pereira, 23 anos, ao citar como exemplos a média de duração do atendimento, a ausência de toque e a qualidade da inspeção visual durante um exame dermatológico.

A jornalista Layane Coelho também sentiu na pele o peso do preconceito durante uma consulta com uma dermatologista. “Eu estava com micose na unha porque tenho alergia a sabão, aí durante o atendimento a médica disse ‘você tem que pedir sua patroa para comprar luva’. Na época, eu era estudante de jornalismo e em nenhum momento falei que trabalhava como faxineira ou empregada doméstica”.

“Falei pra ela que a única louça que lavo é a minha, mas ela insistiu e repetiu ‘você tem que pedir sua patroa para comprar uma luva’.

Nos atendimentos, são recorrentes agressões verbais, “elogios” ofensivos, assédio sexual, violência obstétrica, recusa de anestesia, falta de escuta à queixa, diagnóstico equivocado e/ou tardio, além de falas eugenistas, que pressupõem a existência de que raça determina questões de saúde –  a exemplo de “você é mais resistente a dor”, “negro tem sangue ruim” e “esse é um mal da raça”.

“O racismo na saúde pode incluir tanto a falta de acesso ou a má qualidade dos serviços, estendendo-se às próprias relações de poder entre os usuários e os profissionais dentro das instituições, até o dano físico ou psicológico decorrente do atendimento”, explica a médica e mestre em Saúde da Família Denize Ornelas.

“A identificação destas situações não é uma tarefa simples, e profissionais e pacientes só serão capazes de percebê-las se estiverem atentos para a existência e importância das relações étnico-raciais”, complementa.

Sua consulta tem cor?

Há seis anos, o coletivo NegreX reúne médicas e médicos negros e estudantes de medicina para combater o racismo na saúde, tanto no ambiente acadêmico como na assistência direta à população. O grupo busca ampliar o tema por meio de intervenções no currículo médico e organização de eventos.

“A premissa que rege a fundação do nosso coletivo é a de que o racismo é um problema estrutural que também perpassa nossas formações. Na medicina, isso acontece de forma violenta porque a gente está em contato direto com o outro, com o paciente”, explica a estudante de medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e integrante do coletivo NegreX  Sabrina Costa, 20 anos.

Na palestra formativa “Sua Consulta Tem Cor?”, o coletivo apresenta três casos clínicos diferentes e provoca uma discussão sobre a atuação médica em cada um deles. A palestra é feita tanto com alunos do primeiro semestre, quanto do internato, na fase final do curso, de modo a estimular uma atuação profissional atenta à questão racial.

“Quando começamos a fazer a palestra, em 2016, as discussões rendiam pouco. Por mais que a gente motivasse o debate, aqueles eram temas que nunca tinham sido discutidos na universidade daquele modo. Hoje, com o sucesso da política de cotas e uma diversidade no corpo discente dos cursos de medicina, esses debates rendem muito mais, com os próprios alunos contando suas experiências enquanto pacientes, coisa que quase não existia há quatro anos”, compara Sabrina.

“Há uma melhora na discussão, um entendimento maior, principalmente nas turmas que estão chegando agora. Quem já está se formando, ainda está um pouco atrás. Então, há uma preocupação com os médicos que vão estar no mercado agora. Daqui a seis anos a gente acredita que vai estar melhor” – Sabrina Costa, estudante de medicina da UFBA e integrante do coletivo NegreX

No currículo formal, o avanço ainda é tímido. O próprio conceito de raça como um determinante socialmente construído é contestado por alguns professores, já que biologicamente “não existe raça”.

“Eu me autodeclarei preta e o médico contestou dizendo que eu deveria entender que eu era igual a todo mundo. Só que depois, no exame ginecológico, ele perguntou meio que já afirmando se eu já tinha tido filhos, mesmo eu tendo dito antes que não”, recorda uma mulher que respondeu ao questionário d’AzMina, mas não quis se identificar.

Para a médica Denize Ornelas, situações como essa podem ser evitadas com o letramento racial dos profissionais que ainda hoje acreditam que não falar em raça é uma forma de tratar todo mundo. “Respeitar a autodeclaração e dar a devida importância ao fator raça no atendimento é se permitir perceber que a queixa e o quadro clínico do paciente podem estar associados ao racismo”, defende.

A assistente social Lúcia Xavier é mais enfática ao descrever o problema e exigir soluções. “Todo mundo acha que esse é um problema de formação dos agentes de saúde, que não estão adequados para esse atendimento. Mas isso não é verdade. Ninguém entra no sistema de saúde sem experiência e formação. A humanização é um princípio do SUS. Não acredito que o foco para combater as situações racistas do atendimento seja a formação que, claro, deve ser incentivada de forma contínua. Isso é fruto de uma questão ideológica, da crença de que alguns merecem um atendimento de menos qualidade que outros, e isso demanda que as pessoas denunciem e que os profissionais e instituições sejam responsabilizados jurídica e formalmente”, comenta.

A medicina ainda é branca

Em 2020, o Brasil atingiu o marco histórico de meio milhão de médicos. As características demográficas da classe, no entanto, ainda seguem o padrão hegemônico: branco e rico.

“Essa realidade mostra o quanto é importante o profissional de saúde entender que para uma pessoa negra ou indígena, ou mesmo para uma pessoa mais pobre, essa relação pode ser intimidadora. O paciente já chega acanhado, receoso. É preciso deixar essa pessoa à vontade para tematizar as questões que têm a ver com a vivência e a experiência dela”, ressalta Ornelas.

De acordo com o estudo Demografia Médica, da Universidade de São Paulo (USP), lançado em dezembro, dentre os concluintes de Medicina em 2019, 67,1% se autodeclararam da cor ou raça branca; 24,3% se declararam pardos, enquanto apenas 3,4% se autodeclararam da cor ou raça preta. Os demais se declararam de cor ou raça amarela (2,5%) e indígena (0,3%), além de 2,4% que não quiseram declarar. Entre os períodos estudados (2013, 2016  e 2019), houve um aumento pequeno e gradual do percentual de alunos autodeclarados pretos e pardos.

Embora não haja nenhum dado consolidado indicando quantos profissionais de saúde pretos e indígenas realmente atuam no mercado de trabalho, considerando os que conseguem finalizar o curso,  são poucos. Foi o que o dentista Arthur Lima percebeu quando se formou na faculdade de odontologia, em 2015. “Uma colega me perguntou se conhecia um outro dentista negro. Procurei, procurei e não achei. A partir disso, quis criar algo que pudesse facilitar esse acesso”, diz ele.

Sócio-fundador da AfroSaúde, uma plataforma que conecta público a profissionais de saúde negros, Arthur foi eleito no ano passado uma das 100 pessoas de descendência africana mais influentes do mundo por conta da ideia. Para ele, o grande objetivo é que a população negra se sinta mais confortável nas consultas e no atendimento.

O projeto que, inicialmente, só abarcava a cidade de Salvador logo tomou proporção nacional. Hoje o aplicativo conta com mais de 500 profissionais inscritos, das mais diversas especialidades –  as duas em que há maior dificuldade de encontrar profissionais negros são a dermatologia e a ginecologia.

Em nota, o Conselho Federal de Medicina ratifica que é vedado ao médico  qualquer tipo de expressão de preconceito contra o paciente ou familiar e ressalta que o Código de Ética Médica cita em vários trechos a necessidade de se respeitar os pacientes segundo suas características.  

Ainda segundo o CFM, não há, na instância, casos de médicos sendo denunciados por racismo.  “No entanto, lembramos que o Conselho Federal de Medicina é uma instância recursal, ou seja, nele tramitam apenas processos que já foram julgados nos conselhos regionais e em que, após a sentença inicial, uma das partes sentiu necessidade de pedir uma revisão do que foi decidido”, diz a nota. Atualmente, o conselho não conduz estudos ou levantamentos sobre este tipo de situação.

VOCÊ É PROFISSIONAL DE SAÚDE?
10 DICAS PARA UMA CONSULTA SEM RACISMO

Não é vitimismo, nem “mimimi”
As populações negra e indígena vivenciam realidades que exigem um atendimento de saúde específico.

Não comente aparência física
Nem para criticar, nem para elogiar. Comentários, frases e palavras revestidas de aparente normalidade carregam e fortalecem o preconceito e o racismo dissimulado.

Respeite a dor da sua paciente
Há uma crença de que pessoas negras são mais resistentes à dor. Isso é racismo! Não negue anestesia, analgésicos ou quaisquer medicações que possam aliviar os sintomas da sua paciente.

Abra mão dos estereótipos
Mulheres negras são hiperssexualizadas e isso faz com se intua que são heterossexuais, com vida sexual ativa e com mais chances de ter ISTs e gravidez indesejada. Deixe de lado o preconceito e ouça o que a sua paciente tem a dizer.

Não existe “mal da raça”
Hipertensão, diabetes, anemia falciforme são frequentes na população negra, mas se você associa a ocorrência delas a um “mal da raça” ou a “sangue ruim”, você está sendo racista! Esses falsos diagnósticos já foram usados por médicos eugenistas para defender uma superioridade racial e legitimar a segregação.

Facilite o acesso aos medicamentos
Ao receitar um medicamento, informe sempre o princípio ativo, de modo que a paciente possa buscar o laboratório que mais corresponda à sua realidade financeira. Nunca pressuponha que ela pode ou não pagar pelo tratamento.

Prescreva exames
Não é porque as populações negra e indígena têm, estruturalmente, menos acesso a exames, que o médico não deve prescrevê-los.

Fale sobre raça
Pergunte sobre como a sua paciente se autodeclara e se aproprie do vocabulário para tratar de raça durante sua consulta. Assim você estará realmente atenta às questões proporcionadas ou agravadas pelo racismo.

Invista em sua formação
Os cursos superiores ainda estão bastante atrasados nessa discussão. Atuar na assistência à saúde de negros e indígenas exige formação e capacitação contínuas.

Lembre-se: isso é só o básico
Respeito, humanização, acolhimento são somente o básico para um atendimento comprometido com as pessoas e com o fim do racismo.

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As lições que podemos aprender com a legalização do aborto na Argentina https://canalmynews.com.br/mais/licoes-legalizacao-do-aborto-na-argentina/ Mon, 15 Feb 2021 16:01:40 +0000 http://localhost/wpcanal/sem-categoria/licoes-legalizacao-do-aborto-na-argentina/ A onda verde não vai chegar ao Brasil sozinha. A luta das argentinas mostra que é preciso muita ação e mobilização para fazer a legalização do aborto acontecer

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Da Revista AzMina

Era madrugada do dia 30 de dezembro quando, para a socióloga Dora Barrancos e para milhares de hermanas ativistas, a Argentina passou a ser um país mais igualitário e justo. Enquanto o Senado votava e aprovava a legalização do aborto até a 14ª semana de gestação, elas se abraçavam comovidas na porta do Congresso ao rememorar o enorme número de vidas que a criminalização do procedimento vitimou ao longo dos tempos. “Com a sanção da lei todas as emoções transbordaram”, conta Dora. 

Em 2018, nós, brasileiras, fizemos uma vigília parecida, em frente ao STF (Supremo Tribunal Federal), onde era realizada uma audiência para discutir a ADPF 442, que pede a descriminalização o aborto no país. Mas o desfecho não foi o mesmo e a vigília brasileira não terminou em celebração. Não só a votação da ADPF 442 está parada até hoje, como os movimentos políticos têm sido todos no sentido de restringir ainda mais o direito por aqui.

Mas a esperança ainda existe: um dia, o cenário na Argentina também foi ruim. E para entender o que podemos aprender com elas para que um dia o cenário mude aqui também, fomos conversar com algumas das responsáveis pela mudança, quatro ativistas e pesquisadoras que acompanharam de perto a conquista. E vale saber: as informações aqui descritas também são fruto de quase quatro anos de pesquisa de doutorado desta jornalista no Programa de Pós-Graduação Interunidades Integração da América Latina na USP (Universidade de São Paulo), que será defendida em 2021. 

“Não tenho dúvidas de que a lei de aborto na Argentina se constitui como um dado exemplar, estimulante, bastante decisivo para a América Latina. Ela fortalece substancialmente os movimentos feministas da região a persistirem nas suas lutas”, diz a Dora Barrancos.

O contexto histórico

Antes de contar o segredo do sucesso, é preciso dizer que essa é uma luta antiga das mulheres na Argentina. “Esse momento é fruto da persistência das feministas, que mantiveram o tema na agenda política ao longo dos anos, mas também é efeito da grande mobilização nas ruas”, diz a advogada Gabriela Rondon, pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, que trabalha pela descriminalização do aborto no Brasil.

Um marco importante nessa história foi o fim da Ditadura Militar na Argentina, nos anos 1980, quando as mulheres tentaram incluir nas novas leis do regime democrático a interrupção voluntária da gestação como um direito. Nessa época, a luta ainda se concentrava na militância, especialmente por meio da incidência de organizações como a ATEM (Associação de Trabalho e Estudo da Mulher), fundada em 1982 por pesquisadoras e ativistas, que promove pesquisas e mobilização em temas relacionados à violência contra a mulher e publica a revista Brujas, que trata o acesso ao aborto como tema de direitos humanos.

A principal estratégia de ação eram as marchas nas ruas. É de 1984, por exemplo, a imagem da feminista María Elena Oddone subindo as escadas do Congresso com uma placa “Não à maternidade, sim ao prazer”, na primeira marcha do Dia Internacional da Mulher na democracia. 

Os atos, no entanto, não foram suficientes, e a forte influência da Igreja Católica fez com que a discussão não avançasse. E por anos, essa influência perdurou: durante a visita do Papa João Paulo 2º, em 1998, o então presidente Carlos Menem promulgou uma lei estabelecendo o 25 de março como o “Dia da Criança por Nascer”. 

Para as argentinas, no entanto, a luta não estava esquecida, e a legalização do aborto permaneceu como uma dívida da democracia com as mulheres. “Pensar na legalização como uma dívida histórica toca em um ponto afetivo e político, muito sensível à nossa sociedade. É uma maneira de mobilizar esperanças, mostrando que não renunciamos e que ainda lutamos pelos direitos humanos”, diz a socióloga Nayla Vacarezza, professora e pesquisadora da UBA (Universidade de Buenos Aires).

Os Encontros Nacionais de Mulheres

Junto com a democracia, nasceu um evento que ajuda a explicar a articulação das argentinas ao longo das últimas décadas: os Encontros Nacionais de Mulheres. Eles são realizados anualmente desde 1986, acontecem durante três dias da segunda semana de agosto, reúnem participantes de todos os cantos do país e de diversos movimentos, desde sindicatos a grupos LGBTQIA+, de vários espectros políticos e todo tipo de militância. 

Na programação, há uma abertura, grupos de trabalho, painéis de discussão, uma feira para que as organizações comercializem seus produtos e financiem o deslocamento, e uma grande marcha de encerramento. Em 2020 não houve encontro por conta da pandemia, mas em 2019, em La Plata, foram cerca de 200 mil participantes e quase 90 grupos de trabalho. 

Ao final de dois dias, cada grupo produz um documento com pontos e propostas de invenção sobre o tema tratado (por exemplo: aborto, comunidades indígenas, imigração, maternidade), que são incluídos no documento final do evento. A ideia é que, mesmo nas diferenças, elas consigam tirar dessas reuniões pautas comuns ao movimento de mulheres.

Na plenária final, elas fazem um balanço do encontro e decidem, por meio de votação, qual será a próxima cidade a receber o encontro. Uma comissão com representantes de organizações locais é formada para buscar apoio de estrutura, logística e de financiamento. Muitas participantes chegam com ônibus fretados (pagos por elas ou pelas organizações que representam) e ficam em dormitórios coletivos montados para o evento em escolas e quadras públicas. 

Foi em um desses encontros que surgiu a ideia da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito, lançada oficialmente em 2005. 

A Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto

“Como a Campanha nasceu em um encontro, conseguimos unificar demandas de diferentes feminismos e construir a luta pela legalização do aborto diante da sociedade como a demanda de maior consenso dentro dos feminismos, do movimento de mulheres, lésbicas, travestis e trans. Foi um acordo que se deu cara a cara  e territorialmente nos encontros nacionais de mulheres. É como se, a cada ano, a gente renovasse o contrato feminista, social e político de lutar por esse direito e por essa demanda”, explica Laura Salomé Canteros, jornalista feminista e integrante da Campanha há dez anos. 

Desde o começo, a campanha reúne associações profissionais, acadêmicas e ativistas para pautar o tema a nível nacional. Essa aliança, que hoje tem mais de 700 organizações, deu força ao movimento, e fez dela uma das protagonistas do debate nos últimos 15 anos.

Outro ensinamento importante das argentinas foi a capilaridade das mobilizações, com a criação de comitês locais para discutir o projeto que seria votado em 2018 pelo Congresso. Isso foi feito por meio das redes de profissionais favoráveis à legalização e de organizações associadas à Campanha Nacional.

“A mobilização conseguiu ir para além de Buenos Aires, tinha representantes em várias províncias, inclusive nas mais conservadoras”, diz Gabriela Rondon.

Os comitês locais da campanha são formados por ativistas e integrantes de organizações sociais, políticas, estudantis, sindicais e de direitos humanos que fazem parte da Campanha Nacional. Há pelo menos um grupo em cada Estado do país, que se reunia periodicamente de forma presencial para transmitir e colocar em prática os acordos firmados nas plenárias anuais nacionais. “Eles têm o objetivo de federalizar, territorializar a luta pela despenalização social e a legalização do aborto”, afirma Laura Salomé, integrante da Campanha. 

Isso ajudou a interiorizar o debate, mostrando que não se tratava de um tema apenas para senadores e deputados, mas de todo o país. “Teve muito impacto que essa demanda estivesse em todas as províncias, com a realização de plenárias locais”, afirma Nayla Vacarezza.

“Isso é importante, porque não basta aprovar o projeto de lei, é preciso sensibilizar, especialmente o sistema de saúde, para que depois ele seja implementado”. Nayla Vacarezza.

Nas redes e nas ruas

Uma das imagens características dos atos pela legalização do aborto na Argentina são as que unem adolescentes e veteranas do ativismo. Isso foi impulsionado pelos atos do Ni Una Menos, que em 2015 fizeram milhares de mulheres saírem em protesto contra a morte da adolescente Chiara Páez, 14, que estava grávida quando foi assassinada pelo namorado.

Os atos voltaram no ano seguinte, quando outro caso de feminicídio mobilizou as argentinas em todo país: o de Lucía Perez, 16, que morreu após ser drogada, violentada e empalada por dois homens, de 41 e 23 anos. O crime gerou uma greve nacional de mulheres e os protestos alcançaram outros países da América Latina, como o Brasil. 

Nessa mobilização, as mulheres perceberam sua força, articularam-se e uniram diferentes gerações. Logo, a pauta, inicialmente contra o feminicídio e a violência de gênero, incluiu também a demanda pelo aborto legal, seguro e gratuito. Além das ruas, elas mobilizaram campanhas nas redes sociais com o uso de hashtags como #NiUnaMenos, #MiPrimerAcoso,  #AbortoLegalYa e #SeraLey.

“Havia mulheres de 80 anos ao lado de garotas de 15. Isso fez com que conseguíssemos atuar por todos os lados, porque cada geração aporta com um tipo de conhecimento. As jovens aprenderam com as mais velhas, que, por sua vez, também se pintaram com glitter e entraram para o Twitter. Então, não foi um caminho de apenas uma via, e esse foi um dos motores para o êxito”, explica Nayla Vacarezza.

Um dos nomes que emergeriram com o Ni Una Menos e as marchas pelo aborto legal foi o de Ofelia Fernández, que em 2015 tinha apenas 15 anos e era uma das representantes do movimento secundarista. Hoje aos 20, é uma das mais jovens deputadas do país e, por onde vai, leva seu lenço verde da campanha pela legalização do aborto.

Entre as veteranas, estão nomes como a socióloga Dora Barrancos, 80, a médica Martha Rosenberg e as advogadas Nelly Minyersky, 92, e Nina Brugo, 77, que apareciam na linha de frente das marchas pelo aborto legal.

Tirar o aborto do armário

Em outra frente, uma série de coletivas passaram a militar pelo aborto seguro na Argentina, mesmo em contexto de criminalização. A primeira iniciativa surgiu em 2009, quando um grupo de lésbicas feministas lançaram uma linha telefônica para dar informações sobre como interromper uma gestação com medicamentos.

Depois disso, iniciativas semelhantes pipocaram pelo país (e também por outras partes da América Latina). 

O que elas fazem é tornar acessível a informação pública e presente nos protocolos da OMS (Organização Mundial da Saúde) e de associações médicas, como a Figo (Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia), sobre como fazer um aborto seguro. Segundo esses manuais internacionais, o uso de medicamentos é seguro, desde que o procedimento seja realizado da forma e com a dosagem correta.

“Essas iniciativas tiveram o impacto de demonstrar que o aborto é um direito e uma realidade para as mulheres e pessoas com capacidade de gestar e abortar. Estabeleceram as bases para dar uma resposta à problemática de saúde pública”, diz Laura Salomé, da Campanha Nacional. 

Na Argentina, uma das mais conhecidas são as Socorristas en Red, uma aliança que reúne 58 coletivas feministas. Além de dar informação, elas tratam de discutir o estigma e a culpa normalmente associadas ao processo, tratando-o como parte da vida reprodutiva de muitas mulheres. 

“Essas coletivas foram e são chave tanto no acompanhamento como na articulação com o sistema de saúde. Elas têm sido pioneiras em chegar às mulheres com informação de qualidade, precisa e em formatos variados. Também são o motor da despenalização social do aborto”, afirma a médica Mariana Romero, uma das coordenadoras do REDAAS (Rede de Acceso ao Aborto Seguro) na Argentina.

Segundo os relatórios do grupo, entre janeiro e outubro de 2020 elas acompanharam 13.408 abortos; nove em cada dez mulheres atendidas não precisaram acessar os serviços de saúde após o procedimento.

“A partir do ativismo, sustentamos que cada aborto é um mundo. Queremos escutar e acompanhar e, com isso, politizar os desejos que nos movem a tomar determinadas decisões em certos momentos de nossas vidas”, afirmou Ruth Zurbriggen, uma das integrantes das Socorristas em audiência no Senado em dezembro de 2020. 

A atuação dessas ativistas é facilitada pelo contexto na Argentina. Desde antes da legalização, o Misoprostol (também indicado para tratar problemas gástricos) podia ser comprado na farmácia com receita médica. No Brasil, ele é de circulação restrita aos hospitais com atendimento obstétrico.

“É claro que existem essas redes no Brasil, mas aqui elas são mais anônimas, e com razão. A nossa legislação é mais restritiva que a Argentina em relação ao acesso e à circulação do Misoprostol. Possuir o remédio pode ser muito mais grave do que o crime de aborto em si. Por isso, a gente enfrenta um cenário de medo e estigma mais intenso nesse tema, um cenário único no mundo”, explica Gabriela Rondon.

Insistir, e insistir mais um pouco

Assim que foi criada, a primeira iniciativa da Campanha foi elaborar e protocolar, em 2006, um projeto pedindo a legalização do aborto no Congresso Nacional. Elas repetiam esse processo mais sete vezes até 2018, quando o texto foi analisado pela primeira vez pelos deputados. 

“Acredito que a maior lição do movimento na Argentina foi a obstinação feminina, que tem raiz nas mães e avós, que estão em todas as lutas e têm como valor a democracia”, afirma a pesquisadora da UBA.

De tanta insistência, o texto foi finalmente votado em 2018, durante o governo de Mauricio Macri. Apesar de contrário à legalização, o presidente preferiu não interferir diretamente no debate, já que o país vivia uma crise econômica e discutir aborto desviava a atenção dos temas da economia. 

O projeto foi aprovado pelos deputados por 129 votos a favor e 125 contrários, após horas de vigília dos movimentos feministas ao lado de fora do Congresso. O texto, no entanto, acabou rejeitado pelos senadores, por 38 a 31, onde os conservadores tinham maioria e defendiam que era preciso preservar o direito à vida desde o nascimento. “Não será menos trágico um aborto porque se realiza em um hospital. Não, será trágico da mesma forma. O objetivo é que não existam mais abortos na Argentina”, disse à época o senador Esteban Bullrich, ex-ministro da educação de Mauricio Macri. Apesar da negativa, o debate já havia se instalado, e as feministas entenderam que era o momento de insistir um pouco mais. 

“O efeito da vitória parcial de 2018 foi gigantesco. A sensação naquele momento era que faltava pouco, que a sociedade já tinha entendido que aborto era uma questão de saúde pública. Em seguida houve eleições, uma mudança da composição na Câmara dos Deputados e no Senado”, diz a pesquisadora da Anis. 

Naquele ano, enquanto a Argentina discutia o tema no Legislativo, as brasileiras acompanhavam no STF (Supremo Tribunal Federal) a audiência pública que discutia a ADPF 442, ação que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. Vale lembrar, AzMina já mostrou que apenas um projeto de lei tentou fazer o mesmo no Congresso na última década no Brasi.

“Eu acredito que, para nós, as principais lições foram: não desistir da luta, não se render jamais e manter a maior unidade, apesar das diferenças que caracterizam os nossos feminismos”, diz a socióloga Dora Barrancos.

De repente, todo mundo falava sobre aborto

Tanto a incidência política, quanto o ativismo em defesa do aborto seguro e as grandes mobilizações nas ruas fizeram com que o tema enfim virasse pauta do Congresso argentino em 2018. 

Nesse momento, a discussão ganhou profundidade e chegou não só ao Parlamento, como também à mesa do jantar, aos programas jornalísticos, aos almoços de trabalho e aos intervalos da escola. De repente, todo mundo falava sobre o assunto.

Ganhou força o argumento do aborto como um direito e uma questão de saúde pública e muita gente acabou mudando de lado, como a senadora, ex-presidente e atual vice, Cristina Kirchner.

“Eu antes era uma pessoa que dizia ‘não sou feminista, sou feminina’. Que estupidez! Não foi apenas [minha filha] Florencia que me fez mudar de ideia, foram também as garotas do ensino médio e as minhas netas, Helenita y María Emilia”, disse em seu discurso ao votar a favor do projeto em 2018.

Assim como Kirchner, as pesquisas de opinião mostraram que mais gente aprovava uma mudança na lei. Segundo pesquisas realizadas pela Ipsos, entre 2014 e 2020, passou de 65% para 75% a porcentagem dos argentinos que aprovavam o aborto em determinadas circunstâncias.

“Em 2018, houve um giro. Foi quando começamos a usar os lenços verdes na vida cotidiana, levando o debate para todos os lados, como se a vida fosse igual à luta pelo aborto legal”, afirma Vacarezza, pesquisadora da UBA.

O lenço verde virou um símbolo do movimento da luta pelo aborto legal. Ele é uma homenagem aos lenços brancos usados pelas Mães da Praça de Maio, que buscam até hoje filhos e netos desaparecidos durante a Ditadura Militar. A cor é usada há mais de 15 anos pelas feministas que lutam pela legalização do aborto e foi decidida coletivamente por eliminação: não podia ser azul (associada à bandeira do país), violeta (do feminismo) nem branco (usado pelas Mães de Maio). Além disso, está inscrito o lema “Educação sexual para decidir, anticonceptivos para não abortar e aborto legal e gratuito para não morrer”, inspirado no usado por feministas italianas na década de 1970.

Aproveitar o contexto político

Ainda na ressaca da votação de 2018 e das mobilizações da Maré Verde, o projeto de legalização do aborto virou pauta das eleições presidenciais no ano seguinte. As feministas continuaram pressionando e o assunto não esfriou. Então candidato, Alberto Fernandez não só se posicionou a favor da mudança na lei como prometeu apresentar um projeto assim que assumisse o cargo. 

As mobilizações feministas pela aprovação do projeto um ano antes foram decisivas para isso. “A demanda social depois do debate de 2018 foi imensa, imparável e, pela primeira, quem não se comprometesse com essa causa ficaria de fora. Além disso, os argumentos apresentados no Congresso foram muito contundentes desde a perspectiva de saúde pública e de direitos. Em terceiro lugar, muitas candidatas se definiram como verdes, de diferentes partidos, e isso também pressionou”, afirma Mariana Romero. 

Um presidente declaradamente a favor do aborto era algo novo impensável há alguns anos atrás. Isso só foi possível em 2019, diz Dora Barrancos, com a carreira de Fernandez como professor de direito penal na Universidade de Buenos Aires e o apoio que tem desde a campanha. “Sua candidatura foi apoiada por um grande número de feministas, e não poucas exercemos cargos no governo”, afirma a socióloga, que é uma das assessoras do presidente em assuntos de gênero. 

As eleições de 2019 também promoveram uma mudança na Câmara e no Senado, onde Fernandez tinha maioria, abrindo espaço para uma nova discussão do projeto.

Vale citar outro ingrediente importante: a menor desigualdade de gênero no Legislativo argentino. “Vários mecanismos de reforma política fizeram com o Congresso tivesse mais mulheres e pessoas mais jovens. Isso dá a sensação de representação, de maior diálogo entre as ruas e a institucionalidade”, afirma a advogada Gabriela Rondon.

De fato, dados do Observatório de Gênero da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), ligada à ONU, mostram que o Brasil tem um dos menores índices da Região. Por aqui, as mulheres são 14,6% do Legislativo, enquanto na Argentina elas são 40,9%.

Em 2020, o contexto então parecia finalmente  favorável: presidente que apoiava a legalização do aborto, renovação no Congresso, alta participação de mulheres, maior aceitação por parte da sociedade e mobilização feminista. Só que aí apareceu uma pandemia, adiando um pouco os planos. 

“Para nós, a Argentina é um exemplo muito positivo, porque é um país próximo e mostra que, mesmo em um ano de pandemia e crise, em um país católico como o nosso, era hora desse tema vir a público. Foi um ato de coragem política e mostra que não existe o melhor momento, é preciso enquadrar o aborto como um assunto urgente”, diz a advogada Gabriela Rondon.

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