Arquivos Por Mariama Correia da Agência Pública - Canal MyNews – Jornalismo Independente https://canalmynews.com.br/post_autor/por-mariama-correia-da-agencia-publica/ Nosso papel como veículo de jornalismo é ampliar o debate, dar contexto e informação de qualidade para você tomar sempre a melhor decisão. MyNews, jornalismo independente. Fri, 20 May 2022 13:01:21 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.7.2 Renato Freitas: um vereador entre o racismo e o fundamentalismo religioso https://canalmynews.com.br/politica/renato-freitas-um-vereador-entre-o-racismo-e-o-fundamentalismo-religioso/ Fri, 20 May 2022 13:01:21 +0000 https://canalmynews.com.br/?p=28569 Um dos poucos parlamentares negros da Câmara de Vereadores de Curitiba pode ter seu mandato cassado por participação em ato antirracista.

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Renato Freitas (PT) é um dos apenas três vereadores negros entre os 38 parlamentares da Câmara de Vereadores de Curitiba (PR). Ameaças racistas não são novidade na trajetória do advogado de 38 anos, que cresceu em uma periferia da cidade sulista e já enfrentou vários episódios de violência policial. Contudo, desde fevereiro deste ano, os ataques se acirraram.

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“Volta para a senzala”, estava escrito em um e-mail direcionado a ele, que teria sido enviado pelo vereador Sidnei Toaldo (Patriota), relator do processo que pode levar à cassação do mandato de Renato. A Corregedoria da Câmara abriu sindicância para apurar a autoria do e-mail.

O vereador petista sofre processo ético-disciplinar por sua participação em uma manifestação antirracista pela morte do imigrante congolês Moïse Kagambe, espancado até a morte no Rio de Janeiro em 24 de janeiro deste ano, em um quiosque na praia da Barra da Tijuca.

Durante o protesto, em 5 de fevereiro, manifestantes entraram e ocuparam a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Benedito, no centro de Curitiba, erguida por escravos no centro da cidade e historicamente destinada a eles. O ato foi classificado como “profanação injuriosa” pela arquidiocese da cidade, mesmo tendo sido realizado após a missa, como ficou comprovado em vídeos e foi confirmado posteriormente pela própria cúpula local da Igreja Católica, em carta aos vereadores, com pedido pela não cassação do vereador.

Mesmo após o pedido da Igreja, os ataques contra o vereador continuaram. Em fevereiro, o presidente Jair Bolsonaro (PL) chamou os participantes do ato de “marginais” que “não respeitam a casa de Deus” e cobrou apuração dos fatos em sua conta no Twitter.

Na Câmara de Vereadores, Renato foi acusado de “cristofobia” pelo vereador Marciano Ramos (Republicanos), integrante da bancada evangélica da Câmara de Curitiba e aliado do prefeito Rafael Greca (DEM), a quem o petista faz oposição declarada.

Vereadores da bancada religiosa assinaram representações onde acusam o parlamentar de quebra de decoro, infração punida com perda de mandato. Um dos autores é Osias Morais (Republicanos), ligado à Igreja Universal do Reino de Deus e vice-líder do prefeito na Casa Legislativa.

“O que é decoro, ou a quebra dele, senão a interpretação sobre minha forma de agir e falar? E que é um poder subjetivo que o Estado tem para condenar alguém.”, questiona Renato sobre seu processo de cassação. “É isso que a polícia faz, que a Câmara faz, que sofro ao longo de décadas. Então, de algum modo já estou acostumado.”

À Agência Pública, o vereador disse que pretende recorrer na Justiça, caso a maioria dos parlamentares vote pela perda do seu mandato. Também adiantou que está articulando um movimento nacional com novas lideranças políticas negras do país, como Galo de Luta, representante dos entregadores de aplicativos de entrega, uma das figuras públicas que se posicionou contra a cassação do vereador. “Queremos negros e pobres como protagonistas”.

Renato Freitas (PT) é um dos apenas três vereadores negros entre os 38 parlamentares da Câmara de Vereadores de Curitiba. Foto: Ascom Renato Freitas

Você acredita que pode perder o mandato? Se acontecer, pretende recorrer? 

O processo já se encontra em estado de exaurimento. Já passou pela Comissão de Ética e falta apenas a chancela do Plenário na Câmara. É claro que se fosse uma circunstância favorável isso representaria uma possibilidade de segunda discussão, mas não é o que ocorre. Inclusive, vazou que 13 vereadores, ligados ao prefeito, já assinaram o decreto de cassação. Precisa de 20 para formar maioria (entre 38 vereadores). Para mim o que resta é o recurso judicial.

O prefeito é o maestro dessa conspiração. Sou oposição declarada a ele. Nossos princípios são absolutamente opostos. Ele é conhecido por declarações aporofóbicas (medo ou rejeição aos pobres). Chegou a dizer que não gostava dos pobres e que, quando botou um pobre dentro do carro dele, vomitou por não suportar o cheiro. Quando tomou posse, a primeira medida dele foi fechar os guarda-volumes da população em situação de rua daqui do centro. Depois ele autorizou a guarda municipal  a retirar à força esses pertences.

Outro grande embate que tive com ele foi um projeto que tentou proibir as pessoas de fazerem doações. As pessoas que queriam doar uma marmita para uma pessoa em situação de rua foram proibidas, sob pena de multa de R$ 550. Conseguimos deter o projeto e isso gerou uma grande exposição dele.

Você denunciou o recebimento de um e-mail com insultos racistas. Continua recebendo ataques? Sente medo? 

Recebi mensagens de gente dizendo que ia me dar tiro. Outros mandaram fotos de armas. Mas a verdade é que a gente tem Deus por nós. Não há o que temer, nem lamentar. Antes de nós, outras pessoas lutaram. Outros virão depois. Não desenvolvo nem ansiedade, medo ou frustração. Na Câmara, acho que o jogo contra mim já está marcado. Mas acredito que no Judiciário tenho possibilidade de recorrer. Foge absolutamente ao meu controle.

E-mail direcionado a Freitas, que teria sido enviado pelo vereador Sidnei Toaldo (Patriota). Foto: Reprodução

Além de serem da base do prefeito, os vereadores que assinam as representações do seu processo de cassação são ligados a igrejas evangélicas. Como é sua relação com as lideranças religiosas na Câmara? 

A gente já teve uma briga muito grande com os religiosos. Os hipócritas que se utilizam de um verniz religioso para pregar o ódio mais visceral e destruidor. A bancada religiosa da Câmara dos Vereadores é encabeçada pelo pastor Osias de Moraes (Republicanos), que é da Igreja Universal e vice-líder do prefeito na Câmara. Ele teve a falta de escrúpulo de levar um médico, na tribuna virtual, que disse que com ivermectina tinha curado mais de 10 mil funcionários em uma empresa que trabalhava. Era mentira. Ele era médico do trabalho, fazia só admissional e demissional. As pessoas que ficavam doentes procuravam unidades de saúde básica.

Na época, falei que era uma picaretagem, charlatanismo, sobretudo quando você ainda tem motivação política para induzir pessoas a erro, em prol de fortalecer laços de Bolsonaro e sua base. Foi quando sofri meu primeiro pedido de cassação, ainda no primeiro semestre do meu mandato, mas que não prosperou.

Então, desde o início, seu mandato tem enfrentado resistência dentro da própria Câmara? Você acredita que tem sido vítima de racismo e violência política? 

A Câmara foi o tempo todo hostil comigo. A ponto de, em momentos, eu fazer comentários mais contundentes contra eles, o líder do prefeito vir me perguntar se eu estava bêbado, se eu tinha costume de beber durante a sessão ou só antes. Em outro momento disse que eu tinha usado maconha, porque durante uma das minhas falas cantei uma música que chama Hipócritas de Ponto de Equilíbrio, que era para eles.

Alguns vereadores tentaram descredibilizar meus posicionamentos durante as sessões dizendo que eu era só um menino. Inconsequente. Que eu não sabia o que fazia e falava. E o mais curioso é que teve vereadores mais novos do que eu me chamando de garoto. O líder do prefeito, por exemplo, não é mais novo, mas é do mesmo ano que eu, de 1983. São coisas que você percebe que são racismo mesmo. A pessoa te vê como menos: intelectualmente, emocionalmente. Te vê como menos por todos os ângulos.

Em fevereiro, o presidente Jair Bolsonaro (PL) postou um tweet chamando os participantes do ato de “marginais” que “não respeitam a casa de Deus”. Foto: Reprodução

Você e os manifestantes que participaram do ato antirracista foram acusados de profanar um tempo. De não terem respeito com o espaço religioso e de culto das pessoas. Você pode explicar como tudo aconteceu? A ideia de entrar na igreja foi sua? Vocês invadiram a missa?

No dia 5 de fevereiro, num sábado, por conta da morte do imigrante Moïse Kagambe, atos antirracistas e contra a xenofobia foram realizados em todas as capitais, inclusive fora do país. A gente organizou nosso ato para cinco da tarde. Foram vários grupos ligados ao movimento negro e à associação dos imigrantes. A Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de São Benedito é onde teve o pelourinho, onde se deu a mercantilização dos seres humanos que eram escravizados, visto como coisas e objetos, em Curitiba. Fica no centro comercial da cidade. Só que tinha a missa às cinco horas e não sabíamos.

Nossa manifestação terminou começando apenas às 17h30, quando a missa já tinha acabado. O padre estava falando só os informes. Ao invés dele ter um espírito pacificador, teve um espírito de conflito. Ficou perguntando o que a gente tava fazendo ali, no lugar de entender que a gente estava fazendo uma manifestação em prol da vida. Um dos manifestantes respondeu a ele: estamos aqui porque essa igreja é nossa. E outro já chamou o padre de racista. Ele respondeu fazendo um ‘joinha’ com a mão. Então a galera ficou ‘P da vida’ porque ele estava ironizando, como se fosse inquestionável. Como se visse no próprio umbigo a razão de ser da própria igreja. A igreja é muito mais que ele, tanto que é igreja do Rosário dos Homens Pretos.

Pensei na hora: vão arrumar uma coisa com o padre, vai ficar ruim pra nós. Daí os manos já falaram: “na oração do padre não tem a nossa vida”. Alguém deu a ideia de entrar na igreja e isso se alastrou como rastilho de pólvora na hora. Então ocupamos.

Você foi acusado de “cristofobia” (preconceito contra cristãos) por um vereador da Câmara. Li entrevistas onde você cita versículos bíblicos. Qual sua relação com o cristianismo? 

Não sou nem católico, nem evangélico. Eu sou cristão. Minha mãe é cristã. Paulo disse aos Coríntios: o templo sois vós. Jesus disse: onde estiverem dois ou três em meu nome, ali eu estarei. Essa tentativa de aprisionar Deus dentro de quatro paredes foi um fracasso histórico. A Idade Média demonstrou que não dar possibilidade de interpretação —  mas sobretudo de vivência dos dizeres bíblicos—, pode levar a verdadeiras heresias. Gente que, dentro da igreja acredita estar falando com Deus, mas quando sai não fala com o morador de rua, com quem mais precisa, que são acusados, torturados e assassinados pelo sistema, como Jesus Cristo.

É pela história dos humildes, dos mais fracos, dos que servem, que sou cristão. Não pelos fariseus e doutores da lei que foram responsáveis pela morte de Jesus. Quem estava comprimido para ouvir os ensinamentos de Jesus? O povo. Quem gritava Hosana quando ele chegou em Jerusalém depois de ser batizado? O povo.  Quem acusou ele? Quem ofereceu armadilhas para Jesus, acusando de blasfemador, de fazer milagres aos sábados? Quem fez isso foram os religiosos da época, que se achavam donos da religião e de Deus. Essas pessoas são a grande representação do mal.

Na sua opinião, estão querendo cassar seu mandato por racismo? Existem outras questões?

O racismo é um dos elementos, com toda certeza. Há uma hostilidade em relação à minha presença na Câmara dos Vereadores. Você vê nos olhos das pessoas, na forma como me tratam. Mas também o elemento de classe e o elemento político.

A Câmara de Curitiba tem 38 vereadores —  35 brancos e 3 negros. Herivelto Oliveira (Cidadania) é uma pessoa que era um apresentador de afiliada da Rede Globo aqui. Ele faz parte da base do prefeito. Já a Carol Dartora é do PT e tem uma postura mais de enfrentamento em relação à realidade racista de Curitiba.

Eu luto pelo direito à moradia. Quem são as pessoas que não têm direito à moradia? Que foram libertas da escravidão e não tiveram a possibilidade de, com uma reforma agrária, receber um pedacinho de terra. Os Estados Unidos deram 40, 50 alqueires e uma mula aos libertos. No Brasil, se produziu uma massa de vidas desperdiçadas e matáveis, que foram controladas pelo sistema penal. Lutar pelo direito à moradia é lutar pela causa negra. Via de regra é difícil fazer um corte de bisturi nessas questões raciais, políticas e de classe, porque elas se misturam muito. Então, tem o racismo, mas tem as minhas lutas também por moradia, por uma segurança pública que não seja tão preconceituosa e higienista —  não meramente eugenista, no sentido racista, mas higienista. Aqui a pobreza é vista como uma sujeira, uma mancha no cartão postal de Curitiba, que se vende como civilização de primeiro mundo e não convive com a miséria. E isso é uma mentira.

E como é ser uma liderança política negra nessa cidade que, como você disse, vê a pobreza como uma mancha no cartão postal? 

Curitiba é uma cidade muito fascista. Foi o berço do integralismo, de células neonazistas no Brasil. Tem um conservadorismo, se considera um berço europeu dentro de um país miscigenado. Em Curitiba, a polícia é muito mais perversa. É bem remunerada, bem equipada, composta por uma classe média do funcionalismo público que é branca, mas não só branca, mas que reivindica essa ascendência europeia. Para nós negros, andar nas ruas, ocupar espaços públicos, é um grande desafio. A polícia aborda, constrange, dissuade as pessoas do propósito de acessar espaços públicos. Curitiba é uma cidade aberta com muros invisíveis. Está aberta, mas sei que não posso entrar.

Você já contou em outras entrevistas que foi vítima de violência policial. Poderia falar um pouco sobre essas situações? 

Tenho mais de dez processos de desacato. Em 2004, eu tinha acabado de entrar na universidade. Morava no extremo da periferia e fui abordado dentro de um terminal, às 18h, por um PM que já estava fora do horário do trabalho. Ele me enquadrou na plataforma do ônibus. Eu estava sozinho. Deu a geral, jogou meus livros no chão. Mandou tirar o tênis, bateu a palmilha. Não contente, mandou tirar a meia. Tirei e cheirei a meia. Aí ele me deu um tapa no rosto, me derrubou no chão e me algemou. Na delegacia, a acusação de desacato foi fundamentada no fato de que cheirei a minha meia.

Em 2016, disse a um policial que era advogado e sabia meus direitos. O cara me prendeu porque achou que minha carteirinha era falsa. Outra vez, fui enquadrado numa praça. Não acharam nada e me mandaram sumir dali. Eu disse que não ia sair. Olha como o que estou passando hoje é uma continuidade do que sempre aconteceu. O que é o decoro, ou a quebra dele, senão a interpretação sobre minha forma de agir e falar? E que é um poder subjetivo que o Estado tem para condenar alguém? Não é exatamente o mesmo poder que um policial tem quando tá com a arma na tua cara e, qualquer coisa que você disser, ou não disser, ele pode dizer que você está desacatando a autoridade dele? É isso que a polícia faz, que a Câmara faz, que sofro ao longo de décadas. Então, de algum modo, já estou acostumado.

Apesar dos ataques que você denunciou ter sofrido, há também o apoio de lideranças políticas, artistas que têm aderido à mobilização pela manutenção do seu mandato. Como tem sido receber esses apoios de personalidades nacionais? Isso te motiva a continuar na política? 

É muito da hora saber que a gente tem apoio de gente como Leci Brandão, Ice Blue, do Racionais, políticos, artistas, líderes de movimentos como Galo de Luta, liderança dos entregadores de aplicativos, e tantas outras. Tenho vários planos de continuar desenvolvendo meus projetos. Um deles é trabalhar com egressos do sistema carcerário. Oferecer integração no mundo do trabalho, assistência social, mas também uma conscientização sobre o sistema de segurança pública, sobre a lógica que permeia esse sistema para libertar pessoas da cadeia de criminalização que gera reincidência cada vez mais. E tenho outro projeto de narrativas marginais na literatura, cinema e música para jovens.

Além dos projetos, quero construir um movimento de dimensão nacional, junto com essas grandes lideranças que você apontou —  e tantas outras. Quero que a gente construa uma forma alternativa de organização que nos respeite e que tenha nós mesmos. Queremos negros e pobres como protagonistas. Hoje não temos. A gente quer que aconteça isso um dia também no PT, mas se vermos o primeiro escalão dos assessores do presidente Lula, a cada 30 [brancos] vai ter um negro pra cumprir uma cota e colorir uma foto. Quem domina é a elite branca.

Essa proposta é de formação de um partido? 

Não, mas um movimento de caráter nacional, que abrigue vários outros movimentos, com suas bandeiras, mas num caráter talvez até suprapartidário. Onde a gente tenha um espaço para discutir nossas ideias, e que seja protagonizado por nós. Discutir, organizar e sermos nós. Coisa simples, mas que a gente ainda não tem oportunidade no Brasil.

*Atualização: Depois da publicação desta entrevista, a Justiça suspendeu a sessão extraordinária que votaria o processo de cassação do vereador no dia 19 de maio. A suspensão vale até que seja concluída a sindicância que apura a mensagem racista que teria sido enviada por e-mail pelo vereador Sidnei Toaldo, relator do processo.

Conteúdo originalmente publicado na Agência Pública e reproduzido em parceria com o MyNews.

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‘O racismo religioso quer demonizar Exu’, diz autor de livro sobre intolerância religiosa https://canalmynews.com.br/mais/o-racismo-religioso-quer-demonizar-exu-diz-autor-de-livro-sobre-intolerancia-religiosa/ Mon, 02 May 2022 15:26:40 +0000 https://canalmynews.com.br/?p=28083 O babalorixá Sidnei Nogueira articula resposta jurídica aos ataques de fundamentalistas religiosos, depois da vitória de enredo sobre o orixá no Carnaval do Rio.

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Quando a escola de samba Acadêmicos da Grande Rio foi sagrada campeã do Carnaval do Rio de Janeiro com um enredo que exaltou Exu (em iorubá: Èṣù), um dos principais orixás do candomblé e da umbanda, o babalorixá Sidnei Nogueira celebrou com seus mais de 75 mil seguidores do Instagram. “O carnaval deste ano foi uma resposta contra o racismo religioso”, postou.

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Não demorou muito para que os ataques de fundamentalistas religiosos começassem. “Evangélicos que não são meus seguidores vieram me atacar por mensagens privadas. ‘Tá repreendido em nome de Jesus’, ‘Você vai morrer’, disseram. Uma pessoa chegou a falar que eu tenho sangue nas mãos. Que eu matei a menina que morreu em um acidente com um carro alegórico. Como uma pessoa pode fazer essa associação?”, comentou em entrevista à Agência Pública poucos dias após o desfile. Assim como ele, outras lideranças de religiões de matriz africana relataram ataques virtuais desde o desfile da Grande Rio, que pretendia desmistificar a imagem da divindade africana, demonizada por grupos fundamentalistas cristãos no Brasil.

“Exu é vida. Não é o demônio,” explica Sidnei Nogueira, que também é professor e doutor em Semiótica pela USP (Universidade de São Paulo)Na conversa, ele também falou sobre racismo religioso, ataques a Exu e a lideranças de religiões de matriz africana. Ele diz que está articulando uma mobilização com lideranças de terreiro e juristas para responder ao racismo religioso. “Existem ataques de influencers, políticos e cantores gospel. Minha proposta é que essas pessoas com influência tem que ser penalizadas. No mínimo, elas têm que se retratar, porque isso é discurso de ódio.”

Confira abaixo os principais trechos da entrevista.

Sidnei Nogueira é coordenador e professor do Instituto Ilê Ará SP – Instituto Livre de Estudos Avançados em Religiões Afro-brasileiras. Foto: Reprodução (Redes sociais)

Por que demonizam Exu?

Quem que chega no Brasil para colonizá-lo? O Deus cristão e a lei europeia, portanto nós precisamos entender que o Brasil não é laico. O outro fator tem a ver com o projeto político de poder. Em toda a história do Brasil, a política sempre se serviu de um discurso maniqueísta, ou seja, do bem contra o mal. Sempre colocou qualquer coisa, qualquer manifestação cultural religiosa que viesse do continente africano e que fosse preta, no lugar do mal. A gente pode pensar que isso é do senso comum, mas não é, é uma estratégia política, sobretudo hoje.

Quando os colonizadores chegam no continente africano e não encontram o demônio deles, eles precisam substituir, eles precisam encontrar esse demônio cristão. Aí eles pegam aquela divindade, que é a liberdade, a palavra, a comunicação, o prazer, que é a criança que brinca no mercado. Eles pegam essa divindade e a revestem como se ela fosse o demônio.

Tem vários elementos. Tem elementos de um projeto político de poder, tem elementos da fé – porque a fé é um lugar de muita subjetividade, é muito pessoal – e tem um outro elemento que é você encontrar uma figura, um personagem ao qual você pode atribuir todos os males do mundo. O resumo é o seguinte: “Eu não encontrei o demônio no continente africano, eu preciso de um demônio. Exu vai ser esse demônio porque ele é preto, porque ele é a liberdade, porque ele é o prazer, porque ele é o senhor das trocas, porque ele é a diversidade, porque ele é a multiplicidade. Em alguma medida, ele assume tudo que os padrões cristãos não suportam.

Ou seja, essa visão do orixá tem relação com racismo? De que modo?

Diretamente. Toda essa perseguição é uma perseguição racista, em primeiro lugar. O racismo não é só ferramenta do capitalismo, o racismo é ferramenta das religiões hegemônicas. Para eles, o demônio não é branco, o demônio é preto. Não adianta. Veja que ninguém coloca Buda no lugar de demônio, ninguém coloca Hare Krishna no lugar de demônio. Por que só colocam uma divindade africana? Nem o coelhinho da páscoa assume o lugar de demônio, ele é branquinho. Os cristãos amam o Papai Noel. Veja que não tem a ver com figuras míticas populares. Exu é africano, é preto, não adianta, Exu não é europeu, ele é Yorubá, é uma divindade preta. Então, o racismo religioso quer demonizar Exu.

Quando nós de terreiro aparecemos no trabalho, por exemplo, com um três pontas [tridente que simboliza Exu], imediatamente nós somos hostilizados. Já começa o buxixo, “ai, macumbeiro, cuidado, olha Exu”. Se uma pessoa se comporta – até uma criança – mais livremente, a professora chama a criança de Exu. Porque a cultura brasileira odeia a liberdade, a diversidade, a encruzilhada. E a encruzilhada é um lugar de três pontas para onde você pode voltar e refazer as escolhas. Exu é a lei da mutabilidade, nós mudamos. Todos nós mudamos. Mudamos desejos, mudamos de casa, mudamos de território, mudamos o nosso corpo. Nós morremos e renascemos simbolicamente a cada dia. Odeiam porque sabem que a figura de Exu é subversiva. Ela balança a ordem que está posta.

“O carnaval deste ano foi uma resposta contra o racismo religioso”, diz. Foto: Gabriel Monteiro (RioTur)

Na sua percepção, a intolerância religiosa tem aumentado no Brasil com o avanço do conservadorismo e do fundamentalismo religioso, inclusive nos espaços da política institucional?

A nossa sociedade odeia a vida. Ela ama morte, porque ela ama encarcerar vidas. Porque se você só pode ser heteronormativo e você não é essa pessoa, isso é viver uma morte simbólica. Se você é uma mulher que quer assumir a sua liberdade, a sua potência, a sua liderança, mas já está reservada para um papel no casamento, na submissão ao patriarcado, que não é seu desejo, isso não é vida.

Exu é liberdade, o contrário de Exu é encarceramento. Exu é vida, Laroyê!

O senhor acompanhou as reações ao desfile da Grande Rio? Vimos alguns relatos de ataques e discurso de ódio nas redes. Aconteceu com você? 

As reações estão sendo absurdas. Evangélicos que não são meus seguidores vieram me atacar por mensagens privadas. ‘Tá repreendido em nome de Jesus’, ‘Você vai morrer’, disseram. Uma pessoa chegou a falar que eu tenho sangue nas mãos. Que eu matei a menina que morreu em um acidente com um carro alegórico. Como uma pessoa pode fazer essa associação?

Nós já vivemos num país fundamentalista, e em um momento da história do Brasil em que odiar é imperativo. É preciso odiar sobretudo as coisas pretas, sobretudo o feminino, sobretudo os povos quilombolas, sobretudo os povos indígenas, os povos originários. Isso se potencializa com a colheita de likes na internet, porque é preciso produzir um conteúdo odioso. Quem, em sã consciência, pode acreditar na relação entre o acidente com a menina que morreu na avenida e o fato de uma escola de samba ter sido campeã? Por que essas pessoas cristãs não oferecem conforto a família dessa menina? Por que não pegam o seu Deus, o seu Jesus e oferecem para confortar os corações da família? Por que eles não pegam o seu Deus e o seu Jesus e começam uma batalha contra o estupro de uma menina de 12 anos indígena por um garimpeiro?

É preciso que o cristianismo no Brasil, que as religiões hegemônicas no Brasil, façam imediatamente uma autocrítica. Porque isso não pode continuar. Eu sou uma autoridade, uma liderança de terreiro, eu tenho legitimidade para falar: não conheço o demônio. Não faz parte da minha cultura religiosa. Exu não é o demônio, nem Cristão.

Desfile da Grande Rio, consagrada campeã do Carnaval do Rio de Janeiro com um enredo que exaltou Exu. Foto: Marco Antônio Teixeira (RioTur)

Está sendo articulada alguma resposta para esses ataques?

Existem ataques de influencers, políticos e cantores gospel. Estou conversando com um grupo de juristas de São Paulo para mobilizar respostas ao racismo religioso. Minha proposta é que essas pessoas com influência tem que ser penalizadas. No mínimo, elas têm que se retratar, porque isso é discurso de ódio. Depois, esse discurso de ódio fomenta que venha um evangélico incendiar o meu terreiro porque nós somos produtores e produtos dos discursos que estão circulando no mundo.

Quem é Exu dentro da cosmovisão das religiões de matriz africana?

Exu é um orixá. Foi para a Avenida na Grande Rio um dos principais mitos de Exu, que nós levamos muito a sério no Candomblé. No terreiro, penso que ele define muito Exu. Um dia, Exu, filho de Iemanjá e de Orunmilá, nasceu. Ele é o preferido da força criadora, o preferido de Olodumare, de Olorum. A força criadora em Yorubá tem 16 nomes, não é Deus, a figura de Deus não contempla a força criadora. A força criadora não tem gênero, inclusive, não é patriarcal.

Exu nasceu com muita fome. Ele nasce falando “eu quero comer”. Yemanjá, a divindade nutridora, oferece os seios, ele mama, mas o leite acaba. Ela traz outras coisas para ele comer: frutas, carne, animais. Ele sai comendo tudo. O pai, Orunmilá, fica desesperado. Ele começa a devorar as casas, árvores, tudo, até a mãe. Então o pai fala “olha, mamãe, não, devolve sua mãe”. Aí Exu dá aquela gargalhada – ele nasceu gargalhando, gargalha da vida, de tudo, inclusive do sofrimento, tudo ele transforma. Orunmilá diz para ele devolver a mamãe e Exu fala para eles fazerem uma brincadeira de troca. Eles estavam no Orun, o mundo dos orixás, não era aqui no Aiyê, no nosso mundo. Orunmilá fala para ele devolver Yemanjá e ir para o Aiyê onde “será os olhos do papai e poderá habitar tudo que tem vida”. Orunmilá corta Exu e vão nascendo um, dois, três, ele vai cortando até 200 mais um. Aí nós dizemos que Exu habita em nós. Todos temos Exu.

Exu é então uma divindade bastante próxima do humano?

Exu diz: prove o mundo sem medo. Portanto Exu é a divindade que provou tudo primeiro para que nós pudéssemos provar depois. É a boca que tudo come, ele come tudo. Exu não tem preconceito, não tem racismo, não tem homofobia, não tem xenofobia, não tem transfobia. É a divindade do autoamor, da autoconfiança. Sim, ele também é a libido, também é prazer, é desejo, porque ele devorou tudo. Sem medo.

Exu nos ensina que romper é continuar. Para nós, Exu é um orixá primordial, que tem lições poderosas de cura, diversão, alegria, gargalhada, zombaria, é a criança que brinca no mercado. É homem e mulher ao mesmo tempo, é o tudo e o nada, é a dor e o prazer, é a vida em toda sua potência e possibilidade existencial.

*Colaborou Matheus Santino

Conteúdo originalmente publicado na Agência Pública e reproduzido em parceria com o MyNews.

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