Arquivos Laura Scofield da Agência Pública - Canal MyNews – Jornalismo Independente https://canalmynews.com.br/post_autor/laura-scofield-da-agencia-publica/ Nosso papel como veículo de jornalismo é ampliar o debate, dar contexto e informação de qualidade para você tomar sempre a melhor decisão. MyNews, jornalismo independente. Thu, 21 Apr 2022 19:29:26 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Txai Suruí: ‘Não estão queimando só a Amazônia, estão queimando as pessoas’ https://canalmynews.com.br/politica/txai-surui-nao-estao-queimando-so-a-amazonia-estao-queimando-as-pessoas/ Sat, 23 Apr 2022 15:00:13 +0000 https://canalmynews.com.br/?p=27796 Uma das principais liderança jovens de Rondônia, Txai falou sobre a mobilização da juventude indígena no Estado e a importância das eleições de 2022 para preservar a floresta.

O post Txai Suruí: ‘Não estão queimando só a Amazônia, estão queimando as pessoas’ apareceu primeiro em Canal MyNews – Jornalismo Independente.

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Txai é um apelido para Walelasoetxeige, nome que significa “mulher inteligente” em Tupi Mondé, a língua falada pelo povo Paiter Suruí, que vive em Rondônia. Filha de duas lideranças históricas de seu estado — o cacique Almir Suruí e a ativista Ivaneide Bandeira, fundadora da organização de defesa etnoambiental Kanindé —, a jovem ativista se destacou no ano passado ao discursar na 26º Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP 26), que aconteceu em Glasgow, na Escócia. Além de representar os povos brasileiros em eventos nacionais e internacionais, Txai hoje coordena o movimento da juventude em defesa dos direitos dos povos tradicionais em seu estado.

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“Quando a gente fala em destruição e desmatamento da Amazônia, as pessoas acham que só estão cortando árvores, só estão botando fogo na Amazônia, e elas não se dão conta de que quando a gente vai fazer o nosso monitoramento para a defesa do nosso territórios, as nossas vidas estão em risco”, afirmou em entrevista à Agência Pública, dias depois do 18° Acampamento Terra Livre, que reuniu cerca de 8 mil de indígenas em Brasília. “A gente não só está fazendo essa proteção, a gente está fazendo essa proteção com nossas vidas.”

Mesmo já tendo ido três vezes a Brasília com o movimento indígena, esse foi o primeiro ATL que a jovem liderança acompanhou. Txai Suruí esteve presente na primeira semana da mobilização, junto à delegação de Rondônia e à Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Com agenda apertada, participou de plenárias no local e reuniões no Senado e no domingo (10) voou para São Paulo, para participar da primeira exibição brasileira do filme ‘O Território’, que conta a história de luta do povo rondoniense Uru-Eu-Wau-Wau na defesa de seus territórios contra posseiros, desmatadores e agricultores.

Da capital paulista voou para a Holanda para levar o filme para outro festival, o holandês Movies That Matter [do inglês, Filmes que importam, em tradução livre], que promove obras que abordam os direitos humanos. Retornou na última semana a Porto Velho, onde mora, direto para o trabalho.

Txai Suruí foi a primeira de seu povo a cursar direito na Universidade Federal de Rondônia e, além de atuar na ONG Kanindé, que hoje atende 21 povos no estado, ajudou a criar seu próprio movimento para organizar os jovens indígenas rondonienses que trabalhavam cada qual em seu território. “Se está todo mundo fazendo a mesma coisa e junto a gente é muito mais forte, por que a gente ainda não está organizado?”, foi a pergunta que fundou a Juventude Indígena de Rondônia, que tem representantes em 12 povos.

“Querendo ou não a gente vive em um outro tempo, e hoje o nosso tempo é um tempo muito jovem. É um tempo muito tecnológico, muito rápido, que é uma coisa muito diferente do que os nossos mais velhos viveram, principalmente de alguns povos daqui”. A ativista também é conselheira da WWF Brasil e voluntária do Engajamundo, ONGs que abordam questões climáticas, ambientais e sociais.

Txai conta que a Juventude Indígena também está empenhada em aumentar a representatividade indígena no Congresso e em parceria com o Tribunal Regional Eleitoral e a Universidade Federal de Rondônia tem se mobilizado para regularizar os documentos de seus povos a tempo da eleição. Isso inclui um esforço para levar as urnas para as aldeias. “O mundo inteiro está falando que o mundo está acabando, é literalmente isso que está acontecendo e já tem pessoas morrendo por isso, inclusive os povos indígenas. Para mudar isso, a gente tem que mudar o nosso Congresso também.”

Leia a entrevista com Txai Suruí na íntegra:

Como começou a sua trajetória enquanto ativista e liderança jovem?

É muito difícil falar sobre quando começou essa trajetória, porque eu venho seguindo muito a trajetória dos meus pais, que também são dois ativistas de direitos humanos, meio ambiente e direito dos povos indígenas. Quando eles foram perseguidos, ameaçados, e a gente teve que ser escoltado pela Força Nacional, eu vivi isso e meus irmãos viveram isso.

Mas existem historinhas [sobre o meu ativismo] que minha mãe e meu pai sempre contam: a minha mãe conta que a gente estava em um protesto e eu sumi, eu tinha cinco anos, e quando ela me achou eu estava com o microfone na mão segurando a mão de um político, algum político do Partido Verde, pedindo pelos direitos das crianças. Ainda quando eu era pequenininha, tem uma história também com meu pai e com meu avô, que eu tava na aldeia na linha 12 —  as aldeias se organizam em linhas — e todos os representantes do meu povo estavam nessa aldeia para alguma comemoração lá, e aí o meu avô e meu pai me colocaram em cima de um tronquinho e disseram que eu era “labiway”, o que significa líder na língua do meu povo. Eu sempre fui muito ligada às organizações, quando eu estava na faculdade eu fazia parte do centro acadêmico, fui a primeira presidente indígena do centro acadêmico de Direito da UNIR [Universidade Federal de Rondônia], mas passei a me declarar ativista em 2018, quando eu começo a trabalhar na Canindé, que é uma organização que foi fundada pela minha mãe para trabalhar com povo Uru-Eu-Wau-Wau. Essa questão de ativismo é uma coisa que está na minha família desde sempre e a gente sempre esteve ligado nisso, mesmo pequenininhos.

Quando você decidiu fundar a Juventude Indígena de Rondônia?

Foi durante a pandemia, em 2020. A gente fundou o movimento na internet mesmo, pelo WhatsApp, pelas mídias sociais, e foi com o intuito de organizar os jovens líderes que a gente já via dentro dos territórios se articulando e trabalhando na luta. Só que eu via isso e pensava “‘tá todo mundo fazendo a mesma coisa e junto a gente é muito mais forte, por que a gente ainda não está organizado?”. E aí veio a ideia da gente se organizar e se articular como jovem para fortalecer o próprio movimento indígena aqui do Estado. Hoje eu digo com certeza que as organizações indígenas mais fortes do meu estado são o movimento da juventude e a associação de mulheres.

O grupo da juventude tem alguma pauta principal?

[O objetivo principal] era unir todas essas lideranças jovens, porque o que a juventude sofre é o que o território inteiro sofre. O que uma mulher indígena passa é o que o território dela está passando também, e o que os jovens indígenas passam também é o que o território está passando. A gente também traz outras pautas mais jovens, como educação. Falamos muito da importância da formação, não só formação profissional dentro da universidade, mas formação política dos jovens e a importância de formar os jovens politicamente para estarem engajados na defesa dos seus direitos. A gente traz as pautas que são comuns, de território, do que a gente está passando, de saúde, de educação, mas principalmente tentando trazer um olhar jovem sobre a coisa, um olhar diferenciado. Uma coisa é como o jovem está passando por aquilo, como ele vê aquilo, e como os outros, os mais velhos, veem o que eles estão passando. Querendo ou não a gente vive em um outro tempo, e hoje o nosso tempo é um tempo muito jovem. É um tempo muito tecnológico, muito rápido, que é uma coisa muito diferente do que os nossos mais velhos viveram ou viviam, principalmente de alguns povos daqui.

Por exemplo, o próprio [povo] Uru-Eu-Wau-Wau tem 30 anos de contato [com a sociedade nacional]. Trinta anos de contato é ontem. O próprio Suruí, que tem 50 anos de contato, ainda é muito pouco tempo. Têm mais velhos nossos que não falam português. Tudo isso traz a juventude mais para essa luta também. Meu pai fala para mim que o meu filho, o próximo depois de mim, a próxima geração, vai saber mais do que eu, como ele sabe mais do que o pai dele. A gente como jovem consegue se apoderar dessas novas pautas, que são as mídias sociais, que é a comunicação, que hoje são armas mesmo para a gente denunciar e para gente fazer a própria preservação da nossa cultura.

Juventude indígena tem se mobilizado pela defesa de seus territórios. Foto: Andressa Anholete (Agência Pública)

Ao contrário de outras comunidades, onde os idosos são desvalorizados por não terem valor no sistema de produção, os anciões são muito importantes para os povos indígenas, já que carregam conhecimentos e sabedoria. Ao mesmo tempo, estão surgindo jovens lideranças indígenas, que estão ganhando destaque nacional e internacionalmente. De que forma uma jovem liderança indígena, como você, dialogou com os anciões e representantes tradicionais de sua comunidade para assumir esse protagonismo sem desrespeitar os mais velhos? Como funciona esse diálogo e esse processo?

Ainda existe [diálogo], é uma coisa que a gente está conquistando como juventude. Durante muito tempo a gente teve que ganhar a confiança dos mais velhos e das lideranças tradicionais, porque tinha essa coisa do “ai, mas você é muito jovem, você não viveu o que eu vivi, você não sabe como era antes”. Quando a gente é jovem muitas vezes ainda há um receio, e isso acontecia com a gente.

Como movimento da juventude, a gente era muito criticado, [como se] os jovens só quisessem se divertir. Foi um processo muito de tomada de confiança, de mostrar para eles o nosso trabalho, de mostrar o que a gente estava fazendo como movimento, o que a gente estava articulando como juventude, e que nunca foi uma questão de tomar o lugar de ninguém. Nunca foi algo assim, mas sempre de somar junto, somar às lideranças tradicionais, somar a quem já está aí na luta, até porque a gente sabe que essas pessoas vieram antes da gente e que, se não fossem elas, a gente não ia estar onde a gente está hoje. Não ia ter conquistado o que a gente conquistou.

Hoje eles confiam muito mais na gente, e os jovens que fazem parte da juventude também estão em outras organizações. Não é que a gente esteja criando lideranças ou engajando outras pessoas, os jovens já estavam fazendo esse trabalho [antes da criação do grupo]. A maioria está nas associações dos seus povos ou faz parte das associações indígenas do Estado, então a gente consegue dialogar [com as lideranças tradicionais] dessa forma, já estando nas organizações e sempre conversando como juventude. Sempre quando tem alguma coisa, a juventude se coloca à disposição para ajudar, para construir junto mesmo. Hoje é engraçado, hoje eles vêm atrás da gente e [perguntam:] “Será que a juventude pode ajudar nisso?” Tudo foi uma construção e estamos construindo ainda.

“Meu pai fala para mim que o meu filho, o próximo depois de mim, a próxima geração, vai saber mais do que eu, como ele sabe mais do que o pai dele”, conta Txai. Foto: Andressa Anholete (Agência Pública)

Estamos em ano de eleição e lá no ATL existia uma tenda para que as pessoas tirassem o título de eleitor e um processo em curso para levar isso para as aldeias. Vocês estão com algum movimento do tipo?

A gente vem fazendo esse trabalho local também. Assim que a gente chegou do ATL, os jovens já ficaram aqui [em Rondônia], porque eles vão fazer um curso do TRE-RO [Tribunal Regional Eleitoral] para um projeto nosso em parceria com a universidade federal [UNIR] sobre a regularização dos documentos e do título [de eleitor] dentro dos territórios. Os jovens vão fazer o curso e vão se formar para fazer essa regularização dentro das terras deles.

A nossa ideia inicial era levar os indígenas para o TRE para fazer essa regularização dos títulos e [depois] levar as urnas para os territórios. Uma das coisas que a gente conseguiu analisar é que dentro do territórios, a gente tinha muito voto em branco, porque muitos dos mais velhos não sabem falar português e o voto é secreto, então você tem que ir sozinho, mas eles não sabem como fazer e acabam votando errado. E leva quase dois dias para sair de alguns territórios, tem que pegar estrada e ainda tem que pegar barco, aí você imagina [como é difícil] deslocar essas pessoas para votar. Muitas vezes a gente sequer tem condições de fazer isso, porque hoje a gasolina tá quase R$ 10 aqui. Imagina você tirar todo mundo da aldeia para ir votar lá, então a nossa ideia era levar também as urnas, não sei se a gente vai conseguir esse ano, mas pelo menos a gente vai começar esse trabalho dos próprios jovens indígenas voltarem para as aldeias e fazerem essa regularização do título e dos documentos do restante da comunidade.

A gente tem outros projetos voltados para as eleições também, a gente está criando uma carta de compromisso não só para os candidatos indígenas, mas também para outros pré-candidatos que sejam a favor da pauta ambiental e climática para que eles realmente se comprometam a não estarem colocando projetos de lei como esses que a gente está vendo aí, da mineração [PL 191] e o PL 490.

Movimento jovem tem se articulado contra projetos de lei que ameaçam os direitos indígenas. Foto: Andressa Anholete (Agência Pública)

Passando para a sua atuação na área da emergência climática. Quando você se aproximou da temática?

Acho que a questão climática para mim surgiu na COP [25]. Ano passado eu falei na COP 26, mas eu já tinha ido na passada, que era do Chile, mas na verdade aconteceu em Madri. A gente sempre falou de território, do que está acontecendo na Amazônia, do que está acontecendo aqui em Rondônia e das invasões, além da própria sabedoria dos povos indígenas em relação à destruição da nossa floresta e a nossa própria cosmovisão de mundo. A gente fala disso há anos, mas fazer essa conexão entre a luta dos povos indígenas e mudanças climáticas só aconteceu quando eu fui para COP.

A primeira vez que eu fui para a COP foi a convite da APIB [Associação dos Povos Indígenas do Brasil] para representar a juventude e lá eu tive a oportunidade de falar em uma mesa que foi organizada pelo próprio Engajamundo , que eu não fazia parte ainda, e ali eu me dei conta de que aquilo que eu estava levando, que na verdade eram coisas que acontecem localmente, sobre a minha realidade e a realidade dos povos indígenas do Brasil, na verdade estava ligado ao que estava acontecendo lá fora. Está tudo conectado, e a partir daquele momento eu mudo meu discurso para dizer: “olha, o trabalho que a gente está fazendo, a luta que a gente vem travando dentro do território também deveria ser uma luta de vocês.

Vocês aqui nos outros países, nos outros lugares, deveriam estar olhando para os povos indígenas, vocês deveriam estar olhando para as pessoas que vivem na floresta, porque não adianta nada a gente salvar as árvores se a gente não salva quem está salvando as árvores”. A minha pauta com mudanças climáticas começa aí, vira a chavinha mesmo, e eu começo a me aprofundar nos assuntos e a estudar um pouco mais.

No seu discurso na última COP você falou que os povos indígenas estão na linha de frente da emergência climática. O que você queria dizer com isso?

Eu sou uma mulher amazônica, eu sou de Rondônia, da Amazônia brasileira, e hoje a gente sabe a importância da Amazônia na questão climática, quando a gente vai falar de mudança climática. Tanto que a gente chama a Amazônia do ar condicionado do mundo, que vem fazendo esse equilíbrio climático do planeta. Hoje com o último relatório do IPCC, a gente sabe inclusive que a Amazônia está perdendo esse poder de reter o carbono mesmo. Se a gente pega qualquer mapa hoje, a gente vê que a floresta em pé é onde há a presença dos povos indígenas, onde há territórios indígenas, sejam eles demarcados ou não. A floresta é importante para o mundo e para [barrar] as mudanças climáticas, e hoje [mesmo] com todos esses ataques, os territórios indígenas protegem mais do que as unidades de conservação, que é onde não tem ninguém. Por isso que eu falo que a gente está na linha de frente.

Outra coisa que eu percebi é que quando a gente fala em destruição e desmatamento da Amazônia, as pessoas acham que só estão cortando árvores, só estão botando fogo na Amazônia e elas não se dão conta, por exemplo, de que quando a gente vai fazer o nosso monitoramento para as pessoas do nosso territórios, as nossas vidas estão em risco. Antes da queimada e do desmatamento vem a invasão e muitas vezes essas invasões e ameaças acontecem perto, tem invasão que é 3 km da aldeia. Você está em casa e escuta motosserra do lado da sua casa. Não é que estão queimando a Amazônia só, estão queimando a Amazônia e estão queimando as pessoas que estão lá também. E quem está fazendo esse trabalho de proteger a floresta? De não permitir que ela seja ainda mais destruída, ainda mais desmatada? São os povos originários, são as pessoas que vivem na floresta. Por isso que a gente está nessa linha de frente, porque a gente não só está fazendo essa proteção, mas a gente está fazendo essa proteção com nossas vidas.

Como os conhecimentos indígenas podem auxiliar no combate à crise climática? Pode dar exemplos a partir do seu povo?

Essas ideias já existem e inclusive já estão sendo executadas há muito tempo. O meu povo, o povo Paiter Suruí, trabalha com reflorestamento, porque no ponto que a gente se encontra hoje, já não basta mais só a gente proteger a floresta. A gente está num ponto que a gente tem que devolver para ela aquilo que a gente tirou dela. A gente trabalha com monitoramento, o meu povo faz o biomonitoramento, que além de monitorar o nosso território, a gente faz análise da nossa fauna, que vai inclusive nos mostrar como que a gente está sendo afetado pela crise climática, porque a gente vê os animais desaparecendo, a gente vê o desequilíbrio ecológico dentro do nosso território. Ou seja, a gente tá plantando e a gente está protegendo a floresta.

Agora a gente está trabalhando com etnoturismo e com café de forma sustentável para mostrar como que a gente consegue criar trabalhos sustentáveis, onde você não precisa destruir a floresta, e ainda valorizar a beleza do que tem aqui, valorizar a nossa floresta, a nossa cultura, porque a gente ainda precisa muito aprender a valorizar os povos indígenas aqui no Brasil. E a gente ainda consegue lucrar com isso, gerar renda a partir disso, e não só para as comunidades indígenas, mas também para quem está de fora. A gente faz um café agroecológico, sem veneno, pensando no fortalecimento da comunidade e das nossas associações. O projeto do reflorestamento existe desde 2005, e depois começamos a trabalhar com mercado de carbono, coisa que as pessoas vão falar só agora. A gente está falando isso e prevendo isso há muito tempo. E isso é dentro da minha terra, imagina dentro dos outros territórios que existem, só em Rondônia existem 52 povos indígenas, então imagina as várias outras soluções que existem e que eu não conheço.

Por vezes os negacionistas climáticos colocam como se a intenção do movimento ambientalista e climático fosse ‘acabar com o desenvolvimento do Brasil, em uma oposição entre ‘produção’ e ‘sustentabilidade’. Isso faz sentido?

Foi construída uma narrativa onde os povos indígenas são inimigos do desenvolvimento, são inimigos do chamado progresso. Mas que progresso é esse onde no Brasil a desigualdade está crescendo? Cada vez mais pessoas passando fome, cada vez mais direitos humanos sendo feridos, sendo desrespeitados. Existem 1001 soluções dentro dos territórios indígenas e que mostram que é uma falácia que os povos indígenas só querem atrasar o Brasil. Na verdade, o que eu escuto desde sempre do pai e de outras lideranças é que o que os povos indígenas querem é qualidade de vida para todo mundo, não só dentro dos nossos territórios, mas para todos. E aí gente mostra como é possível sim através dessa soluções, a gente pensar por exemplo no tripé da sustentabilidade, que é pensar no ambiental, sem destruir o meio ambiente, no econômico, conseguindo sim gerar recursos, conseguindo gerar renda para aquelas comunidades e populações, e no social, pensando que não adianta nada a gente proteger o meio ambiente e lucrar esquecendo das pessoas. Fortalecer esses três pilares é possível e a gente já está fazendo isso dentro das nossas terras, é isso que a gente está tentando mostrar. A gente faz um trabalho muito de denúncia do que está acontecendo, dos ataques, das invasões, mas a gente também faz para ser propositivo, para trazer soluções, para mostrar inclusive que essas soluções não só já existem como estão sendo executadas e colocadas em prática dentro do território. O que elas precisam é só de mais apoio para que elas fiquem cada vez maiores e que atinjam cada vez mais as pessoas.

“Foi construída uma narrativa onde os povos indígenas são inimigos do desenvolvimento, são inimigos do chamado progresso”, diz. Foto: Andressa Anholete (Agência Pública)

Na sua avaliação, é possível separar a luta pela defesa do meio ambiente da luta por frear a emergência climática?

Não. Eu acho que falar de clima é falar de meio ambiente, assim como falar de justiça climática é falar de pessoas, falar de uma pauta antirracista, anticapitalista, por igualdade de gênero, contra as desigualdades sociais. São coisas que a gente pode abordar separadamente, mas elas nunca se separam.

Como a gente pode tornar esse debate mais popular? Quais são as estratégias que, na sua opinião, podem ser usadas para isso?

Eu acho que essas estratégias inclusive já estão sendo colocadas em prática através do trabalho da juventude. A juventude vem facilitando, vem tornando esse debate mais acessível para que todos entendam. Não adianta nada a gente, por exemplo, ficar falando de acordo de Paris, ficar falando de NDC [Contribuições Nacionalmente Determinadas, as metas de cada país], porque as pessoas não vão entender, principalmente aquelas pessoas que precisam entender, então a gente precisa mostrar para elas trazendo para suas realidades também, mostrando como aquilo vai afetá-las. Não ficar usando esses termos técnicos, muito difíceis. Antes, quando a gente falava de crise climática, de mudança climática, todo mundo falava sobre a camada de Ozônio. Todo mundo pensava nisso. Quando na verdade é isso, mas é muito mais do que isso.

Falar de mudança climática é falar de saneamento básico, que qualquer pessoa está sujeita a essa questão, seja na cidade ou na aldeia; é falar como essa chuva e esses alagamentos bem afetando já o Brasil, como aconteceu em Minas, na Bahia, em Petrópolis, como está acontecendo aqui na aldeia, que quando chove alaga. É trazer isso para as realidades das pessoas também e também mostrar que é possível ter soluções para isso e que a gente pode construir elas juntas.

No início de 2021, você se uniu a jovens do Engajamundo e da Fridays For Future Brasil para processar o governo Bolsonaro por pedalada climática. O processo foi declinado pela primeira juíza, mas o governo voltou atrás e retornou ao entendimento anterior. Pode explicar do que se trata nas suas palavras?

A gente tem as metas que são previstas no Acordo de Paris, que cada país deve seguir para que a gente consiga alcançar 1.5 °C [máximos de aquecimento], que é o que a gente queria alcançar, e aí o Brasil muda o modo de contar a meta, o que faria com que a gente emitisse mais gases do efeito estufa do que a meta anterior. A gente ia estar emitindo mais do que grandes países, como a Espanha. E a gente nunca pode mudar a meta do Acordo de Paris para menos, ela sempre é mais vantajosa, então quando o Brasil tenta dar esse ‘jeitinho brasileiro’ de mudar a conta, ele começa a querer emitir mais também. Por isso que a gente chama de pedalada climática, porque ele tentou dar essa burlada nessa conta para poder ultrapassar a meta e mudar para uma menos vantajosa.

Eu faço parte desse caso porque sou voluntária do Engajamundo, que junto com o Fridays [for Future] e junto com o Observatório do Clima, propuseram essa ação. É muito importante nisso a gente estar incluindo pessoas indígenas, porque durante muito tempo também a própria discussão sobre meio ambiente era muito branca, eram muitos homens brancos falando de clima, falando de Meio Ambiente, e aí a gente também está numa proposta de mudar isso. E quem melhor que jovens diversos para estar propondo essas ações? Eu fui lá falar que sou eu, mulher indígena jovem que vou ser afetada principalmente por essa meta. Se a gente pega o IPCC, a gente vê que as regiões mais afetadas do Brasil estão aqui na Amazônia, que vai ter os maiores aumentos de temperatura.

Para Txai, durante muito tempo a discussão sobre meio ambiente e clima tinha “muitos homens brancos falando”. Foto: Andressa Anholete (Agência Pública)

Quais são os contras quando a sua imagem se torna conhecida e atrelada a essa luta contra a crise climática? Você sofreu alguns ataques ano passado pelo presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores. Como isso te impacta?

Impacta mais a nível local mesmo. Quando a gente estava na COP o Bolsonaro me atacou e eu recebi muitas mensagens machistas, racistas, misóginas, de ódio, e aí eles ofereceram proteção para gente, mas eu falei que ali eu não me sentia insegura, o problema é quando eu voltar para o meu território mesmo. Lá sim as coisas são muito mais perigosas. Essa visibilidade traz cada vez mais isso. Eles sabem quem está falando, eles veem o seu rostinho, então o perigo aumenta mais.

Como foi para você estar no ATL e qual é a importância desse tipo de mobilização?

Esse ano a gente conseguiu levar oito mil pessoas para o ATL. É muita gente e mostra como a gente está engajado em derrubar esses PLs da destruição e esses projetos de lei que querem acabar com as nossas vidas. Para mim foi muito legal, porque foi a primeira vez que Rondônia conseguiu levar dois ônibus, e um deles foi o ônibus da juventude, e o outro foi o ônibus levado pelas mulheres. Então até as lideranças tradicionais fomos nós que levamos. Por exemplo, a gente levou a Mandu, que é Uru-Eu-Wau-Wau, ela é a mulher mais velha do povo, ela estava na época do contato. Foi a primeira vez que ela foi para lá. Eu perguntei para ela o que ela tinha achado e ela disse que nunca tinha visto tanto Kawahiva, que na língua deles é indígena.

Foi a primeira vez que ela viu tantos povos indígenas com tantas culturas diversas juntos. A gente estava levando a pessoa mais sábia, mais vivida daquele povo. Os mais jovens ficaram muito animados, até para eles entenderem como funciona o movimento indígena. A importância é fazer pressão, a gente aproveitou que estava lá para fazer outras agendas também no Senado, na Câmara, e fazer outras conversas. É importante em todo um contexto que a gente está vivendo nesse Brasil, de ataque aos povos indígenas, da gente mostrar que a gente não vai aceitar que os nossos direitos sejam retirados desse jeito, a gente não vai aceitar a mineração desses nossos territórios, e a gente está aqui com a maior quantidade de indígenas que já trazemos aqui para Brasília para dizer que a gente não quer isso.

Neste ano eleitoral, de que forma a escolha de quem votar influencia no debate da crise climática?

Eu acho que o maior exemplo de como isso afeta tanto a questão climática quanto as nossas vidas é o que a gente está vivendo agora. Se a gente tem o PL 191, o PL 490 e outros projetos de lei e destruição, que querem inclusive permitir agrotóxicos na nossa mesa, é porque tem alguém lutando por isso lá no Congresso. Se não tivesse ninguém para votar, para colocar essas pautas, a gente não estaria passando pelo maior processo de destruição que o meio ambiente vem sofrendo no Brasil, e de maior ataque aos povos indígenas também.  A gente não estaria passando por isso.

É por isso a importância da gente ter representatividade, mas não representatividade vazia – igual o [vice-presidente Hamilton] Mourão, que fala que é indígena – é ter representatividade de verdade, de mulheres indígenas, de quem está no território, de quem está lutando, porque a gente nunca vai conseguir realmente ter soluções diferentes, ter uma política ambiental diferente, enquanto a gente tiver as mesmas pessoas decidindo por isso. E pessoas que são ligadas principalmente ao agronegócio, às grandes empresas, e não à necessidade real do povo brasileiro. A pauta ambiental deveria ser uma pauta suprapartidária, não deveria ser uma agenda de um governo, de um candidato específico. O mundo inteiro está falando que o mundo está acabando, é literalmente isso que está acontecendo e já tem pessoas morrendo por isso, inclusive os povos indígenas. Para gente mudar isso a gente tem que mudar o nosso Congresso também.

*Esta reportagem faz parte do especial Emergência Climática, que investiga as violações socioambientais decorrentes das atividades emissoras de carbono – da pecuária à geração de energia. A cobertura completa está no site do projeto.

Conteúdo originalmente publicado na Agência Pública e reproduzido em parceria com o MyNews.

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Indígenas se articulam para formar bancada indígena no Congresso e parlamentos estaduais https://canalmynews.com.br/politica/indigenas-se-articulam-para-formar-bancada-indigena-no-congresso-e-parlamentos-estaduais/ Wed, 13 Apr 2022 13:02:15 +0000 https://canalmynews.com.br/?p=27555 Lideranças indígenas focam em número pequeno de candidatos espalhados por diversos partidos e em todas as regiões "não só para ter visibilidade, mas para ganhar".

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Até hoje, somente dois indígenas ocuparam um gabinete na Câmara e nenhum foi eleito para o Senado. O primeiro foi o xavante Mário Juruna, que se elegeu pelo Rio de Janeiro no PDT em 1982; a segunda foi Joenia Wapichana, primeira mulher indígena a se tornar deputada federal, eleita no pleito de 2018 pela Rede de Roraima. Entre o término do mandato de Juruna —  que quase foi cassado por bater de frente com os militares — e o começo da gestão de Wapichana, o Congresso brasileiro passou 30 anos sem nenhum representante dos povos originários.

Para não permitir que a situação se repita, entidades como a Associação dos Povos Indígenas Brasileiros (Apib) e o Parlamento Indígena do Brasil (ParlaÍndio), fundado em 2018 por lideranças históricas, como Raoni Metuktire, Almir Suruí e Davi Kopenawa, se preparam desde a última eleição para lançar e eleger seus candidatos. A Apib tem representação em todos os estados brasileiros, já o ParlaÍndio compreende cerca de 30 povos e mais de 50 lideranças indígenas de todo o Brasil.

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A estratégia, explica Sônia Guajajara, coordenadora executiva da Apib e pré-candidata à deputada federal pelo PSOL em São Paulo, é focar em um número pequeno, porém competitivo de candidaturas que resultem em uma bancada indígena de fato. “A ideia não só lançar candidaturas para ter visibilidade, mas lançar candidaturas para ganhar.”

Enquanto em 2018 a entidade lançou 130 candidaturas indígenas, com uma deputada eleita, e, em 2020, mais de 2.000 candidaturas com 200 representantes eleitos —  entre eles 10 prefeitos e 44 vereadoras –, segundo Guajajara, as lideranças dos diversos povos indígenas têm articulado para chegar a candidaturas de consenso. “A APIB fez o chamado para as candidaturas indígenas, mas diferente dos anos anteriores, a gente não está considerando muito a quantidade. A gente não quer [um grande número]. A gente quer candidaturas pelo movimento que sejam consensuais em cada estado”, diz.

A estimativa é que o movimento indígena encabeçado pela Apib lance cerca de 30 candidaturas indígenas às câmaras estaduais e nacional, das quais 17 são mulheres. Os números serão oficializados em um evento nesta terça (12) no Acampamento Terra Livre, onde os presidentes dos partidos —  PT, Psol, PCdoB, PSB, Rede, PDT e PCB — serão convidados a “participarem e assumirem compromisso com as demandas do movimento indígena e com apoio às candidaturas indígenas”.

Os números de candidaturas indígenas serão oficializados em um evento nesta terça (12) no Acampamento Terra Livre. Foto: Andressa Anholete (Agência Pública)

Há candidaturas planejadas em todas as regiões do país. Entre os estados que terão candidatos ou candidatas à Câmara Federal estão Amazonas, Minas Gerais, Santa Catarina, São Paulo, Rondônia, Roraima e Mato Grosso. Já nos parlamentos estaduais serão lançados nomes indígenas ao menos no Amazonas, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Acre, Ceará e Bahia. Até então, a movimentação no Senado tem focado na pré-candidatura de  Arildo Alcantara Terena, pelo PSOL no Mato Grosso do Sul.

“A gente está pensando em fortalecer menos candidaturas para que a gente consiga alcançar o nosso objetivo de chegar no Congresso Nacional. Não é que a Apib não vá apoiar as candidaturas indígenas, a Apib está apoiando todas as candidaturas indígenas, mas a gente tem algumas pessoas estratégicas para estar assumindo essas funções”, diz Kerexu Yxapyry, do Povo Mbya Guarani, pré-candidata a deputada federal pela Rede em Santa Catarina.

Para decidir quais nomes teriam suas campanhas encabeçadas pela articulação, a entidade criou um ranking de prioridades. Serão preferidos, segundo Guajajara, os candidatos indígenas que sejam indicados pelo movimento por meio das associações regionais, estejam em partidos progressistas e tenham maior potencial e viabilidade eleitoral. Parte da estratégia foi delimitada entre 20 a 26 de fevereiro de 2022 , no Fórum Nacional de Lideranças Indígenas, na Baía da Traição, no estado da Paraíba.

De acordo com apuração da Pública, as regionais já confirmaram ao menos 10 nomes indígenas como pré-candidatos para as eleições deste ano, com outros a serem definidos. Desses, 3 indicações vieram da Articulação dos Povos Indígenas do Sudeste (Arpinsudeste); 2 da Aty Guasu, Grande Assembleia Guarani Kaiowá; 2 do Conselho Terena; ao menos 3 da Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) e ao menos 1 da Articulação dos Povos Indígenas do Sul (Arpinsul).

Já o ParlaÍndio definiu cinco critérios para escolher seus candidatos. De acordo com documento de estratégia eleitoral elaborado pelo grupo, a seleção foi feita com base no histórico de luta no movimento indígena, liderança e legitimidade na comunidade, qualificação pessoal para exercer o mandato, legitimidade no próprio povo e popularidade, e capacidade de articulação política dos interessados.

“Eu viro madrugada. Nós estamos em planejamento político, fazendo os estudos mais aprofundados, mapeando temas que são importantes para eu ter mais conhecimento, estou mergulhada em todos esses universos”, explicou Vanda Witoto, pré-candidata a deputada federal pela Rede no Amazonas.

Vanda Witoto, pré-candidata a deputada federal pela Rede no Amazonas. Foto: Andressa Anholete (Agência Pública)

Diferentes povos e um objetivo

De acordo com o Censo de 2010, existem 274 línguas indígenas no Brasil e 17,5% dos indígenas não falam português, o que coloca mais um entrave à articulação de uma bancada indígena nacional. Segundo Guajajara, o momento atual foi alcançado devido a uma visão comum da necessidade de “dar um basta nesse desmonte da política indigenista” e também a percepção de que a estratégia de anos anteriores, de cada povo lançar seus candidatos, não deu certo.

O povo Guarani Kaiowá e o povo Terena, os dois do Mato Grosso do Sul, formam um dos exemplos da articulação para além da etnia. “Tivemos que ter diálogo para colocar os nomes estratégicos para nos representar [e decidimos por indicar] dois Guarani, um [pré-candidato a deputado] estadual e outro [a deputado] federal; e um Terena [como pré-candidato a] senador”, explicou Eliel Benites, do povo Guarani Kaiowá e membro da regional Aty Guasu.

A articulação foi importante “para canalizar os apoios, as informações e inclusive para ganhar votos internamente nas aldeias”, diz Benites. “É uma estratégia nova de construir essa unidade e esse diálogo entre as organizações. Em outras eleições passadas cada aldeia saia por si e não ganhava votos [o suficiente para eleger os candidatos]”.

O cacique Almir Suruí, líder do povo Paiter-Suruí desde seus 17 anos, coordenador executivo do ParlaÍndio e pré-candidato a deputado federal pelo PDT em Rondônia, considera que mobilizações nacionais como o Acampamento Terra Livre —  que em 2022 chegou a sua 18º edição — e a mobilização contra o Marco Temporal, em junho de 2021, também ajudaram. “[A união] ocorreu através de reuniões e debates. Claro que tem muitas lideranças que têm pensamentos diferentes, mas unidos analisando o desafio que o Brasil está enfrentando, [chegamos a uma conclusão sobre] como nós indígenas pré-candidatos podemos estar apoiando essas questões para avançar no diálogo”.

As eleições não são o único exemplo de povos distintos unidos em prol de um mesmo tema. Recentemente os Yanomami, Munduruku e Kayapó formaram uma aliança inédita anti-garimpo na Amazônia.

Almir Suruí, pré-candidato a deputado federal pelo PDT em Rondônia. Foto: Andressa Anholete (Agência Pública)

Rumo ao Congresso 

O processo de organização das candidaturas também envolve encontros de formação política para os indígenas. Em 4 de fevereiro deste ano, o ParlaÍndio convidou cientistas políticos para explicar o funcionamento da democracia e as eleições brasileiras. Os cientistas falaram na 4ª assembleia virtual do grupo, que reuniu lideranças de diversos estados do Brasil. Entre os temas debatidos estava a importância de escolher partidos competitivos dentro do campo progressista, conhecer as regras e calcular os coeficientes eleitorais, já que nem sempre os mais votados são eleitos.

“Estamos nos mobilizando para fazer uma bancada indígena para defender o Brasil. Como líderes tradicionais, nós sabemos [o que fazer] e queremos representar outra opinião pública brasileira, [o que] é de grande responsabilidade. É necessário construir políticas públicas e inserir todo mundo, isso tem que ser feito com muita consciência, muita responsabilidade e visão de longo prazo”, disse o cacique Almir Suruí à reportagem.

“Não é nosso trabalho, não é nossa cultura, é uma cultura do outro, mas por conta dos problemas que nós viemos enfrentando, nós precisamos se apropriar dessas culturas, e uma delas é a política partidária”, acrescentou na assembleia Joaquim Maná Kaxinawá , o primeiro indígena a receber o título de doutor em linguística pela UnB, no evento virtual do Parlaíndio.

Val Eloy, liderança do povo Terena na aldeia Ipegue, da TI Taunay-Ipegue, no Mato Grosso do Sul, conta que fugiu da política partidária tanto quanto pôde, mas decidiu seguir o desejo do seu povo, que a escolheu como representante. Hoje Val Eloy é pré-candidata à deputada estadual pelo PSOL no Mato Grosso do Sul.

Val Eloy, liderança do povo Terena e pré-candidata à deputada estadual pelo PSOL em Mato Grosso do Sul. Foto: Andressa Anholete (Agência Pública)

“A gente está buscando um espaço para que a gente possa somar em uma única voz e buscar sempre levar o nosso carro-chefe: demarcação dos nossos territórios, porque a gente tem passado muito aperto. A sociedade brasileira toda vive esse retrocesso de direitos, mas nós como povos indígenas temos sofrido muito mais, porque somos nós que cuidamos desse planeta”, diz Val Eloy.

“Se a gente não faz, alguém faz, e nem sempre são os nossos amigos e aliados”, explicou o professor e escritor Daniel Munduruku à Pública. Ele é pré-candidato a deputado federal pelo PDT em São Paulo e considera que os povos indígenas não têm outra alternativa além de “tentar forçar, no sentido positivo, a entrada de agentes indígenas que possam representar as nossas pautas”. “Temos nos obrigado a participar desse mundo, por mais estranho, esquisito, caótico, indefinido e impessado, que seja o mundo da política.”.

Escolher o partido 

Outra questão é a escolha do partido, que envolve tanto a negociação por espaço quanto por financiamento, já que cabe às legendas decidirem como irão gastar o fundo eleitoral. “Tivemos um grande desafio, que foi os partidos, até mesmo de esquerda, aceitarem nossas candidaturas como prioridade. Querem nossa luta enquanto mulheres indígenas, querem nossas pautas, mas não querem priorizar essas mulheres para serem eleitas”, diz a pré-candidata Vanda Witoto.

Os partidos, diz, já têm sua estrutura e suas prioridades, o que dificulta a chegada de novos nomes, em especial os indígenas. “Eu fui muito convidada para apoiar esses candidatos e não para ser apoiada”, exemplifica. As candidaturas indígenas estarão focadas em sete legendas dentro do campo da esquerda e centro-esquerda —PT, Psol, PCdoB, PSB, Rede, PDT e PCB.

Kerexu Yxapyry também lembra que só pôde contar com o apoio real do seu partido, o PSOL, depois que obteve uma “votação expressiva” nas eleições de 2018 para o mesmo cargo — com mais de 10 mil votos, ela foi a segunda candidata mais votada pela legenda em Santa Catarina.  “[Antes] ninguém dava nada”, afirmou.

Assim como outros candidatos indígenas ouvidos pela reportagem, ela conta que só decidiu se candidatar depois de presenciar ataques ao seu território – sua mãe, Ivete de Souza, à época com 59 anos, teve a mão esquerda decepada em um ataque à aldeia. “Naquele momento, eu não tive outra escolha a não ser me expor mais para conseguir levar essas denúncias. Além de eu levar toda essa questão indígena, eu também usei isso como uma proteção para mim, para minha família, para minha comunidade”.

Aruã Pataxó, cacique da terra indígena Coroa Vermelha, do povo Pataxó, no extremo-sul da Bahia, lembra a dificuldade de competir financeiramente com os demais candidatos. “Nós não somos empresários, sempre fomos pessoas de família mesmo, de viver com o que tem na nossa alçada, no nosso dia a dia”, apontou. Pela terceira vez, ele é pré-candidato a deputado estadual pela Bahia pelo PCdoB, partido onde se filiou em 2011, e já foi eleito vereador no município de Santa Cruz Cabrália.

Ele frisa que não existe no Brasil um partido cuja “pauta principal” seja a “defesa dos direitos indígenas”. Dessa forma, age no PCdoB por dentro: “Só nós mesmo, enquanto indígenas, para fazer a defesa dos nossos direitos.”

Para o cacique, é necessário primeiro filiar mais indígenas aos partidos para posteriormente ter força política e representatividade dentro das legendas. “O PCdoB aqui da Bahia agora está mudando de comportamento, porque, depois da minha pessoa, já indicamos mais nomes e hoje temos seis indígenas no Comitê Estadual, que é onde a gente faz as modificações”.

No último ano, Aruã Pataxó promoveu, por meio do partido, um curso virtual de formação para os indígenas sobre o “funcionamento do partido, a questão das disputas eleitorais, as candidaturas e a legislação indígena mais específica, como o Estatuto do Índio, a Convenção 169 e os decretos de demarcação de terras”. De acordo com ele, 140 indígenas de toda a Bahia se inscreveram. “Quando você está municiado de informações, você pode orientar os seus”, resume.

Daniel Munduruku, que decidiu tentar se eleger pelo PDT de São Paulo, conta que agora age dentro do partido para convencer a legenda de que seu nome é interessante para somar nas pautas do próprio partido e garantir a estrutura necessária à sua campanha. “O PDT tem mais de 40 anos, então ele já tem os seus nomes consagrados que vão disputar as eleições”, diz. [Quero] mostrar que vale a pena investir no meu nome, não somente ceder a legenda para eu concorrer, mas que possam colocar algum recurso financeiro”, explicou.

Em retorno à reportagem, a Apib afirmou que a entidade não tem recursos para contribuir de maneira direta com as campanhas. “A partir de maio os candidatos podem abrir seus financiamentos coletivos e a Apib vai colaborar para que as candidaturas próximas ao movimento recebam visibilidade para conseguir recursos”. A organização afirmou que vai “estimular que as pessoas colaborem” e que “os partidos aliados à causa coloquem os candidatos indígenas como prioridade”.

O ParlaÍndio também afirmou que buscará conseguir recursos com os partidos, já que é uma “organização 100% voluntária que não dispõe de recursos financeiros nem tem patrocinadores”. A entidade teme que conseguir recursos será difícil, já que “historicamente os recursos ficam com os ‘puxadores de votos’ dos partidos”. “Vamos pressionar os partidos, como já estamos tentando fazer no diretório nacional do PDT, onde estão os candidatos Almir Suruí e Daniel Munduruku”.

Destoando dos colegas, Telma Taurepang, liderança da comunidade Mangueira, da Terra Indígena Araçá, no estado de Roraima, decidiu junto à sua comunidade disputar uma vaga na Câmara pelo PSD, um partido do “centrão”, por questões estratégicas. “Hoje a gente não sai por um partido de esquerda porque as condições [de eleição] dentro do estado de Roraima para um partido de esquerda são pequenas”, explica.  Em 2018, Taurepang foi candidata ao Senado pelo PCB e conseguiu mais de 13 mil votos, mas não foi eleita. Joenia Wapichana, por exemplo, que concorreu pela Rede, foi eleita deputada federal pelo mesmo estado com 8 mil votos.

Telma Taurepang, pré-candidata à deputada federal pelo PSD de Roraima. Foto: Andressa Anholete (Agência Pública)

Em retorno aos questionamentos da reportagem, Juliano Medeiros, presidente nacional do PSOL, afirmou que o partido quer “assegurar todas as condições para que as candidaturas indígenas do PSOL sejam competitivas”, mas que “isso será debatido no momento certo”. Também ressaltou que o PSOL “é o único partido que definiu critérios que garantem financiamento de 30% a mais de candidaturas indígenas em relação às demais”. Já a assessoria de comunicação do PT disse que o partido criou “um setorial indígena para tratar de questões indígenas”. O partido também afirmou que promoverá cursos de formação política para os candidatos.

PCdoB, PSB, Rede, PCB, e PDT não responderam até a publicação desta reportagem.

Joenia mudou tudo 

Quatro anos depois de ser eleita por Roraima com 8.491 votos, Joenia Wapichana serve como inspiração para outras mulheres e homens indígenas que buscam representar seus povos e foi citada por diversas lideranças. “Quando Joenia foi eleita, ela abriu um caminho que a gente não conseguia enxergar da possibilidade de ocuparmos [a política]”, diz Vanda Witoto. “A gente era desencorajado o tempo todo para não estar nesses espaços.”

Para Daniel Munduruku, “ela quebrou uma bolha, quebrou uma lógica, um paradigma que vinha se arrastando no Brasil há 500 anos”, disse. “A eleição da deputada Joenia demonstrou como é possível você fazer política com responsabilidade, inserindo todos e respeitando as opiniões, e tentando fazer o melhor para o Brasil”, acrescentou Almir Suruí.

Joenia Wapichana (Rede-RR) primeira indígena eleita para o Congresso brasileiro. Foto: Cleia Viana (Câmara dos Deputados)

Pré-candidato a deputado estadual pelo PSB no Acre e primeiro prefeito indígena do estado, Isaac Piyãko, do povo Ashaninka, diz que “ela levou a mensagem de que o indígena também é capaz e pode estar lá no Congresso”. Ele acredita que, como Joenia, mudou a vida de seu povo ao ser eleito representante. “Hoje ser indígena no nosso município não é mais ser desacreditado e incapaz de fazer uma gestão”, explica.

Parente vota em parente

Desde o início do ATL, é possível encontrar uma tenda próxima ao palco principal com jovens indígenas reunidos atrás de uma faixa em papel pardo pintada com letras vermelhas: “Tire seu título de eleitor aqui”. Munidos apenas do RG, os jovens indígenas presentes na mobilização — para a qual o público estimado foi de 8 mil pessoas —  poderiam se registrar para votar nas eleições de 2022. A iniciativa faz parte da campanha ‘Parente vota em parente’, criada nas últimas eleições municipais. De acordo com lideranças ouvidas pela reportagem, o mesmo processo de convencimento e mobilização também tem ocorrido nas aldeias.

Tenda criada para a campanha ‘Parente vota em parente’. Foto: Andressa Anholete (Agência Pública)

Convencer as comunidades da importância de votar, explica Vanda Witoto, é outro desafio da campanha. Ela conta que os indígenas sempre foram marginalizados do processo de decisão, o que desincentiva a participação na política partidária. “É um desafio compreender realmente que somos capazes, porque a gente ainda [ouve] que o indígena é incapaz. Estamos tentando desconstruir aquilo que disseram sobre nós”. Por isso, “esse ano a gente vem ainda com esse incentivo para que os parentes votem em parentes e que tragam outros votos de fora para os parentes também”, finalizou Kerexu Yxapyry.

*Colaborou: Matheus Santino

*Esta reportagem faz parte do especial Emergência Climática, que investiga as violações socioambientais decorrentes das atividades emissoras de carbono – da pecuária à geração de energia. A cobertura completa está no site do projeto.

Conteúdo originalmente publicado na Agência Pública e reproduzido em parceria com o MyNews.

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‘A Funai parou de ajudar as pessoas que estão defendendo a floresta’, diz líder Kayapó https://canalmynews.com.br/politica/a-funai-parou-de-ajudar-as-pessoas-que-estao-defendendo-a-floresta-diz-lider-kayapo/ Fri, 08 Apr 2022 16:44:09 +0000 https://canalmynews.com.br/?p=27388 No Acampamento Terra Livre 2022, Doto Takak Ire falou à Pública sobre mineração ilegal, impacto das ações do governo para os povos indígenas e efeitos da emergência climática.

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Mesmo homologada desde 1993, a terra indígena Menkragnoti, onde vive o povo de Doto Takak Ire, os Kayapó, além de dois grupos de indígenas isolados, não está segura. A liderança conta que o garimpo ilegal vem crescendo desde 2019, o que forçou a criação de bases de vigilância nas fronteiras. Além do perigo do garimpo, as mudanças climáticas, diz, também estão se fazendo sentir, mudando o regime de chuvas e afetando o cotidiano dos habitantes tradicionais daquelas terras.

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Nos quase 5 mil hectares da TI Menkragnoti, que compreende os estados do Pará e Mato Grosso, vivem cerca de 1.200 indígenas — o povo Mebêngôkre Kayapó Mekrãgnoti divide o espaço com os isolados do Iriri Novo e de Mengra Mrari. Doto Takak Ire cresceu na aldeia Pukany e, por 20 anos, trabalhou com a Funai na proteção de suas terras e direitos. Porém, se distanciou quando, sob o governo Temer, “a Funai foi enfraquecendo e eu comecei a pagar para trabalhar”.

Hoje a liderança Kayapó vive fora da aldeia e trabalha como relações públicas do Instituto Kabu, que desenvolve projetos e ações em 12 aldeias nas TIs Baú e Menkragnoti. Eram 14, mas em 2019 duas aldeias deixaram o Instituto depois de terem feito acordos pró-mineração.

Cercados pelos mineradores, os Kayapó criaram bases de vigilância para monitorar e diminuir o estrago. Hoje existem seis bases e planos para que outras sejam construídas nas duas TIs. Toda semana, um grupo de seis indígenas segue o rio e monitora os locais de risco portando suas armas tradicionais e se guiando a partir dos aprendizados provenientes de capacitações sobre a forma de abordagem, oferecidas pelo Ibama de 2010 a 2019 — com a chegada do governo Bolsonaro, o programa também foi paralisado. Como parte do Programa de Proteção Territorial, os guerreiros abordam e dialogam com os invasores, além de monitorar os resultados via satélite.

“A gente está vendo que está na cara, o governo quer abrir espaço, quer abrir a terra indígena. Só com o anúncio dele, o garimpo aumentou e a destruição aumentou”, afirma Doto Takak Ire ao criticar o PL 191/2020, que tramita em regime de urgência na Câmara dos Deputados e pretende liberar a mineração e a geração de energia elétrica nas terras tradicionais, sem a garantia de que os habitantes dos territórios tenham poder de decidir sobre o futuro de suas comunidades. “Se for o caso do Congresso aprovar [o PL 191], a gente vai ter que ir ao Supremo, pedir pro Supremo barrar esse papel que quer destruir o nosso futuro, o nosso sonho.”

A Agência Pública conversou com Doto Takak Ire na 18ª edição do Acampamento Terra Livre, organizado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil. Durante 10 dias, entre 4 e 14 de abril, povos indígenas de todo o país se reúnem para debater e pressionar as autoridades em defesa de seus territórios.

Doto Takak Ire trabalhou com a Funai por 20 anos e agora é relações públicas do Instituto Kabu. Foto: Andressa Anholete (Agência Pública)

Como alguém que trabalhou na Funai, como você vê a diferença da Funai de antes do governo Bolsonaro e de agora?

Antigamente, a Funai ajudava os povos indígenas, ajudava na fiscalização, ajudava a proteger a floresta. Mas depois quando o Bolsonaro assumiu, a Funai não existe mais e não está atuando mais nas aldeias.

Antes do [governo de Jair] Bolsonaro, a Funai havia criado uma CTL, que é a Coordenação Técnico Local, em que até os funcionários que eram chefes de posto atuavam nas aldeias. A nova gestão tirou todos os chefes de posto e levou para o município mais próximo, e dali a Funai começou a enfraquecer, começou a faltar dinheiro na CTL e a administração da época passou para a coordenação regional, aí que as coisas mudaram.

Em que momento você decidiu parar de atuar junto a Funai?

Tinha muito problema interno e a pressão dos garimpeiros e madeireiros, que achavam que a Funai que autorizava eles a entrar, era quem mandava ali. Eu não pude levar essa pressão dos madeireiros e dos garimpeiros e tive que sair, [pensei]: ‘não vou me arriscar aqui, e também ao mesmo tempo ninguém está dando apoio, a coordenação regional não está dando apoio, então tenho que sair’. Por isso que eu saí. E hoje você está vendo que a Funai não está indo para a aldeia, não está visitando as aldeias, não está construindo mais projetos etnosustentáveis. A Funai parou de ajudar as pessoas que estão defendendo a floresta.

Eu falei isso para o presidente e para os diretores da Funai, falei para eles que eles só estão ajudando quem está com atividade ilícita, só dão ouvido para quem está envolvido com essas atividades. E ele não respondeu nada.

A Funai também está fazendo política entre os povos Kayapó. Por exemplo, eles chegam nos indígenas e perguntam: ‘você está envolvido com garimpeiro? Com madeireiro?’. Aí os funcionários falam: ‘você tem que fazer isso, isso e isso’. [Depois falam dos indígenas que estão protegendo] e começam a usar um contra o outro, falam que as ONGs estão ganhando muito dinheiro nas costas dos indígenas e que eles têm direito sim de explorar ouro, madeira. A Funai não vê a lei. A extração de ouro e madeira dentro da Terra Indígena é proibida por lei.

Duas aldeias saíram recentemente do Instituto Kabu, porque elas foram cooptadas para a mineração. Como isso afeta a relação de vocês lá?

Fica muito ruim, fica muito ruim para quem está lutando pela defesa da floresta. Sabe por quê? Eu estou defendendo aqui e você quer derrubar [a floresta], então vai ser uma briga entre nós dois. Se eu não deixo você derrubar, mas você quer derrubar, vai ter uma briga. Isso está acontecendo, está causando problema. É o papel da Funai chegar naquela comunidade, naquela liderança e conversar com os dois para pedir as pazes. Antigamente a Funai fazia assim, ela ia lá na aldeia, conversava com a liderança, ajudava a expulsar os garimpeiros, mas hoje não.

Antes a Funai fazia as pazes e hoje ela estaria fazendo o contrário?

O contrário. Fazendo outra liderança brigar com outra. A gente não quer destruir a floresta. Agora o governo, a Funai, eles querem derrubar a floresta. Está bem claro que o governo Bolsonaro está usando a minoria contra a maioria.

Como a não renovação do PBA [Plano Básico Ambiental – Componente Indígena] em 2020, dinheiro que vinha da compensação das obras da BR 163, afetou a manutenção dos projetos e a segurança financeira dos indígenas da sua terra? Pode explicar isso melhor?

O PBA era pra ser executado, mas quando o Bolsonaro assumiu ele cortou. O que ocorreu? O presidente da Funai, que acredita que as organizações não-governamentais são das ONGs de fora [do país], mandou o pessoal investigar o Kabu, mas eles não encontraram nada. O próprio investigador descobriu que o problema está na Funai, mas ele [Marcelo Xavier, presidente da Funai] nunca foi atrás. Então a gente paralisou a BR 163 para tentar negociar, mas o presidente da Funai não foi lá. Em vez de ajudar, ele fez um pedido de ação contra minha pessoa, pensando que eu mandei paralisar a BR 163 para garantir o meu direito. Mas não é.

E como está este processo contra você?

Já foi arquivado.

Sem a ajuda da Funai no combate à mineração, como vocês tentam impedir que mais gente vá por esse caminho?

Eles [os que apoiam a exploração das terras] são minoria, são fraquinhos. Agora os [indígenas kayapó da aldeia Gorotire, localizada na TI Kayapó, que têm mineração em suas terras] estão chegando aí no ATL, eles estão aí, fizeram uma reunião ontem, eles estão afim de fechar o garimpo porque eles estão vendo que o efeito está acontecendo. Eles não estão pescando mais, [por conta da] contaminação do rio, dos peixes e dos animais. Chegou o momento que eles querem apoio, eles estão pedindo apoio para fechar o garimpo.

Mesmo sendo ilegal, a mineração em terras indígenas continua acontecendo. Ainda assim, existe o PL 191, que vai tornar mais fácil que esse tipo de empreendimento cresça dentro dos territórios. Qual é a importância de se posicionar contra isso?

É muito importante. É muito importante para quem está defendendo a floresta. A gente está vendo que está na cara, o governo quer abrir espaço, quer abrir a terra indígena. Só com o anúncio dele, o garimpo aumentou e a destruição aumentou.

Hoje com a tecnologia a gente grita, quando eu falo uma coisa aqui, você copia e já manda para outros, já manda para outros, já manda para outros. [Derrotar o PL é] muito importante para quem está precisando e pedindo ajuda. Tem muitos parentes que não têm terra para sobreviver. Eles precisam de ajuda, eles precisam dessa defesa. A preocupação é de todos. Quem está pegando dinheiro fácil [com a mineração] acha que é bom, mas pode trazer problemas para o futuro da família dele.

Qual a importância do Acampamento Terra Livre no meio disso?

A gente está junto aqui para ajudar os parentes que estão necessitando de uma terra, de uma floresta para sobreviver, porque o Bolsonaro não está demarcando… Esse ano, vai ter também [o julgamento do] Marco Temporal, e eu vou trazer a minha família todinha, meu filhinho vai andar aqui para aprender, para no futuro ver alguma imagem e dizer ‘pai, eu era criança e eu vi isso’. É muito importante esse encontro. Espero que essa luta vá passando de gerações para gerações.

Agora há um outro tema, que é sobre mudanças climáticas. Como você percebe essa mudança do clima lá na floresta?

A gente está vendo que o clima realmente está mudando. Não está chovendo na época da chuva, está chovendo fora da época, igual carnaval fora da época, entendeu? Muita gente está tendo que aprender como é que a gente [indígenas] faz para manter essa floresta em pé. Espero que as lideranças continuem defendendo a floresta para mais ou menos manter o clima no nível, mas realmente está mudando muito. Chuva fora da época da chuva, fora da época do verão. Tá tendo isso e a gente sabe que não somos nós que estamos desmatando. A gente é defensor da floresta e estamos vendo que realmente mudou.

Ou seja, não são vocês que estão causando isso, mas já está gerando efeito em vocês?

Isso.

Essa mudança das chuvas afeta de alguma forma as atividades no território?

Eu não fico muito na aldeia, só vou na época de final do ano ou meio de férias. Mas a gente vê que antes os Kayapó não frequentavam o rio Pixaxá. Depois de 20 anos, os Kayapó voltaram a frequentar, porque é o limite da terra indígena, entre o branco e a TI.

Quando a gente chegou lá não tinha peixe nenhum, mas cinco anos depois, com a presença dos Kayapós, que prenderam barco, prenderam arma, prenderam caça e pesca dos caras, cinco anos depois a gente viu os efeitos e que os peixes voltaram. Com o
desmatamento, com a destruição dos peixes e pesca predatória, a gente vê o efeito sim. Antes não tinha peixe, hoje se for lá você vai ver bastante peixe.

Então os conhecimentos indígenas dos Kayapó estão conseguindo recuperar algumas partes antes desmatadas?

Algumas partes do limite da TI, a gente continua conservando, a gente vai continuar, a gente vai lutar. As plantações de soja se aproximaram, encostou na TI e os venenos vão para o rio na época da chuva, então a gente está defendendo e a gente vai continuar com as criações das bases nos locais críticos, onde tem invasores. Depois que a gente criou as bases, não estão chegando mais as pessoas que estão destruindo.

Estão acontecendo várias reuniões internacionais, nas quais vários indígenas foram para falar sobre mudanças climáticas e como a gente pode parar isso. O senhor acha que o caminho para a gente superar esse processo está em ouvir os conhecimentos indígenas e entender que vocês sabem o que fazer ali, que são capazes de cuidar disso do jeito de vocês?

Realmente a gente pode usar esse nosso conhecimento para ajudar muito mais ainda. Não adianta você chegar lá e querer mandar nas TI, somos nós que temos esse conhecimento, a gente tem experiência. Eu acho que é muito importante falar das mudanças climáticas com a gente, a gente está vendo os efeitos e que realmente o clima mudou.

O senhor falou que a tecnologia permite que o que você fala aqui vá para outros lugares, chegue em mais pessoas. Nesse ano temos tanto as eleições, quanto a votação do PL 191, Marco Temporal, muitas pautas importantes e relevantes para defender os povos indígenas. Quais são as mensagens que o senhor gostaria de deixar para as pessoas, também não-indígenas, e para os deputados que vão decidir isso?

Eu vou deixar a mensagem aqui pros parentes, e pros não-parentes, que vamos lutar, vamos dar exemplo, vamos lutar junto para ajudar a barrar esse processo. É um processo criminoso, e, se for o caso do Congresso aprovar [o PL 191], a gente vai ter que ir ao Supremo, pedir pro Supremo barrar esse papel que quer destruir o nosso futuro, o nosso sonho. Isso eu peço para os parentes indígenas e não-indígenas, ajudar a fortalecer o nosso acampamento Terra Livre.

E, por favor, gente, vamos lutar, vamos não voltar mais no Bolsonaro, vamos votar no Lula, para ver se pelo menos ele respeita e dá ouvido pra gente.

Também existem muitas críticas ao ex-presidente Lula por parte do movimento indígena, que afirma que ele poderia ter feito mais pelos povos. Como está sendo a negociação para garantir que, caso eleito, ele priorize os povos indígenas?

A gente vai ter que elaborar um documento para ele assinar, fazer um compromisso com os povos indígenas, não só nós Kayapós, mas com o indígena do Brasil inteiro. Tem que fazer compromisso com os indígenas, porque são os primeiros habitantes do Brasil.

A gente está tentando trazer ele pra cá e ele assinar antes, fazendo um compromisso. Não do passado, porque no passado ele fez a barragem de Belo Monte, destruiu as famílias lá e acabou com o sonho das famílias que estão sofrendo lá. Ele errou. Eu sei que se eu errar, eu vou aprender com isso, mas tem gente que erra e nunca vai aprender. Espero que Lula entenda isso e aprenda com o erro.

*Colaborou: Matheus Santino

*Esta reportagem faz parte do especial Emergência Climática, que investiga as violações socioambientais decorrentes das atividades emissoras de carbono – da pecuária à geração de energia. A cobertura completa está no site do projeto.

Conteúdo originalmente publicado na Agência Pública e reproduzido em parceria com o MyNews.

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