Arquivos Por Laura Scofield da Agência Pública - Canal MyNews – Jornalismo Independente https://canalmynews.com.br/post_autor/por-laura-scofield-da-agencia-publica/ Nosso papel como veículo de jornalismo é ampliar o debate, dar contexto e informação de qualidade para você tomar sempre a melhor decisão. MyNews, jornalismo independente. Thu, 27 Jul 2023 10:31:06 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Análise de documentos sigilosos da Abin e Coaf deve indicar rumo da CPMI do 8 de janeiro https://canalmynews.com.br/politica/analise-de-documentos-sigilosos-da-abin-e-coaf-deve-indicar-rumo-da-cpmi-do-8-de-janeiro/ Thu, 27 Jul 2023 10:29:28 +0000 https://canalmynews.com.br/?p=38617 Quebras de sigilo também devem engrossar investigações sobre financiadores; entenda os próximos passos

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Depois de dois meses de funcionamento, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do 8 de janeiro fez uma pausa durante o recesso parlamentar informal, que termina em 1º de agosto. Para o segundo semestre, a expectativa do governo e da oposição é que os documentos requeridos indiquem os rumos da investigação.

Em 11 de julho, última sessão da primeira parte da comissão, foram aprovados requerimentos que podem trazer mais informações sobre aliados bolsonaristas, como o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro (PL), que ficou em silêncio em sua oitiva — a CPMI solicitou e já recebeu o compartilhamento da investigação da Polícia Federal (PF) a respeito dele.

A CPMI já tem em mãos também os relatórios de inteligência financeira produzidos pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) sobre Mauro Cid e George Washington, condenado pela tentativa de ataque à bomba no Aeroporto de Brasília no final do ano passado.

Parte desses documentos, acessados pela Agência Pública, indica que o Coaf teria encontrado ao menos cinco “movimentações de recursos incompatíveis com o patrimônio, a atividade econômica ou a ocupação profissional e a capacidade financeira” de Mauro Cid e outras duas de George Washington.

No caso de Washington, ele aparece ainda com duas “movimentações com indícios de financiamento ao terrorismo” e, ao menos uma vez, teria feito “operações ou prestação de serviços, de qualquer valor, a pessoas ou entidades que reconhecidamente tenham cometido ou intentado cometer atos terroristas, ou deles participado ou facilitado o seu cometimento”.

Além das informações sobre Cid e George Washington, a CPMI já recebeu quebras de sigilo de Jean Lawand, coronel do Exército que pediu a Cid que Bolsonaro desse um golpe; além relatórios da Abin e relatórios de inteligência da Polícia Civil sobre os participantes do QG e sobre os atos de vandalismo de 12 de dezembro de 2022.

Investigação da Pública com base em documentos da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) recebidos pela CPMI mostrou ontem que o deputado Delegado Ramagem (PL-RJ), ex-chefe da Abin, contratou um militar reformado que aparece nos relatórios da pasta por sua “disposição para envolvimento em ações violentas” durante a transição de governo. Segundo a Abin, o militar seria um “boina vermelha” – definido pela agência como “um grupo extremista composto por reservistas do Exército” conectado a outros movimentos extremistas no país, como o Ucraniza Brasil.

Nesta semana, a sala-cofre da CPMI recebeu os primeiros documentos sigilosos enviados para atender a requerimentos aprovados por congressistas.

“Provas” de outra CPI foram compartilhadas

A CPMI já tem acesso também ao “acervo probatório” juntado pela Comissão Parlamentar de Inquérito dos Atos Antidemocráticos da Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF), que conduz uma investigação própria desde fevereiro. A possibilidade de compartilhamento de informações entre as duas comissões foi adiantada pela Pública em maio e os dados já foram recebidos.

Parlamentares do governo e da oposição, além da própria relatora, a senadora Eliziane Gama (PSD-MA), disseram à reportagem que pretendem utilizar o recesso parlamentar para analisar os documentos e trazer as novidades já na volta da CPMI. “Há relatórios de inteligência, quebras de sigilo e outros dados que darão suporte para as próximas oitivas”, explicou a assessoria da senadora.

Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

 

A falta de documentação base para a investigação foi uma das críticas feitas por integrantes da comissão nas últimas semanas. “Uma CPI só chega a algum lugar se ela tiver quebra de sigilo. Eu nunca presidi uma CPI que tivesse resultado que eu não convocasse alguém pra depor quando eu já tinha tudo na mão”, argumentou na sessão de 11 de julho o senador Magno Malta (PL-ES), segundo vice-presidente da CPMI, do grupo da oposição. Deputados alinhados ao governo concordaram.

Um dos exemplos citados pelos parlamentares foi a oitiva de Lawand, que teria mentido em seu depoimento. Ele negou que pediu um golpe a Cid, quando as mensagens encontradas pela PF em seu celular mostram o contrário — mas só agora a CPMI tem acesso direto aos documentos que podem provar isso.

 

Avaliações dos membros

Para lideranças da oposição, como o senador bolsonarista Eduardo Girão (Novo-CE), os primeiros atos da comissão mostram que ela foi “sequestrada” pelo governo. “[A comissão] foi tomada de assalto pelo governo Lula, que não queria [uma CPMI] de jeito nenhum. Eles ocuparam [a comissão] com os senadores e deputados que sequer assinaram [o requerimento de criação da] CPMI”, avaliou em entrevista à Pública.

Já apoiadores do governo petista, como a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), avaliam os acontecimentos até aqui como “positivos”. Ela considera que a comissão está dividida entre “democratas e golpistas”, mas “o campo democrático tem maioria de votos”, o que explica por que tem conduzido as investigações.

De acordo com ela, o governo trabalha para mostrar à sociedade que houve um “planejamento” dos atos golpistas do 8 de janeiro. “Estamos tentando de fato construir a lógica de que havia um planejamento que se caracterizou não só nos quatro anos [de governo Bolsonaro], mas, de um tempo pra cá, com atos muito planejados e articulados.” A deputada argumenta que os apoiadores de Bolsonaro tentaram “criar um caos social pra provocar uma intervenção de fato das Forças Armadas, o que não logrou êxito”.

Para o futuro, Girão aponta que a oposição seguirá na linha de defender que a culpa pela invasão dos prédios públicos é de uma suposta omissão do atual governo federal, que foi vítima dos ataques.

Um dos novos focos do grupo bolsonarista, que diz que a segunda parte da CPMI vai “ouvir o outro lado”, é a viagem do atual presidente, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a Araraquara (SP). Girão considera a viagem “estranha”, mas o presidente foi à cidade no dia 8 de janeiro para avaliar os danos causados pela chuva na região.

Na sessão de 11 de julho, foram aprovados vários requerimentos que pedem à Força Aérea Brasileira (FAB), ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e ao Gabinete Pessoal do Presidente da República informações referentes aos planos de voos e de proteção (chamado Plano Escudo) feitos para a visita à cidade paulista.

 

Acabou o acordo

O deputado Duarte Júnior (PSB-MA), alinhado ao governo, também considera que “os trabalhos têm avançado”, mas faz uma crítica ao presidente da CPMI, Arthur Maia. “O presidente tem que agir com mais firmeza, com mais rigor, com mais pulso. Tem sido permissivo demais com bagunças, com badernas dentro da audiência, das reuniões da CPMI, e isso tem prejudicado um pouco os trabalhos. Era para estar muito melhor do que está”, avaliou.

Por conta da experiência com a oposição, que estaria tentando “tumultuar” as sessões, Jandira Feghali afirmou em entrevista que o bloco governista vai mudar de postura e que a polarização vai aumentar a partir de agosto.

“O campo democrático tem maioria de votos, mas nós temos tentado o exercício de, mesmo tendo maioria de votos, fazer com que o trabalho vá sem muita polarização. Mas está difícil, porque, quando a gente tenta fazer acordos, os acordos não acontecem como a gente achava que deveriam acontecer. Então, para nós acabou essa história de acordo, agora vai pra polarização mesmo. Vamos agora pra polarização direta desse processo”, afirmou a deputada à Pública.

 

Os depoimentos

Na primeira parte de investigações, a CPMI ouviu oito depoentes, a maior parte deles bolsonaristas, como Mauro Cid, George Washington, Jean Lawand, e Silvinei Vasques, ex-diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal (PRF).

Cid ficou em silêncio durante as oito horas de duração da sessão, o que levou a CPMI a apresentar uma denúncia contra ele por “uso excessivo de silêncio” no Supremo Tribunal Federal (STF). A decisão que lhe garantiu o direito de não responder às perguntas dizia que ele poderia se negar em casos que o incriminassem, mas o ex-ajudante de ordens não respondeu nem mesmo sua idade, 44 anos.

George Washington também se calou na maior parte de seu depoimento. Já Silvinei negou que utilizou a PRF para impedir eleitores de Lula de votar no Nordeste; e Lawand contradisse o conteúdo de suas mensagens para Cid.

Nomes considerados chave, seja pelo governo ou oposição, ficaram de fora, ao menos por enquanto. Anderson Torres, ex-ministro da Justiça de Bolsonaro e ex-secretário de Segurança do Distrito Federal; Saulo Moura da Cunha, ex-diretor-adjunto da Abin; e general Gonçalves Dias, ex-ministro do GSI do atual governo, estão entre os que já foram convocados, mas ainda não compareceram.

As datas para os depoimentos deles e de outros convocados devem ser definidas já na primeira sessão após o recesso, no início de agosto.

Ainda faltam cerca de 120 dias para o fim da CPMI, que deve durar ao menos até a segunda semana de novembro, quando completará 180 dias de funcionamento. Parlamentares da base governista ouvidos pela reportagem defendem que a investigação acabe no prazo, sem que seja prorrogada por mais 180 dias, o que estenderia a comissão até o início de junho de 2024.

Caso a oposição queira mais tempo, precisará reunir assinaturas de 27 senadores e 171 deputados, além da leitura em plenário do requerimento pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).

 

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“Mercado global de carbono” criado via decreto “é para inglês ver” https://canalmynews.com.br/meio-ambiente/mercado-global-de-carbono-criado-via-decreto-e-para-ingles-ver/ Wed, 08 Jun 2022 12:00:11 +0000 https://canalmynews.com.br/?p=29518 Para o especialista em economia do clima Luan Santos, Bolsonaro atropela Congresso com decreto numa tentativa desesperada de mudar a visão do governo na área ambiental e climática

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agência pública

 

 

 

Na manhã do dia 19 de maio, Jair Bolsonaro voou de Brasília à cidade do Rio de Janeiro para uma viagem rápida. O bate e volta — o presidente ficou apenas cinco horas em terras fluminenses — visava garantir a sua presença em um evento que, mesmo pouco divulgado, reuniu grandes empresários, como os presidentes dos principais bancos e frigoríficos brasileiros: o Congresso Mercado Global de Carbono: Descarbonização e Investimentos Verdes.

Mais tarde naquele dia, foi publicado um decreto que, de acordo com o Ministério do Meio Ambiente, criou “o mais moderno e inovador mercado regulado de carbono, com foco em exportação de créditos, especialmente para países e empresas que precisam compensar emissões para cumprir com seus compromissos de neutralidade de carbono”. O documento foi assinado por Bolsonaro e pelos ministros Paulo Guedes, da Economia, e Joaquim Leite, do Meio Ambiente.

Para o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Luan Santos, pós-doutor em economia do clima e do meio ambiente e especialista em investimentos sustentáveis, a participação do governo no evento — que teve o ministro e secretários do Ministério do Meio Ambiente como palestrantes — soou estranha, já que “todo mundo sabe que a pauta climática nunca foi prioridade”. “É muito curioso que isso tudo aconteça às vésperas das eleições. Nunca foi pauta, [mas] agora tem que fazer evento, fazer burburinho e falar de mercado de carbono?”.

A desconfiança se soma ao fato de o Projeto de Lei (PL) 528/2021, de autoria do deputado Marcelo Ramos (PSD-AM), tramitar no Congresso desde fevereiro de 2021. Mesmo que o PL esteja sendo elaborado com a participação de diversos setores interessados em criar um mercado regulado no Brasil, o governo preferiu resolver a questão com uma canetada, que falou em “mercado global” e “créditos de metano”, mecanismos que não existem no mundo. Nenhum outro tema da área do meio ambiente ganhou igual atenção — somente neste ano, Leite fez mais de 20 reuniões sobre o mercado de carbono. Ainda assim, o resultado final foi de “insegurança jurídica e instabilidade”, como explicou o professor.

Para Santos, tudo não passou de uma “estratégia para tentar apagar um pouco esse olhar extremamente queimado que o governo tem na agenda ambiental e climática”. Apesar de o governo afirmar que o decreto trará benefícios ao “meio ambiente, a população e diversos setores da economia, como energia, óleo e gás, resíduos, transporte, logística, infraestrutura, agronegócio, siderurgia e cimento, entre tantos outros”, Santos explica que pouco mudou. De acordo com o professor, o decreto não entrega o esperado por empresários que querem atuar na área nem cria um mercado de carbono – muito menos um mercado regulado —  como o existente na União Europeia.

Santos argumenta que a medida apenas “dá as bases de como os setores devem estabelecer as suas metas”, o que seria um passo no caminho da construção de um mercado, mas sem a “instrumentação” necessária. Caberá aos próprios setores definir quanto querem reduzir de suas emissões e mesmo colocar em prática — foram contemplados nove setores, com enfoque no agro e nenhuma menção ao setor florestal, que incluiria as comunidades tradicionais e seu trabalho de preservação.

De acordo com ele, que também participou do evento, o tom do discurso governista era de defesa do agro, com “certo protecionismo no setor” que em nada colaboraria para que o Brasil cumpra as metas de redução de emissões previstas no Acordo de Paris. “Os setores precisam se engajar mais, precisam ser mais ambiciosos, e não [o governo] flexibilizar mais a operação desses setores”, avaliou.

marcado global de carbono bolsonaro

Presidente da República Jair Bolsonaro durante sua fala no Congresso Mercado Global de Carbono. Foto: Alan Santos/PR

Confira os principais trechos da entrevista:

O que é e como funciona o mercado de carbono? 

Existem vários instrumentos para lidar com a pauta da mudança climática, e um deles é o mercado de carbono. Na sua concepção clássica original, que veio da época do Protocolo de Kyoto, no final do século passado, ele basicamente consistiria na criação de um mercado que funcionaria muito parecido com o mercado de ações, no qual existiriam empresas que querem comprar crédito de carbono e empresas que querem vendê-lo.

Algumas empresas têm metas que precisam alcançar de redução de emissão — em um mercado regulado, essas metas são geralmente definidas pelo Estado. Eventualmente, uma empresa pode não conseguir bater a sua própria meta, aí ela vai no mercado [de carbono] e compra créditos para favorecer com que ela a alcance. Basicamente, o mercado de carbono é um mercado no qual existe uma transação econômica de compra e venda de um ativo ambiental, que seria o crédito de carbono.

De onde vêm os créditos que serão vendidos?

As empresas que vendem os créditos são as que conseguem emitir [gás carbônico em quantidade] inferior à sua meta preestabelecida. Isso gera um delta, uma variação de carbono que ela pode disponibilizar no mercado.

Qual é a diferença entre o mercado voluntário e o mercado compulsório ou regular? 

Existe muita confusão dos termos. O mercado voluntário é composto de transações diretas entre organizações [em] que uma vende para outra, em uma relação não regulada pelo Estado. Já o mercado regulado é institucionalizado. É um mercado em que o Estado, o país ou a região criam os mecanismos, como no mercado da União Europeia [European Union Emission Trade System, na sigla em inglês]. Ele é regulado, porque existe uma entidade responsável pela gestão daquele mercado por meio de mecanismos de verificação e controle.

O que existe no Brasil?

Existe uma proposta de criação de um mercado regulado no Brasil, mas o que aconteceu no Congresso [do Mercado Global de Carbono] não é sobre isso. Embora eles mencionem o tempo inteiro [terem criado um] mercado regulado, não é. É um mercado voluntário, porque são empresas transacionando. Eles podem até querer forçar a barra e dizer que é regulado, porque existe nesse decreto a intenção de estabelecer metas de emissão, mas elas não existem ainda.

Então, no Congresso do Mercado Global, houve uma confusão de termos? Chamaram de regulado um mercado que ainda é voluntário?

Sim. Inclusive houve um momento em que o próprio ministro da Economia soltou que teria um tributo do carbono, o que gerou mais confusão ainda, porque tributo é outro mecanismo. As [pessoas ficaram] assim: “Mas o que está acontecendo aqui? Estava falando de mercado e agora de imposto?”.

O que o decreto efetivamente fez?

Ele estabelece os procedimentos para criar os planos setoriais de mitigação, ou seja, dá as bases de como os setores devem estabelecer as suas metas. Só estamos falando do “cap”, não tem “trade”. [Além disso], ele cria o Sistema Nacional de Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa, que é basicamente onde seriam organizadas as informações de redução de emissão por setor.

O decreto faz uma das etapas do mercado de carbono, que é a parte relacionada à definição de metas. Toda a parte ligada a como vai ser transacionado esse carbono, ninguém sabe. Isso não foi falado, [não houve] nenhuma menção. Como vai ser transacionado isso? Vai ser criada uma plataforma centralizada em que vai ser disponibilizado o crédito, como se fosse uma bolsa de valores? O decreto não oferece essa instrumentação.

O decreto não cria mercado, ele fomenta de certa maneira esse mercado, mas não cria o mercado. Essa é a realidade. Não tem mercado nenhum, o que tem é um avanço, não lá dos mais significativos, relacionado a como a gente vai avançar no mercado de carbono. Dizer que a gente tem um mercado global de carbono é para inglês ver.

Como você avalia o decreto?

Foi um decreto que gerou muita insatisfação. É vago e gera muita insegurança. O sentimento que ficou é de que o debate não serviu pra nada. Primeiro foi anunciado na plenária de abertura que seria feito o lançamento do decreto na própria quarta-feira, mas isso não aconteceu. Aí vazou um rascunho que estava cheio de inconsistências, porque o decreto não dialoga com o PL que está na Câmara em discussão há mais de um ano, com atuação intensa do setor privado, da academia, de ONGs e de vários atores importantes.

No mesmo dia que foi lançado, quando vazou esse rascunho, na correria, tentou-se de alguma maneira revisar o PL. A Carla Zambelli [relatora do PL na Câmara] protocolou então um novo parecer. Tudo acontecendo ao mesmo tempo sem que as coisas estivessem conversando. Isso já mostra as inconsistências.

Também existem brechas, como o termo “créditos de metano”. Isso não existe em nenhum lugar do mundo, eles levantaram coisas que não são praticadas em campo nenhum. Eles também colocam que vai ser preciso que os setores façam seus planos setoriais com as suas propostas, mas não está claro quando, os prazos estão confusos. Tem várias questões ali que dão brechas. Há muita insegurança jurídica.

Então o governo não criou o mercado de carbono, muito menos um mercado global de carbono, como o nome do Congresso indicaria?

Não tem nada de global ali. Foi muito barulho para pouco resultado efetivo.

Eles colocaram “global” porque queriam colocar o Brasil como um grande player, como um grande ofertador de crédito de carbono para o mundo, o que é verdade, mas isso não significa dizer que é um mercado global, é só um mercado de oferta de crédito, e aí qualquer país pode comprar.

No mercado regulado tampouco existe um mercado global, o que existe são mercados regionais. Tem vários mercados pelo mundo pipocando, mas nenhum deles é global.

Já existem empresas que vendem em seus serviços a possibilidade de pagar para compensar as emissões. Antes desse decreto, o mercado voluntário já existia no Brasil? 

O que tem no Brasil é o seguinte: várias empresas estabelecem metas de redução de emissão de carbono sem ter uma obrigatoriedade a nível do governo. Por exemplo, uma empresa do ramo de energia estabelece suas metas de redução, mas não consegue cumprir com as metas apenas com projetos internos. Aí ela pode comprar créditos de carbono de uma operação que esteja vendendo esse crédito. Na prática isso só serve para a própria empresa bater uma meta que ela estabeleceu.

Uma das críticas à ideia de mercado de carbono é que ela precificaria a poluição, no sentido de que, se uma empresa poluidora não alcançou a meta definida, ela não precisaria parar de emitir ou focar em alcançar a meta, e sim comprar de alguém que teve um excedente. Essa crítica faz sentido? Como que o senhor responde a isso?

Essa é uma crítica que, a princípio, pode fazer sentido, mas, uma vez que você entende o funcionamento do mercado, e se esse mercado está bem desenhado, essa colocação não faz o menor sentido.

Imagine que existe um mercado pegando todos os setores da economia brasileira; ele vai funcionar no formato “cap and trade”, onde “cap” define o limite de emissões e “trade” comercializa. Uma vez definido esse limite de emissões, se uma empresa não bateu a sua meta e precisou comprar o crédito de outra, no final das contas, essa outra empresa só vendeu porque ela foi mais eficiente do que ela poderia. Como ela foi mais eficiente, ela teve crédito e esse crédito foi comercializado. Na prática, você garante que vai bater a meta [como um todo], você não vai ultrapassar o limite de emissão preestabelecido, porque esse limite é justamente o total de crédito disponível no mercado. Enquanto empresa, ou você compra esse crédito, ou você reduz internamente.

Mas nem todo mundo vai poder comprar, porque não vai ter oferta suficiente. Quem não conseguir vai ser obrigado a fazer alguma estratégia interna para reduzir, e com isso você garante que vai chegar no limite de emissão preestabelecido.

[Além disso], os mercados mais maduros adotam uma estratégia que é a meta ser revisada de períodos em períodos, como de cinco em cinco anos. Eles colocam uma meta mais baixa e fica ainda mais restritivo. Sendo mais e mais restritivo, a meta fica mais ambiciosa e isso reduz o total de crédito de carbono disponível. Quando se reduz o total de crédito disponível, você está, indiretamente, forçando as empresas a investirem em tecnologias mais eficientes. Existem mecanismos para impedir que o mercado colabore para que determinada empresa siga sendo ineficiente. Mesmo que ela seja ineficiente e compre crédito, vai chegar um momento em que, quando houver essa revisão da meta, e essa meta for mais ambiciosa, essa empresa não vai conseguir mais comprar crédito e vai ser obrigada a investir internamente.

Nesse mercado de empresas, como entra o crédito de carbono gerado pelas comunidades tradicionais que preservam a floresta?

Geralmente, os setores econômicos que não foram cobertos por mercado podem interagir com o mercado. No Brasil [a participação dessas comunidades acontece pelo que] a gente chama de offset, que é poder contar com créditos de carbono fora do mercado de carbono para que as metas sejam alcançadas. Se uma empresa não consegue bater a sua meta através do mercado de carbono regulado, pode estar prevista a possibilidade de compra de crédito de carbono, o offset florestal. Então ela pode pegar um projeto florestal que gera crédito de carbono, comprar aquele crédito e ele entraria reduzindo a emissão.

Com esses créditos fora do sistema que entram para complementar, o mercado não fica desestabilizado? Em países como o Brasil, por exemplo, mesmo com muito desmatamento, ainda é possível gerar muitos offsets por conta das florestas. Como ocorre essa interação?

É necessário que a gente já considere o tanto de offset que poderá ser utilizado quando se faz o desenho do instrumento. A proposta para o mercado de carbono deve definir a quantidade máxima de offset que o mercado vai aceitar, de modo também que não impacte no preço do crédito de carbono nesse mercado.

O mercado que teria sido criado não inclui o papel que poderia ser desempenhado pelas comunidades tradicionais, pelas pessoas que preservam a floresta?

Não. Existe um problema do [setor] florestal, que não está teoricamente coberto. O que podemos entender é que o setor florestal entraria nesse mercado via offset, mas isso sou eu entendendo à luz das melhores práticas de mercado. Isso tampouco foi falado.

Por que o ministro teria passado na frente dessa discussão, do PL, e criado esse mercado por decreto?

A minha percepção é a seguinte: todo mundo sabe que a pauta climática nunca foi prioridade do atual governo. Isso não é novidade para ninguém, não é porque eu sou contra ou a favor do governo. É um fato. Mas existe uma pressão internacional muito grande sobre o Brasil, até por conta da Amazônia, que foi capa de jornal no mundo inteiro recentemente por conta de queimadas e desmatamento.

É muito curioso que isso tudo aconteça às vésperas das eleições. Nunca foi pauta, agora tem que fazer um evento, fazer um burburinho e falar de mercado de carbono? O outro [ministro Paulo Guedes] confunde mercado de carbono com tributo de carbono… Ficou muito claro que foi uma coisa meio que a toque de caixa. No próprio evento o Bolsonaro apareceu, fez um discurso, e eu fiquei assim: “Gente, Bolsonaro falando de um evento de clima? Quando está sendo aprovada uma série de questões problemáticas na agenda climática e ambiental do Brasil, agrotóxico e tal… Agora ele está querendo falar de clima?”. Gerou muita desconfiança. Foi estranho.

Deixou o mercado aquecido, mas aquecido e desinformado ao mesmo tempo. Eles estão querendo informações, mas ninguém sabe dizer, porque só foi feito o lançamento de um negócio e falou-se que era mercado de carbono. Está todo mundo querendo saber as cenas dos próximos capítulos.

Considerando que estamos em ano eleitoral, essa decisão de passar na frente do PL 528/2021 e criar um mercado de carbono via decreto pode ser vista como uma tentativa de colocar o saldo na conta do governo? 

Falando como Luan, eu não tenho a menor dúvida. Eu pessoalmente tenho certeza que é isso. Esse governo reconhecidamente teve a pior performance na área ambiental e climática.

Toda essa pauta ficou de lado, e agora no último ano virou prioridade? Um governo que aprovou não sei quantos mil agrotóxicos agora está preocupado com isso? Um governo que favoreceu o agro de todas as formas possíveis agora está preocupado com a pauta? Ao meu ver, é uma estratégia para tentar apagar um pouco esse olhar extremamente queimado — literalmente, a melhor metáfora é essa — que o governo tem na agenda ambiental e climática [aos olhos dos eleitores e do mundo]. Me parece que isso é uma tentativa meio desesperada de tentar apagar um pouco essa mancha, mas as pessoas percebem que é isso. Está na cara que é algo nessa linha, basta prestar atenção.

Como você avalia o PL 528/2021, do deputado Marcelo Ramos (PSD-AM), que está em discussão? Se aprovado, ele criaria o mercado tal como deveria? 

Dizer que seria do jeito que deveria ser depende de para quem, porque existem vários interesses envolvidos. Mas com certeza seria algo muito melhor, porque está sendo construído de forma colaborativa. Por levar em consideração as discussões da COP-26, do Acordo de Paris, e vários inputs de vários setores e atores representantes de várias entidades, seria algo melhor do que um decreto que não levou ninguém e nenhum debate em conta.

Você escreveu em artigo que existem duas medidas, que são o crédito de metano e a criação da Unidade de Estoque de Carbono, que estariam voltadas ao setor do agro. Na sua avaliação, o decreto está voltado para o agro? 

Com certeza. Inclusive isso também foi consenso na plateia [do Congresso Mercado Global de Carbono] e entre as pessoas que estavam participando e acompanhando o evento. Falou-se muito de agro verde, com um certo protecionismo no setor. A gente sabe que o setor agro gera muito impacto, principalmente com o metano, e por isso que [no decreto] foi colocada essa questão do [crédito de] metano. A gente fala muito de mudança climática e do gás carbônico, mas o dióxido de carbono — nome científico do gás carbônico, CO2 — só é considerado o grande vilão pela enorme quantidade em que está na atmosfera. Em termos do potencial de aquecimento global do gás, que é o GWP, Global Warming Potencial, o metano é 21 vezes mais perigoso do que o gás carbônico. Tem que ser feita alguma coisa, porque temos um agro que é muito forte no Brasil e que emite muito metano. [Mas, no evento, o governo] vendia o agro como se fosse um setor muito bom, “agro é pop”…

A gente que trabalha no setor sabe que realmente é um setor extremamente perigoso no sentido das emissões de gás de efeito estufa, principalmente porque o Brasil tem metas, tem sua NDC [Contribuição Nacionalmente Determinada], que é o compromisso brasileiro [de reduções de emissões], e [o prazo da] primeira meta já é em 2025, e [o] da segunda em 2030. [Dessa forma], já tem meta batendo na porta. Se a gente não bater essa meta, que foi uma meta estabelecida pelo próprio governo brasileiro, vai ficar muito esquisito, muito ruim e muito mal [para o Brasil], e alguns pesquisadores já estão mostrando que ela não vai ser alcançada. Assim, naturalmente os setores precisam se engajar mais, precisam ser mais ambiciosos, e não [o governo] flexibilizar mais a operação desses setores.

Considerando o decreto, como essas medidas voltadas para o agro iriam funcionar?

Nunca se falou sobre isso nas grandes experiências internacionais. Nunca. A gente fala de crédito de carbono, não crédito de metano. Não existe na literatura algo dessa linha. O governo brasileiro, além de não ter experiência nenhuma com isso, está querendo começar diferente de todo mundo.

O governo participou desse evento para lançar o mercado de carbono no Brasil, medida que se encaixa na agenda climática, mas os dados mostram que os sistemas de sanções e multas ambientais estão sendo destruídos e não existe um esforço de combate ao desmatamento. É possível que o lançamento mercado de carbono seja efetivo para o combate à crise climática sem pensar em mecanismos de controles do desmatamento?

Não. Existem dois tipos de mecanismos para o enfrentamento da crise climática: os mecanismos de comando e controle e os mecanismos econômicos ou de mercado. Os primeiros são mecanismos regulatórios e de fiscalização, como no caso do desmatamento. O Estado deve estar lá fiscalizando, porque não se pode deixar na mão do setor privado. Certas políticas e realidades precisam de um controle do governo, como o licenciamento ambiental. Não pode ser uma empresa, tem que ser governo, porque são operações e atividades que geram um impacto muito grande, como uma hidrelétrica ou uma termelétrica, então é necessário ter um controle mais regulatório de um órgão que vai estabelecer critérios, normas de conduta, e fiscalizar.

Para outros [tipos de instrumento ou empreendimento], é possível trabalhar com mecanismos de mercado ou econômicos, que seriam o mercado de carbono, um subsídio ou imposto sobre carbono. Esses mecanismos também funcionam muito bem, mas funcionam muito bem para alguns casos específicos, não para todos. Então é preciso que haja uma conjunção desses instrumentos, como tem no mundo inteiro.

Dessa forma, a resposta é com certeza não, é necessária uma interação entre esses instrumentos.

O evento visou criar um mercado global de carbono, pensando também em exportar créditos de carbono gerados no mercado brasileiro. Isso é possível? Como funcionaria?

Eles falam que criaram um mercado global e que agora precisariam criar um mercado regulado nacional para exportar esse crédito. Isso aí já mostra uma grande confusão, porque esse mercado que eles estão dizendo que foi criado é um mercado não regulado, e que seria criado um mercado regulado nacional para exportar, mas não existe isso. Não acontece de um mercado regulado exportar crédito. Não existe. O que existe é que um mercado regulado pode contar com offset florestal, mas transacionar com outro mercado é até um avanço de mercado, que a gente chama de linking. O Brasil sequer tem o mercado para pensar em exportar e se relacionar com outros mercados.

Da forma como está, o decreto ajuda o Brasil a cumprir as metas do Acordo de Paris de redução de emissões?

Não, não ajuda. Quer dizer, ele não ajuda diretamente, ele ajuda indiretamente, porque ele vai estabelecer que será preciso setores criarem os seus planos setoriais, o que significa que os setores vão precisar propor medidas mitigatórias, e essas medidas vão ajudar nas metas do Acordo de Paris e da NDC brasileira. Mas o decreto não fala quanto os setores devem reduzir, ele incentiva que os setores façam seus respectivos planos setoriais de redução de emissão.

Então deixa a criação de metas na mão dos próprios setores?

Exato. Inclusive houve um debate sobre quem iria fazer, se haveria alguém para revisar, ou se não. O decreto faz nada mais nada menos do que isso: cria essa base regulatória para que os segmentos possam desenvolver e trabalhar nos seus planos setoriais. Ele não estabelece metas, então só pode ajudar na NDC indiretamente, via a elaboração desses planos setoriais de mitigação.

E de que forma um mercado regulado auxilia os países a bater a meta e frear a crise climática?

Um mercado regulado ajuda porque nele se estabelece um limite de emissão. Dessa forma, o país pode estabelecer esse limite próximo à sua meta. Claro que um país não usa só o mercado de carbono para alcançar sua meta, e, a depender da particularidade do setor, você vai ter um tipo de instrumento mais adequado para ele.

Para a indústria, geralmente é o mercado de carbono; para [o setor de] combustível, geralmente é um imposto. É importante pensar [também] em instrumentos econômicos e de comando de controle. Gerindo todos esses instrumentos, o país consegue fazer com que eles levem a uma emissão que esteja alinhada à meta.

Uma das críticas é que o decreto conflita com o RenovaBio, que é uma iniciativa do Ministério de Minas e Energia (MME) para expandir a produção de biocombustíveis, fundamentada na previsibilidade e sustentabilidade ambiental, econômica e social. Poderia explicar como ocorreria esse conflito?

Isso também é outro tema seríssimo. O RenovaBio é um programa em que basicamente existe a geração de créditos de descarbonização, que seriam os CBios, mas eles estão voltados apenas para o setor de transporte, ligado às distribuidoras. Foi criada uma meta, que foi revisada por causa da pandemia, então o próprio RenovaBio já está confuso por si só. Quando ele interage então com essa proposta [decreto], a gente está juntando duas coisas confusas, ou seja, confusão completa. Teoricamente ter um RenovaBio e ter um mercado de carbono não seria um problema, mas você tem que harmonizar essas políticas de modo que você não acabe prejudicando duplamente um setor, o que é uma preocupação.

Se você tem vários instrumentos acontecendo simultaneamente, é necessário garantir que não exista dupla contabilização. Não pode existir um fardo duplo sobre um segmento. Se você colocar o RenovaBio e também um tributo sobre o setor de transporte, você terá um problema com certeza. É necessário que tudo esteja muito bem orquestrado, e parece que essa orquestra não está muito bem afinada. Um está tocando uma escala de sol, outro em escala de fá, outro em escala de mi, e ninguém está se entendendo muito bem, porque cada um está tocando em uma orquestra diferente. É preciso harmonização entre essas políticas para que haja um alinhamento entre essas propostas.

Por fim, como conciliar a crise econômica e social que o Brasil vive, em um momento de crescimento da fome e da pobreza, com a necessidade de atender às metas do Acordo de Paris e reduzir as emissões de gases estufa?

A grande questão da agenda climática é que, em um país em crise econômica, a agenda prioritária vira a geração de emprego e renda, isso é fato. Porém é possível pensar um plano de recuperação econômica para o país que não negligencie ou desconsidere como um todo outras pautas que também são importantes, como a União Europeia e os Estados Unidos estão fazendo.

O Brasil tem metas, compromissos que já foram pré-acordados, então não pode falar que “tem uma pandemia agora” e desconsiderar tudo. Não existe isso, até porque os outros países estão fazendo a parte deles. O que tem que ser feito é se pensar uma estratégia de médio a longo prazo de recuperação econômica, porque os estudos mostram que os impactos econômicos da pandemia vão perdurar ainda por alguns anos, então a economia brasileira precisa se recuperar do ponto de vista econômico e social, endereçando ao mesmo tempo as agendas ambientais, de governança e sociais, porque são as importantes também. Não é porque eu tenho um olhar para a economia que eu vou acabar com as florestas. É possível fazer uma coisa harmônica, mas isso no Brasil, infelizmente, não está acontecendo: não tem um plano que leve isso em conta.

*Esta entrevista faz parte do especial Emergência Climática, que investiga as violações socioambientais decorrentes das atividades emissoras de carbono – da pecuária à geração de energia. A cobertura completa está no site do projeto.

*Colaborou Karina Tarasiuk

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Brasil tem ‘papel estratégico de segurança climática’, diz ex-ministra Izabella Teixeira https://canalmynews.com.br/politica/brasil-tem-papel-estrategico-de-seguranca-climatica-diz-ex-ministra-izabella-teixeira/ Thu, 12 May 2022 13:22:09 +0000 https://canalmynews.com.br/?p=28378 Ministra do Meio Ambiente entre 2010 e 2016, Teixeira avalia que a geopolítica climática atual coloca o Brasil em posição estratégica, mas que o país está “queimando este papel”.

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Na semana passada, o Supremo Tribunal Federal encerrou o julgamento da chamada Pauta Verde, como ficou conhecido o pacote de sete ações sobre a gestão do atual governo na área ambiental. Para a ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira, apesar de “frustrante” em alguns aspectos, o julgamento fez sinalizações importantes ao Executivo, ao Congresso e à sociedade brasileira ao exercer seu papel na garantia do cumprimento do dever constitucional de preservar o meio ambiente.

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Co-presidente do Painel Internacional de Recursos do Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas, Teixeira comandou a pasta entre 2010 e 2016 durante os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. À época, o Brasil chegou a alcançar o mínimo histórico de desmatamento, taxa que foi quase triplicada com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder. A redução do desmatamento durante sua gestão levou Teixeira a ganhar, em 2013, o Prêmio Global “Campeões da Terra”, da ONU Meio Ambiente.

Conhecida por ter sido uma ministra mais técnica e menos midiática, defendeu a necessidade de “o Brasil estar no futuro e não ser um país do futuro”. De acordo com Teixeira, o país não pode seguir adiando decisões importantes no combate à crise climática, como a regulação do mercado de carbono e a transição energética.

“O Brasil precisa deixar o passado para trás. Se eu quero uma sociedade menos violenta, mais inclusiva e mais sustentável, o desmatamento tem que estar fora da agenda. Se eu quero uma sociedade mais competitiva na agricultura, em uma agricultura que trabalhe a segurança alimentar no mundo, é necessário segurança climática e inclusão social. Não adianta querer discutir uma agricultura que foi modelada 45 anos atrás”.

Para a ex-ministra, a área ambiental soube construir um grande legado nos últimos 40 anos, mas falhou ao não traduzir isso em expressão política. “Nós estamos aprendendo hoje como é quando alguém vem, destrói tudo e fragmenta tudo, o que levou até o presidente do Ibama a se autodeclarar um psicopata.”

Ela também considera que o agronegócio brasileiro tem um papel estratégico para a segurança alimentar no mundo e não deve ser visto como um grupo com uma opinião só. “Não há um agro homogêneo, o que temos é uma expressão política predominante de lideranças ultraconservadoras [do agro] que se traduzem em poder político no Congresso Nacional”.

Confira os principais trechos da entrevista:

Izabella Teixeira, co-presidente do Painel Internacional de Recursos do Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas e ex-ministra do Meio Ambiente. Foto: Antonio Cruz (Agência Brasil)

Na última semana, terminou o julgamento da Pauta Verde, como ficou conhecido o conjunto de sete ações no STF sobre a política ambiental e a ação do governo Bolsonaro. Interlocutores ouvidos pela Pública avaliaram mal o resultado, considerando que houve mais “atuação” e “espetacularização” do que uma efetiva decisão dos ministros para barrar retrocessos. A senhora concorda?

Eu não diria que foi mau o resultado, eu acho que as pessoas devem entender o processo político, e entender que o Supremo Tribunal Federal dedicou-se à avaliação pelo seu pleno. Isso é uma sinalização política importante. Porém, as pessoas têm uma ansiedade.

O julgamento trouxe contornos constitucionais que foram colocados na mesa. Ao entrar na Corte Suprema, você não lê o mundo só sob a questão ambiental, mas sob as relações das questões ambientais com outros temas constitucionais. O Supremo não julga só a partir do Capítulo 225 da Constituição [que trata especificamente sobre meio ambiente], ele julga na visão de toda a Constituição. As três principais ações, no meu entendimento, foram tiradas de pauta. Ganhamos nos conselhos e perdemos na poluição do ar, que foi uma derrota importante. Na questão da representação do FNMA [Fundo Nacional do Meio Ambiente], o reconhecimento do papel e da legitimidade de representação da sociedade civil foi uma vitória histórica, uma vitória pela democracia, que se refere a algo que este governo fez questão de banir, que foi a interlocução política com a sociedade civil brasileira.

Por fim, acho que houve uma sinalização importante que o Supremo fez em relação ao Congresso. Os contornos dizem exatamente: ‘Olha, tem muita coisa aqui que é inconstitucional, então cuidado com o que vocês estão votando’. Foi um recado político importante sobre a constitucionalidade do que está em discussão em matéria ambiental no Congresso Nacional.

Na sua avaliação, o que se destacou nos julgamentos?

Particularmente, achei a posição da relatora Cármen Lúcia excepcional. Ela fez votos históricos. A posição da relatora é uma posição extremamente importante, como a posição do presidente da Corte Suprema de pautar isso num pacote só. Nós [movimento ambientalista] afirmamos às vezes coisas que não necessariamente são percebidas assim na perspectiva da constitucionalidade, e ela defendeu os interesses da área ambiental em todos os votos dela, todos, sem exceção, e foi afirmativa em mostrar a gravidade das políticas que estão sendo praticadas em um processo disruptivo dos interesses da sociedade brasileira.

Houve alguma decepção com o resultado?

O que pode ser frustrante, eu não digo que terminou mal, mas é frustrante, é o fato de que o julgamento revela três coisas que precisam ser melhor trabalhadas politicamente por todos que se mobilizam. A primeira é dimensão política das análises as quais o Supremo se debruçou. Além da visão constitucional, que é a competência do Supremo, há dimensões políticas por trás, e essas dimensões políticas me parecem que são pouco traduzidas ou pouco claras, ou são vistas a partir de interesses [de outros setores], mas não existe robustez de conhecimento nem de capacidade de interlocução.

A última decisão [ADI 6148], sobre a qualidade do ar, é muito representativa disso. É um tema complexo, um tema cujos interesses políticos e econômicos, alinhados com perspectivas internacionais, mostra a necessidade de entender melhor os interesses em jogo. O Supremo derrotar a relatora na decisão de poluição do ar revela uma complexidade de interesses econômicos, tecnológicos e divisões do setor privado, que também estão respaldados no texto constitucional. Dessa forma, mesmo na derrota, é para mim um amadurecimento político para a área ambiental.

Sessão Plenária do STF durante julgamento, na última quinta-feira (5/5), da chamada “Pauta Verde”. Foto: Nelson Jr./SCO/STF

Duas das ações mais esperadas, a ADPF 760 e a ADO 59, que tratam do Fundo Amazônia, não tiveram seu julgamento concluído. A primeira porque houve um pedido de vista por parte do ministro André Mendonça, indicado por Jair Bolsonaro; e a segunda porque foi retirada pela relatora, Rosa Weber, sem dar explicações. De que forma isso prejudicou o saldo final do julgamento da Pauta Verde?

A questão do Fundo Amazônia ter sido retirada pela relatora Rosa Weber é algo que não entendo até hoje. Eu lamento, porque era uma discussão extremamente importante em si, mas também por estar ligada às duas primeiras ações, para as quais André Mendonça pediu vista, e que têm na centralidade a questão do combate ao desmatamento.

No meu entendimento, o pedido de vista revela com clareza que, do ponto de vista político, o que está sendo praticado hoje no Brasil, e o que foi apresentado pelo voto da relatora, está em desalinhamento com a Constituição Federal. Por isso [André Mendonça] pede vista, com argumentos que, na minha opinião, são muito aquém. São argumentos defensivos, não estratégicos. Tirar o Fundo Amazônia de pauta e pedir vistas de ações centrais, na urgência de uma reorganização do plano de combate ao desmatamento, quando o Brasil continua entregando aumento de desmatamento e destruição da floresta, são ações contrárias ao interesse da Constituição Brasileira, da soberania brasileira e dos interesses dos brasileiros. No meu entendimento, pedir vistas é proteger isso [a destruição do meio ambiente], a não ser que volte muito rápido, e não há nenhuma sinalização de que isso possa vir à Corte antes das eleições.

Na sua avaliação, o papel de garantir justiça climática e justiça ambiental no Brasil também é do Judiciário? Se sim, os atores estão cumprindo com os deveres?

É de toda a sociedade brasileira. É do Executivo, do Legislativo, do poder moderador, que é o Ministério Público, e do Judiciário. É um papel de todos nós, cidadãos. As nossas atitudes individuais e coletivas são determinantes sobre um processo de justiça climática e justiça ambiental. As nossas escolhas como consumidores são determinantes, as nossas escolhas como empresários também são determinantes. O Brasil será um país mais justo e mais inclusivo do ponto de vista climático, ambiental ou socioambiental a partir de uma vontade expressa da sua sociedade e de uma pressão legítima pela democracia e suas instituições.

Se o Congresso vota na direção contrária, existe um Judiciário para garantir a constitucionalidade e existe um Executivo para vetar. E teria que ter uma opinião pública pela mídia e pelo Ministério Público para defender os interesses da sociedade brasileira. O que nós temos hoje é exatamente a desarrumação disso. Hoje não temos um Ministério Público Federal que defenda a sociedade brasileira, ele defende alguns interesses. Existe um contexto muito tumultuado no Brasil.

A senhora afirmou em entrevista ao UOL que o Brasil deve seguir a agenda do futuro e não do passado. O que é essa agenda do futuro?

É sobre o Brasil estar no futuro e não o Brasil ser um país do futuro. Um país do futuro é um país que adia suas decisões e vai pensar no futuro intangível, já o Brasil no futuro é entender como é que o futuro está vindo hoje. No futuro do Brasil, o mundo terá que lidar com a crise climática, ambiental e da poluição, a tripla crise ambiental. O Brasil precisa lidar com isso, tem que entender o seu papel nisso. Não adianta falar que você tem emissões históricas de 3%, porque não estamos vivendo no passado.

A sociedade brasileira é signatária do acordo de Paris, então deve se comprometer, sim, com a mitigação, adaptação e resiliência. O Brasil precisa discutir isso hoje para saber como suas vantagens comparativas serão competitivas no mundo de baixo carbono.

O Brasil precisa deixar o passado para trás. Desmatamento é uma agenda do passado, mas insistem em trazê-lo no presente. O desmatamento não está no futuro, ele não deve estar no futuro, porque é crime, é corrupção. Se eu quero uma sociedade menos violenta, se eu quero uma sociedade mais inclusiva e mais sustentável, o desmatamento tem que estar fora da agenda. Se eu quero uma sociedade mais competitiva na minha agricultura, na agricultura que trabalha a segurança alimentar no mundo, ela também tem que trabalhar a segurança climática. Não se trabalhará segurança alimentar no mundo no futuro sem segurança climática e sem inclusão social, e não adianta querer discutir uma agricultura que foi modelada 45 anos atrás.

O Brasil e o mundo terão que lidar com os efeitos da guerra, da recessão, da pandemia e construir soluções ao mesmo tempo, pois as decisões precisam ser tomadas agora para que em 2025 ou 2040 estejamos em um futuro descarbonizado. O Brasil tem que adicionar uma descarbonização com inclusão. Esse é o meu mote para o Brasil.

Termômetro de rua na Tijuca registra onda de calor que atinge o Rio de Janeiro, pelo terceiro dia consecutivo, a capital mais quente do país.

Muito se fala do “agro” brasileiro, cujos interesses seriam contrários às intenções de quem defende a pauta ambientalista e climática. Na sua avaliação, falar no agro como um só pode atrapalhar essa luta? De que forma?

Falar do agro como um só não traduz o que o agro é. É preciso enxergar o agronegócio com seu papel estratégico de segurança alimentar do mundo, pela perspectiva tecnológica, pela perspectiva econômica e comercial e pela perspectiva de inclusão social, como a formação de uma classe média no campo. Existem várias lentes. Não há um agro homogêneo. O que temos é uma expressão política predominante de lideranças ultraconservadoras que se traduzem em poder político no Congresso Nacional. Eles acham que o mundo continuará sendo pautado pelos interesses de curto prazo e comerciais. Eles [também são] importantes, tanto que estão colocando o Brasil com o papel estratégico de segurança alimentar no mundo, só que não vai ter água, não vai ter solo, não vai ter serviço ambiental para continuar produzindo. Está seco em Mato Grosso, e o povo do agronegócio no Mato Grosso já está falando que isso é problema ligado às mudanças climáticas. Está surgindo uma consciência política de que o ambiente está mudando, não só pelas novas gerações dentro do agronegócio e da agricultura familiar, mas também pelo impacto da natureza sobre os negócios no curto prazo.

O risco climático já é realidade na incerteza do sistema financeiro internacional, já é realidade do sistema de seguros, já é realidade nas cadeias produtivas de alimentos, com a inflação de preços. E esse risco não está sozinho, está junto ao risco de guerra, ao risco social, à desigualdade, com o risco de diferentes interesses geopolíticos na divisão do mundo entre Estados Unidos e China… Tudo tá na equação de risco. Só enxerga isso quem tem a capacidade de liderar por ser afirmativo no futuro e não por ser reativo do passado. Infelizmente parte do agro brasileiro hoje ainda vive uma liderança reativa do passado.

A oposição hoje ao governo tem cometido esse erro de generalizar agro?

Eu não acho que ela generaliza o agro, mas ela lida com a expressão política do agro. A oposição é uma posição política, e ela lida exatamente com esse domínio político do agro reativo, do passado, que é a voz do retrocesso, que explora a dicotomia e a polarização entre meio ambiente e agricultura, que explora a exclusão social das ONGs e a sociedade civil no seu debate e privilegia os interesses de curto prazo de parte do setor privado. A oposição política lida com a realidade política e a realidade política é essa.

A senhora já citou a necessidade de o país “reconhecer erros do passado” para seguir em frente com uma agenda climática e ambiental responsável. Que erros seriam esses? A senhora se arrepende de alguma decisão tomada enquanto ministra? 

Eu não me arrependo de nenhuma decisão tomada enquanto ministra. Nenhuma decisão. E se elas reportam alguns erros, os erros são meus, não das instituições. Não me arrependo, porque todas as minhas decisões foram calcadas pela democracia e pelos processos técnicos, científicos, institucionais e políticos. Eu sempre valorizei as instituições, sempre ouvi a ciência, a sociedade, e tomei decisões no curso da democracia. Não me arrependo de nenhuma.

E quais foram esses “erros do passado”?

Os erros são não estar usando as lentes certas no óculos para fotografar os vários Brasis e saber intervir sobre as realidades e construir processos com escala. Sabemos problematizar, formar o quadro do problema, sabemos entender o nosso papel, a nossa responsabilidade, sabemos, sim, construir questões legais, instrumentos legais importantes. Mas nós temos que entender que precisamos ser mais ampliados nas relações políticas entre Estado e sociedade, Poder Público e sociedade, ter mais robustez, um chamado backup das instituições. O Bolsonaro destruiu o Inpe e o Ibama, e não teríamos informações ambientais se o Map Biomas não existisse. Hoje ele funciona como uma salvaguarda. Nós estamos aprendendo hoje como é quando alguém vem, destrói tudo e fragmenta tudo, o que levou até o presidente do Ibama a se autodeclarar um psicopata.

Os erros também têm a ver com o nosso comportamento político. A área ambiental é tão afirmativa e é tão importante, e ela soube construir um legado fantástico nos últimos 40 anos, mas nós não conseguimos traduzir isso em expressão política em bancada. Está faltando uma adesão da sociedade e uma maior aderência às realidades desses Brasis que nós temos. O Brasil também precisa dar escala para suas soluções socioambientais e isso significa entender a complexidade das relações políticas de curto prazo e históricas de território. Temos que falar de Amazônia 1.0 antes de falarmos de Amazônia 4.0. Nós somos capazes de bolar soluções incríveis como a Amazônia 4.0, mas não temos todo o chamado framework político e institucional construído para lidar com 1.0.

Por fim, também é importante reconhecer que nós perdemos muito tempo. Ter levado dez anos para tomar uma decisão sobre Código Florestal é um erro, porque há uma relação direta de meio ambiente com agricultura e vice-versa. E quantas oportunidades a área ambiental teve de rever uma lei ou de fazer uma lei de licenciamento? Você não pode levar 21 anos negociando a lei de resíduos sólidos e nessa lei não tratar as questões tributárias como de uma solução com logística reversa. O processo de negociação é longo, tem que ser longo, mas não tanto. A gente precisa distensionar e voltar a construir convergência.

Durante a COP 26, no ano passado, quando o Ministério do Meio Ambiente retirou a tramitação do PL 528/2021 sobre mercado de carbono, a senhora avaliou que o governo “não quer um mercado de carbono regulado”. Neste ano, este mesmo PL foi incluído na lista de prioridades do governo, e a agenda do ministro Joaquim Leite mostra que esta foi a pauta mais frequente. Como o governo parece estar lidando com o mercado de carbono? 

Continuo dizendo que não é prioritário. O ministro Joaquim Leite quer regular por decreto, criar um mercado por decreto, e está se dedicando a consultas entre seus pares para isso. Só que ele ofereceu um decreto que não agradou nem aos seus pares. Por isso é importante olhar o mercado por outra perspectiva.

Não há como você solucionar a questão climática sem o setor privado, e o setor privado tem um papel nas questões de tecnologias, de comércio internacional e descarbonização, de precificação de carbono e de mercado de carbono. Me parece que o governo quer fazer o mercado que ele quer, não o mercado negociado com a sociedade por intermédio do Congresso. Então ele pega os interesses que ele quer desenhar, com alguns agentes do setor privado e desenha o decreto. Ele cria um mercado sem considerar a segurança jurídica, a visão estratégica de mitigação, sem lidar com a qualidade  de carbono. É como resolver a questão para atender quatro ou cinco pessoas interessantes. Isso não é uma discussão estratégica de interesse nacional, que contribua para a mitigação climática, para uma visão de que o Brasil está fazendo entregas concretas no arranjo internacional global e gerando critérios muito objetivos para os nossos requisitos verdes, para o nosso protecionismo verde climático. Pelo contrário, poderá criar uma grande incerteza sobre o país, porque é tudo feito com base em interesses de curtíssimo prazo, Isso não é estruturante, não é assim que se faz política de Estado. Para isso é preciso fazer uma grande pactuação e eu não vejo isso sendo debatido.

O Brasil comete erros, não só por uma postura de negacionismo climático, mas por uma postura amadora de regulação. O governo tem papel estratégico de regulação e regulação significa segurança jurídica, caminhos objetivos para negócios e investimentos que nos leve rumo a descarbonização inclusiva. O que você tem hoje é uma situação que o ministro se reúne com seus pares, está tomado por isso, faz reuniões, seminários, mas descolado. Todo mundo vê aquilo com muita desconfiança, mesmo coisas boas que possam estar sendo propostas serão colocadas no contexto de desconfiança. Isso é ruim, porque você parte atrasado.

Ao pensar em mudanças climáticas e como responder a elas, existem especialistas que avaliam que de nada adianta se não houver uma perspectiva de direitos humanos para discutir a temática. A senhora concorda? Como isso poderia ser feito?

A questão climática é uma questão de desenvolvimento, ela está na centralidade da equação do desenvolvimento do mundo. Portanto, todos os assuntos correlatos à agenda do desenvolvimento tem a ver com atenção climática. Todos. Uma das questões centrais do processo de desenvolvimento é como desenvolver com mais inclusão, com mais equidade, e você não pode partir do zero, existe um passivo, que a pandemia exacerbou.

É necessário trabalhar com os instrumentos da questão climática, por meio de discussão sobre o que é NDC [Contribuições Nacionalmente Determinadas], o que está fora, o que deve ser voluntário, quais setores estão fora da equação… Porque alguns setores estão fora da equação. Quem opera com carvão tem uma sobrevida de 15 ou 20 anos, por exemplo. O que você vai fazer com os trabalhadores que vivem da indústria? Com pensamento estratégico se opera a curto e médio prazo, arrumando os caminhos, abrindo possibilidades no futuro, não fechando. Isso é um país com pensamento estratégico, mas nada disso está acontecendo hoje. Tudo é reativo e reativo, muitas vezes, com a visão do passado ou com a visão “neoliberal”, de dar vantagem para o setor privado.

A agenda de direitos humanos ganha outra dimensão, ganha importância nisso. Você está tratando de direitos, mas também de deveres humanos, porque se trata de corresponsabilidade. Isso o Brasil não faz bem hoje, não só pela característica firme desse governo de ser anti direitos humanos – nós temos uma anti-ministra de direitos humanos –, mas por não estar repactuando com a sociedade essa visão de direitos humanos que inclui cidadania climática, justiça climática, que inclui o passivo que nós temos de desigualdade. Nós vamos trilhar novos caminhos de desenvolvimento da economia acirrando desigualdades? Ou nós vamos trazer isso com realinhamento? Essa repactuação precisa ser feita com vozes da sociedade, pela sociedade, com lideranças que são traduzidas em lideranças políticas, do setor privado, com representatividade em governos eleitos. Precisamos de uma repactuação política, e não vai ser com essas pessoas que estão aí.

Um dos instrumentos climáticos são os programas de Pagamento por Serviço Ambiental. Inclusive, um deles, o Floresta + Amazônia, está sendo realizado por meio de recursos conquistados durante a sua gestão no Ministério do Meio Ambiente do governo Dilma por conta da redução do desmatamento. Como a senhora avalia a forma como os PSAs estão sendo geridos?

Eles estão lidando muito mal, porque eles não compreendem o Pagamento por Serviço Ambiental como um novo momento da relação do homem com a natureza. Eles têm uma visão colonialista com a natureza, de sacar e remunerar o setor privado, que detém áreas privadas da floresta em pé. Se eles tivessem responsabilidade sobre isso, eles estariam reduzindo o desmatamento. Quando nós fizemos isso [o governo Dilma criou a primeira Comissão Nacional para REDD +, sigla que significa Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal, para refletir sobre estratégias e pagamento por resultados em 2015], nós tínhamos uma visão estratégica, que nós colocamos na cooperação internacional.

O Pagamento por Serviços Ambientais está no conjunto do que hoje nós chamamos de soluções baseadas na natureza, e o Brasil tem que ter uma visão estratégica sobre isso. O Brasil tem um Código Florestal para restaurar e tem um Marco Legal, portanto, tudo que for feito a mais [do mínimo definido por lei] é o que pode ser reconhecido internacionalmente.

A gestão de áreas protegidas no Brasil envolve áreas públicas e áreas privadas. Pelo Cadastro Ambiental Rural [CAR] conseguimos provar que tinha mais área em pé do que a área desmatada irregularmente em propriedade privada. Se o Brasil não tem nenhuma visão estratégica sobre gestão de áreas protegidas, considerando o público e o privado, como será feito o Pagamento por Serviços Ambientais? [Parece que o Ministério] só quer remunerar individualmente algumas pessoas que estão na sua base.

O projeto Floresta +, mostrando o fracasso que ele é, tem cinco ou seis módulos, mas nenhuma visão estratégica de se é para conter desmatamento, se o foco está em propriedades em fronteira de desmatamento, se o projeto está combinando isso com segurança hídrica, se está associado a corredores de fauna ou polinizador… Ou seja, é um pagamento de serviços ambientais para sua turma, não um pagamento de serviços ambientais para beneficiar a sociedade brasileira.

Além de não beneficiar efetivamente a sociedade, que outras consequências a criação de programas falhos pode gerar?

Existe uma grande preocupação internacional, porque, para você conseguir recursos, você tem que reduzir o desmatamento. O Floresta + foi estruturado com a doação de 100 milhões de dólares que vem da redução de desmatamento da minha época. Com o desmatamento aumentando, o futuro ministro não vai ter dinheiro. Ele vai ter que reduzir o desmatamento, passar quatro anos reduzindo, para poder tentar viabilizar recursos dessa mesma natureza. Esse governo não só impõe o atraso no presente, mas no futuro. São atitudes de incompetência que imobilizam o Brasil no futuro. O Brasil terá que ser muito mais criativo, terá que combinar outros arranjos e acessar outro dinheiro. Terá que ter base no resultado. Não adianta fazer mais promessas, este governo fez promessas equivocadas e expôs as instituições brasileiras.

À época em que Teixeira chefiou o Ministério do Meio Ambiente, Brasil chegou a alcançar o mínimo histórico de desmatamento, taxa que foi quase triplicada com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder. Foto: Bruno Kelly (Amazonia Real)

De que forma as instituições foram expostas?

Uma das instituições mais expostas pela sua fragilidade na área ambiental são as Forças Armadas, que sempre trabalharam conosco em apoio na logística. Hoje tem general autorizando desmatamento e garimpo em zona de fronteira; e todas as iniciativas comandadas pelo General Mourão resultaram em resultados absolutamente concretos: aumento do desmatamento da Amazônia.

Isso é concreto, o Brasil é um país que aumentou o desmatamento ilegal em terra indígena, aumentou o desmatamento em terra pública, aumentou o desmatamento em Unidade de Conservação. Isso são os resultados desta gestão, não adianta esconder, não adianta levar embaixador de país estrangeiro para ver uma Amazônia intocável e não mostrar o restante. A Amazônia hoje, nos territórios que desmatam, tem o maior índice médio de homicídio do Brasil. O Brasil já tem um índice de violência enorme no mundo, isso é fruto desta administração, isso é fruto do governo Bolsonaro, fruto da irresponsabilidade daqueles que manejam instituições públicas brasileiras para fazer esse tipo de resultado.

É um insucesso absoluto, não tem credibilidade, não tem confiança. Prometeu e não fez e, ironicamente, nunca se gastou tanto dinheiro. Proporcionalmente o Brasil nunca teve tanto dinheiro para fiscalização, nunca se gastou tão mal um dinheiro. Para mim, tem uma grande incompetência institucional e talvez pudesse reduzir isso numa frase: se você pedir um analista ambiental para comprar um tanque de guerra, um drone militar, ele possivelmente vai errar muito, ele não é especialista nisso.

A senhora também falou em outras entrevistas sobre o que chamou de fake green. O presidente ontem mesmo publicou um vídeo em suas redes sociais em que afirmou que não há desmatamento na Amazônia. Qual o papel da desinformação ambiental para esse governo? 

O governo é fake green. Por isso que publica esses vídeos. Ele não conta o que aconteceu na destruição da Amazônia na gestão do governo dele. É impossível você desmatar a Amazônia em quatro anos, então ele mostra uma coisa intocável de 80% preservados e não fala dos 20% e da contribuição do governo dele sobre isso. Ele faz uso da maquiagem verde. Ele manipula as informações. O fake green determina no Brasil a perda de credibilidade e confiança, por um lado, e por outro lado permite que muita gente nos chame de mentirosos. Um chefe de estado ser chamado politicamente de mentiroso é o esvaziamento político de um país. É nessa perspectiva que ele está jogando. O fake green é a identidade política do governo. Ele manipula as informações. É tudo falso, ele lidera pelo o que é fake, liderança pelo que não é real, lidera pela destruição.

Bolsonaro “lidera pela destruição [ambiental], segundo Teixeira. Foto: Marcos Corrêa (PR)

Um dos argumentos do governo Bolsonaro é que eles são a favor da defesa da soberania nacional, e que os países estrangeiros e ONGs querem ganhar dinheiro e roubar a Amazônia. Esse discurso já foi checado e comprovado falso; ainda assim, a geopolítica é um campo de interesses. De acordo com as suas experiências, existem cuidados que devem ser tomados ao aceitar dinheiro e colaborar para fomentar programas ambientais? Pode existir algum outro interesse de países e atores que se colocam em defesa do meio ambiente para além de ‘salvar o mundo e permitir a vida no planeta’? 

O Brasil sempre defendeu seus interesses durante toda a trajetória da sua cooperação internacional. Nós nunca aceitamos nenhum dinheiro que fosse contrário aos nossos interesses, nem pela sociedade civil. Para mim, o argumento do governo é completamente equivocado. Os países estrangeiros têm interesse, sim, eles têm visões, eles defendem seus interesses nacionais. A questão é que nós estamos indo para a dimensão planetária. A geopolítica climática coloca o Brasil em um papel estratégico de segurança climática, mas o Brasil está queimando este papel, entregando a Amazônia para o crime, não para o desenvolvimento. Quem entrega para o crime, não é soberano. O meio ambiente é um bem público de interesse da sociedade, tem que ser protegido. Se eu protejo os meus interesses, eu estou sendo soberano. Soberania se exerce, não se declara. Exercer a soberania é proteger os interesses da sociedade.

O Brasil precisa definir o que ele quer dessa agenda e quais são seus interesses. Precisa definir o seu protecionismo verde de maneira propositiva e não reativa. Bolsonaro só reage aos outros, ele não diz como é que ele quer, não afirma. Para afirmar ele tem que saber proteger. O governo atual não sabe, na perspectiva do protecionismo verde, defender os interesses brasileiros. São reativos, quando vão negociar eles usam os ativos que nós fizemos, quando querem dinheiro internacional, vão dizer o que nós fizemos. A Amazônia está de pé 80% porque nós preservamos, não eles. Quando esse país sentar e falar “vamos funcionar assim”, não vai ter para ninguém. Aí o mundo vai vir atrás do Brasil. Fazendo seus resultados, o Brasil pauta o mundo. Jogando como está jogando, ele é pautado pelo mundo.

Hoje a Petrobrás já não pode ser considerada e nem vendida como a salvação do Brasil. Quais são os desafios da transição energética?

O Brasil precisa, sim, discutir uma transição energética que não seja um adiamento energético. Todos os cenários que o Brasil publicou recentemente nos colocam na mesma fotografia de transição energética que tínhamos em 2015. Não acho que o Brasil esteja discutindo transição, o governo está discutindo como ganhar tempo. Nós temos uma posição ainda confortável, mas a competitividade nessa agenda vai ser cada vez mais crescente e, com a guerra [da Ucrânia], essa agenda trouxe uma nova perspectiva geopolítica sobre a questão energética. O Brasil precisa se debruçar sobre isso, não só sobre combustíveis fósseis, mas sobre energias renováveis. Nós estamos perdendo alguns espaços e não estamos preenchendo os espaços estratégicos.

O Brasil ainda discute uma perspectiva, por exemplo, do Pré-Sal ser importante para a questão energética brasileira, mas sem discutir o impacto das responsabilidades do escopo 3 da cadeia de petróleo e gás. Quem queima petróleo do Brasil não é o Brasil, nós exportamos isso. Qual é o desenho de corresponsabilidade que vamos ter nisso? Ninguém está discutindo isso, está todo mundo vivendo o nirvana do lucro de curto prazo com dólar em cima, sem entender discussões estratégicas em relação à segurança e a questão do petróleo.

A transição energética no Brasil deveria ser usada de fato como agenda estratégica de transição de uma descarbonização brasileira para o desenvolvimento sustentável. Não vejo liderança no governo sobre isso, o Ministério de Minas e Energia hoje tem posições que me parecem muito de energia naftalina, não de energia contemporânea.

Por fim, a senhora está satisfeita com o papel que a pauta ambiental climática tem desempenhado até então na pré-campanha do principal candidato de oposição, que é o ex-presidente Lula? Como a senhora avalia as promessas que têm sido feitas?

Eu acho que o presidente Lula e o vice-presidente Alckmin lançaram uma campanha com discurso modelando, sim, os caminhos que precisam ser retomados e abrindo portas para uma discussão mais contemporânea sobre as questões socioambientais. É preciso entender a dimensão do retrocesso na formulação política, então você tem que conter o sangramento. Para conter, você tem que afirmar um realinhamento, tem que mobilizar as pessoas para que elas possam acreditar na sua capacidade de reconstruir, mas não reconstruir com base no passado, é construir olhando para o futuro.

Nós temos problemas contemporâneos que nós vamos ter que lidar, como a questão climática. Temos problemas do passado que estão no presente, como a questão da fome, que nós já tínhamos banido e voltou, e a questão da pobreza. Isso são equações que a área ambiental terá que se deparar para oferecer saídas, por exemplo, para ter alimentos mais baratos. Para ter uma alimentação barata, eu preciso de segurança hídrica, eu preciso de segurança de propriedade, preciso de crédito de propriedade. Para isso eu vou ter que trabalhar com uma visão crítica sobre regulação fundiária, terei que trabalhar com soluções em territórios.

Tanto o discurso do vice-presidente Alckmin, como do presidente Lula, sinalizam isso: a necessidade de alinhamento contemporâneo com a questão climática, com a necessidade de reconhecer os direitos indígenas sobre seus territórios. A necessidade de discutir projetos de estrutura importantes para o Brasil, tendo os indígenas o direito de serem ouvidos propriamente e participarem do processo. É preciso tirar os preconceitos da mesa para lidar com soluções, que permitam não só o desenvolvimento do país de maneira sustentável e inclusiva, mas que permitam que não mais volte mais o retrocesso que nós estamos experimentando.

O Brasil precisa reconhecer os direitos dos excluídos, mas precisa reconhecer os seus deveres em relação a não ter mais degradação e desigualdade. Precisa definir o que não é mais permitido: não é permitindo que a pobreza volte, que a fome volte, que a violência no campo volte, que o desmatamento volte. Isso tudo está na nossa conta como cidadãos, nós temos que entender isso e ter esse compromisso com o futuro.

Pauta Verde no STF

Das sete ações inicialmente pautadas para serem julgadas durante a Pauta Verde, duas foram consideradas procedentes e uma improcedente com a necessidade de alterações. Entre as procedentes estão: ADI 6.808, sobre licenciamento ambiental automático e ADPF 651, sobre participação da sociedade civil no conselho deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente.

A ADI 6.148, sobre qualidade do ar, foi considerada improcedente, mas o Executivo deve, em 24 meses, editar nova resolução mais protetiva.

Outras três, ligadas ao Fundo Amazônia e combate ao desmatamento, não foram julgadas. A ADO 59 foi retirada pela relatora, ministra Rosa Weber, sem explicações. O julgamento das ADPF 760 e ADO 54 foi paralisado por conta de pedido de vista do ministro André Mendonça.

Também deixou a pauta a ADPF 735, sobre a retirada de autonomia do Ibama como agente de fiscalização na Operação Verde Brasil 2, de relatoria da ministra Cármen Lúcia.

Conteúdo originalmente publicado na Agência Pública e reproduzido em parceria com o MyNews.

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