Coluna do Daniel Carvalho de Paula no MyNews
A recente discussão em torno da taxação dos super-ricos expõe não apenas uma disputa fiscal, mas também um traço profundo da cultura econômica brasileira: a ausência de vínculos de solidariedade entre a elite e a sociedade. Ao contrário do imaginário norte-americano, onde o “sonho americano” é celebrado como conquista individual possibilitada por uma estrutura coletiva (universidades, financiamento público, infraestrutura etc.), no Brasil prevalece a ideia de que o enriquecimento se dá “apesar do país”. O empresário ou investidor bem-sucedido não se reconhece como produto de uma coletividade, mas como sobrevivente de um ambiente hostil.
Essa percepção tem efeitos devastadores. O primeiro é que a elite econômica brasileira não constrói compromissos com a sociedade, mas apenas com o próprio círculo familiar. O raciocínio é simples: “não devo nada ao país; devo apenas ao esforço dos meus pais e devo garantir que meus netos e bisnetos sejam ricos”. Essa mentalidade, enraizada em uma tradição patrimonialista e pouco afeita à redistribuição, alimenta a resistência a qualquer tentativa de taxar grandes fortunas ou rendas excessivas. Diferente dos Estados Unidos, onde a filantropia de bilionários é celebrada como gesto patriótico (ainda que controverso), no Brasil o gesto dominante é a perpetuação da riqueza dentro de um clã, somada à negativação do território e do povo.
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O segundo problema é a corrosão da ideia de solidariedade social. Se os ricos se percebem como habitantes de um outro mundo, cercados por muros e blindagens, deixam de enxergar a precariedade da infraestrutura pública, a fragilidade do sistema educacional e a urgência de políticas de inclusão como problemas que também lhes dizem respeito. Criam-se assim ilhas de prosperidade em meio a oceanos de desigualdade, reforçando um apartheid social que enfraquece o tecido democrático. Essa separação simbólica legitima a lógica de que “cada um por si” é suficiente, quando, na prática, o desenvolvimento sustentável exige reciprocidade.
A narrativa do enriquecimento “apesar do Brasil” também cumpre uma função ideológica: absolve a elite de sua responsabilidade histórica. Ao negar o papel do Estado e da sociedade na formação de oportunidades, reforça-se o mito do mérito absoluto, como se não houvesse infraestrutura, crédito subsidiado, mão de obra barata ou recursos naturais que, direta ou indiretamente, alimentaram esse enriquecimento. É uma estratégia discursiva para recusar qualquer dever de retribuição sob a forma de impostos mais progressivos ou investimentos sociais.
O debate sobre a taxação dos super-ricos, portanto, vai além da técnica fiscal. Trata-se de uma disputa sobre pertencimento. Ou a elite brasileira se reconhece como parte da sociedade, e não como fortaleza isolada, ou seguiremos reféns de um modelo excludente em que a riqueza se reproduz em círculos restritos enquanto a maioria permanece à margem. Diversos países já mostraram que é possível conciliar prosperidade privada com solidariedade pública. O Brasil, contudo, ainda precisa romper o seu secular entreguismo.
*Daniel Carvalho de Paula é Doutor em História e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie