Duas prisões, milhões de seguidores e uma pergunta no ar: arte ou apologia?
Marisa Monte, uma das estrelas da noite, já havia se apresentado quando um homem de meia-idade chamou os filhos para ir embora. Os jovens o convenceram a ficar mais um pouco. Era madrugada no festival “Queremos”, na Marina da Glória, Zona Sul do Rio. Subitamente, um alvoroço se espalhou pela plateia. As atenções se voltaram para o show de um cantor negro, de visual estravagante. Cabelo com reflexos alinhados como casca de jaca, anéis e cordões grossos. Surpreso, o pai descobriu que o público acompanhava todas as músicas, com letras que tratavam de drogas, violência, prisões e ameaças. O homem olhou para o lado e notou que os próprios filhos sabiam as letras de cor. “Quem é esse cara?”, indagou, antes de saber que estava diante de Marlon Brandon Coelho Couto Silva, nome de batismo de MC Poze do Rodo, o dono do espetáculo naquele dia 15 de abril.
Seis semanas depois do evento, policiais da Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE) prendiam MC Poze na casa do artista, no Recreio dos Bandeirantes, na zona oeste do Rio de Janeiro, sob a acusação de fazer apologia ao crime e de ser ligado à facção Comando Vermelho. Uma mistura de indignação e cólera tomou conta do mundo funk enquanto Poze era encarcerado na Penitenciária Doutor Serrano Neves (Bangu 3). Um dos mais revoltados era Mauro Davi dos Santos Nepomuceno, o rapper Oruam, filho do traficante Marcinho VP. Igualmente popular, ele chamou a prisão de covardia e de um ato de humilhação aos artistas periféricos. Outras sete semanas depois, era a vez do próprio Oruam ser preso pela mesma DRE. Ele é acusado de associação ao tráfico de drogas, tráfico de drogas, resistência, desacato, dano, ameaça e lesão corporal.
Pelo que ouviu de Poze na Marina da Glória, não restou dúvida ao pai dos fãs do MC sobre as razões da prisão dos dois artistas. Letras que encantam multidões ao defender facções do tráfico, exaltar o uso de armas e clamar pela liberdade dos que estão presos são claras apologia ao crime, refletiu. Outros pais de classe média pensam o mesmo. Uma visão que não encontra acolhida entre pesquisadores que acompanham a trajetória de artistas do gênero. A cientista social Carolina Grillo, do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI-UFF), é uma das vozes dissonantes. Ela alertou que as duas prisões, no fundo, não passam de uma reação da segurança pública ao imenso sucesso de jovens periféricos. O que está em cena é uma guerra cultural. A polícia, segundo ela, pratica o “populismo penal”, com acusações e prisões de viés racista, para barrar a ascensão de carreiras artísticas antes que elas se consolidem como um gênero celebrizado nas caixas de som dos brasileiros.
No ranking da Pro-Música, entidade que representa as principais gravadoras e produtoras fonográficas do Brasil, o segundo lugar entre as músicas mais executadas no Brasil, no primeiro semestre de 2025, ficou com “Oh Garota Eu Quero Você Só Pra Mim”, parceria de Oruam, Zé Felipe, Mc Tuto.
Estamos diante de uma cruzada das autoridades contra o gênero e seus expoentes: jovens, negros, periféricos, que cantam assumindo o “eu lírico” de um traficante. E quando fazem isso, oferecem ao público nuances sobre a visão dominante que se têm do assunto. Por trás das prisões, existe uma disputa de narrativas. Para a polícia, esse personagem não pode ser humanizado nas obras dos cantores – afirma Carolina Grillo.
A visão da cientista social é reforçada por Danilo Cymrot, pesquisador cultural, mestre e doutor em Direito pela USP. Sem entrar no debate sobre a natureza dos crimes atribuídos aos dois artistas, ele observa que algumas pessoas são “alvo preferencial” do sistema penal. E no Brasil, acrescenta Cymrot, essas pessoas são geralmente jovens, negros, pobres, de periferias ou de favelas.
Envolvidos ou não em práticas criminosas, Oruam e Poze, como alvo do sistema penal, confirmam uma regra que não se aplica apenas aos cantores de funk e de hip hop. Se aplica a um grupo maior do qual eles fazem parte.
Os crimes de resistência qualificada, desacato, dano, ameaça e lesão corporal, segundo a Polícia, foram cometidos por Oruam durante uma confusão na casa do artista, no Joá, Zona Oeste do Rio, no dia 21 de julho. Policiais foram ao local para apreender um adolescente suspeito de envolvimento com o Comando Vermelho (CV). Durante a abordagem, a equipe foi atacada com pedras e o jovem conseguiu fugir. Depois do episódio, o cantor foi para o Complexo da Penha e gravou um vídeo provocando os agentes: “Eu quero ver você vir aqui. Me pegar aqui dentro do complexo. Não vai me pegar, sabe por causa de quê? Que vocês peida”, disse ele. No vídeo, ainda comentou que é “filho do Marcinho”.
Já o MC Poze passou cinco dias preso – de 29 de maio a 3 de junho – pelas acusações de apologia ao crime e envolvimento com o tráfico de drogas. A DRE recolheu como provas vídeos de show do MC em favelas do Comando Vermelho, como Fallet-Fogueteiro (Santa Teresa), Cidade de Deus e Nova Holanda (Complexo da Maré). A investigação sustenta que traficantes portando armas de fogo fazem a escolta do artista da chegada à comunidade até o local dos shows, em eventos sem autorização de órgãos públicos, patrocinados e organizados pelo tráfico. Na visão da polícia, Poze ajuda a aumentar a lucratividade da facção ao entoar canções de enaltecimento do tráfico que aliciam jovens a ingressar no crime.
É apologia clara ao crime. Faz somente shows em áreas do CV, em eventos patrocinados e organizados pelo CV. Quem financia? Quem organiza? Como é pago? Quem pagou? – indaga um dos investigadores, que classifica a obra do artista como narcocultura travestida de música para enaltecer a facção.
Desde 1995, o funk tocado nas comunidades está na mira das autoridades fluminenses. Naquele ano, enquanto os “proibidões” e suas letras vinculadas ao tráfico de drogas se destacavam nos bailes que vararam madrugadas nas favelas da Região Metropolitana, a Assembleia Legislativa abriu a CPI do Funk. Um dos objetivos era comprovar o mesmo de hoje: a ligação de suas estrelas aos grupos armados que dominavam as comunidades. Outras ondas de repressão tentaram dar uma trava no sucesso do gênero até desaguar na Lei Anti-Oruam, proposta por um vereador em fevereiro deste ano, em Campo Grande (MS), para proibir o uso de recursos públicos para contratar artistas que façam apologia ao crime organizado e ao uso de drogas durante shows na capital sul-mato grossense. Outras capitais do país tentaram a mesma medida.
MC Poze foi solto por um desembargador que não viu motivos plausíveis para mantê-lo na cadeia. Na saída, foi acolhido e ovacionado por uma multidão. Para contê-la, a polícia usou gás de pimenta. Muitos ali faziam parte de uma legião de 16 milhões de seguidores do artista no Instagram e outros 6 milhões de ouvintes no Spotify. Não foi a sua primeira vez na prisão. Na anterior, em 2019, por corrupção de menores e também apologia às drogas, admitiu ter atuado como “vapor” do tráfico na Favela do Rodo, onde foi criado.
A experiência no crime foi transformada em fonte de inspiração. “Eu não quero saber o que eles vão falar/ pelo meu passado eles quer me julgar/ ninguém vai ofuscar quem nasceu pra brilhar/ então sai da frente pra tu não se machucar”, diz o trecho da música “MC não é bandido”, lançado pelo MC em 2020. Para acusá-lo, a polícia destaca outras músicas mais polêmicas, como “Tropa do General”, composta há seis anos: “Desde menor sou Comando, nós é relíquia/ trem-bala dos manos/ com os fuzil tudo na pista”.
Mesmo com referência direta do mundo do crime, a obra de Poze e de outros artistas periféricos não deve ser confundida com a realidade do tráfico, sustenta o pesquisador Danilo Cymrot. Autor do livro “O Funk na Batida – Baile, Rua e Parlamento”, ele admite que a realidade “não é santa” nos lugares inspiradores das composições do MC, mas não se pode “culpar o carteiro” pela mensagem:
Ao falar desses lugares, mencionando a facção, a música é quase um hino de orgulho territorial, uma forma de criar identidade coletiva. Não se pode confundir com a realidade o que é arte. Aquilo é ficção. Humilhado pelo sistema, o músico canta como se estivesse dando o troco. Um desabafo, um revide. É muito simplismo dizer que são porta-vozes das facções. Eles refletem valores compartilhados por muitos jovens. Encarnam personagens.
Os jovens que continuam na pobreza, enquanto Poze ostenta uma vida milionária em mansões na Zona Sul e adereços de ouro espalhados pelo corpo, não revelam o menor traço de inveja do menino que nasceu como eles. Pelo contrário: se sentem orgulhosos com o seu representante nas altas rodas. O produtor audiovisual Leonardo Tomaz, o Léo Parceiro, da mesma região do artista, lembra de Poze no “corre da vida”, viajando junto com o futuro músico no ônibus BRT de Santa Cruz a Barra da Tijuca, de onde seguiam para os bairros centrais do Rio.
Na época, era um moleque sofredor. Ninguém dava nada por ele. Depois do sucesso, jamais esqueceu as origens. Ele conta a dificuldade que vivemos. É um moleque real. Não é farsa. Ele é um de nós.
No dia da prisão de Poze, o secretário estadual de Polícia Civil, delegado Felipe Curi, fez questão de comparecer à entrevista coletiva sobre o assunto. Ele disse que as músicas do MC são “um instrumento de propaganda do Comando Vermelho” por enaltecer o uso de armas de grosso calibre e de drogas, além de fomentar guerras e disputas territoriais com facções rivais. Na prisão de Oruam, Curi apareceu outra vez na mídia para chamar o artista de “marginal, bandido, delinquente, criminoso e associado para o tráfico — um bandido da pior espécie”.
Poze já é réu em um caso de tortura contra um ex-empresário do cantor, a quem acusa de torturá-lo pelo suposto desaparecimento de um bracelete de ouro. Mas a Polícia investe na linha de investigação sobre lavagem de dinheiro, o que ofereceria à Justiça a prova definitiva de ligação com o narcotráfico. Para os investigadores, o músico faz uma mistura de dinheiro lícito, proveniente dos shows e ganhos nas redes sociais, com o dinheiro ilícito de uma relação com os traficantes.
A cientista social Carolina Grillo vê com reservas o rumo tomado pela polícia. O objetivo, segundo ela, é apenas o de criar “monstros” para justificar o populismo penal. Carolina lembra que um dos desdobramentos da defesa da solução fácil no combate à criminalidade, como repressão e extermínio de jovens pobres, se dá no campo político. Guerra aberta contra o crime, lembra, forja candidaturas.
A liberdade, obtida por um habeas corpus (HC) no Tribunal de Justiça, não livrou Poze da dor de cabeça com as autoridades. O artista, porém, não parece disposto a recuar na linha criativa. Sua recente experiência da cadeia, ao contrário, produziu mais uma composição para o seu repertório.
“Eu tive minha luta, foi atrás, corri, pra construir meu castelo
Não é com dinheiro de nada de errado, não
É com a minha luta, com o meu choro, valeu?
Mais uma vez provando pra vocês que eu sou artista
Então para de me perseguir
Me deixa em paz, porra”.