Coluna do Daniel Carvalho de Paula no MyNews
Uma das grandes tragédias da política contemporânea nos Estados Unidos é a incapacidade de parte significativa da elite nacional em conceber que a democracia pudesse, de fato, ruir sob seus pés. Ao contrário de países como Brasil, Alemanha, Coreia do Sul, Argentina, Chile ou Espanha, todos com experiências recentes de autoritarismo, os Estados Unidos não conheceram em sua história republicana a perda da democracia por dentro. Essa ausência de memória autoritária tornou as elites universitárias, jurídicas, empresariais, midiáticas e políticas mais suscetíveis ao autoengano: acreditaram que a democracia americana era imune a retrocessos, quando, na realidade, já se encontrava em processo de corrosão acelerada.
O trumpismo, nesse sentido, não se limitou a discursos incendiários ou a tentativas episódicas de desacreditar instituições. Ele se traduziu na sistemática instrumentalização do Estado para fins de perseguição política, no uso de agências governamentais como instrumentos de intimidação, e na corrosão deliberada da confiança pública em tribunais, universidades e meios de comunicação. Esse processo pegou a elite norte-americana desprevenida, não obstante os inúmeros alertas publicados em livros e relatórios acadêmicos que já apontavam para o risco de autocratização. Muitos, ao recordarem o turbulento fim da presidência anterior de Trump, pensaram que “a América sobreviveu” e, portanto, sobreviveria novamente. Foi um erro de cálculo.
Mais grave, porém, é o modo como a sociedade civil americana tem reagido a essa escalada. Em uma cultura marcada pelo individualismo e pela baixa tradição de organização coletiva, cada ataque de Trump e de sua administração contra pessoas ou instituições específicas foi enfrentado de maneira isolada. Sem sindicatos fortes, associações empresariais coesas ou redes de solidariedade capazes de responder de forma articulada, os alvos desses ataques se viram sozinhos. E, sozinhos, caíram um a um, incapazes de conter a máquina autoritária.
O resultado é que Trump obteve êxito não tanto em construir uma maioria política estável, mas em subjugar uma sociedade civil vibrante e plural que, em teoria, deveria ser capaz de resistir. Universidades foram intimidadas, empresas coagidas, jornalistas perseguidos, mas sempre de modo fragmentado. A ausência de uma resposta coordenada, em nome da preservação de princípios comuns, tem sido a grande fragilidade da democracia americana diante de um projeto autoritário que prospera justamente na lógica da divisão e da intimidação.
O caso norte-americano ensina, portanto, uma lição universal: democracias não se defendem sozinhas, e a crença ingênua na sua indestrutibilidade é uma de suas maiores vulnerabilidades. Se as elites americanas demoraram a compreender que o autoritarismo não é um pesadelo exótico reservado a “outros países”, resta agora aprender que resistir a ele exige menos fé abstrata na solidez das instituições e mais ação coletiva, articulação estratégica e solidariedade prática. Enquanto cada alvo responder de forma isolada, o projeto trumpista continuará a avançar como um rolo compressor sobre o espaço público.
*Daniel Carvalho de Paula é Doutor em História e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie