Com “Ainda Estou Aqui”, familiares de 82 desaparecidos buscam novas certidões de óbito

Com “Ainda Estou Aqui”, familiares de 82 desaparecidos buscam novas certidões de óbito


Como família de Rubens Paiva, parentes de mortos pela ditadura querem constar no documento que foi uma “morte não natural, violenta e causada pelo Estado brasileiro”

Na imagem acima, Diva Santana, do Grupo Tortura Nunca Mais, usa a palavra numa audiência sobre ditadura no Congresso Nacional. Ela é uma das dezenas de parentes de mortos e desaparecidos pela ditadura que buscam a retificação da certidão de óbito de seus familiares, para que conste no documento que morreram de forma violenta e vítima da ditadura militar. Sua irmã, Dinaelza Santana, atuou na Guerrilha do Araguaia, no início dos anos 1970, e nunca mais apareceu. Assim como seu cunhado, Wandick Coqueiro, companheiro da irmã. Filme Ainda Estou Aqui é usado como suporte as famílias.

Ainda Estou Aqui, que retrata Rubens, é o estímulo para auxiliar as famílias

Nas últimas quatro décadas, Diva acompanhou várias escavações naquela região em busca do corpo da irmã e do cunhado. Ela quer que conste como causa da morte na certidão o reconhecimento oficial do Estado que Dinaelza morreu de forma “não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instalado em 1964”. Assim, com esse texto, as certidões retificadas estão sendo emitidas. Wandick está entre os 11 casos de desaparecidos cujas famílias já receberam esse documento atualizado.

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O sucesso do filme “Ainda Estou Aqui”, que relata o drama da família do ex-deputado Rubens Paiva, morto e desaparecido, está impulsionando o tema e sensibilizando os brasileiros. E também estimulando familiares de vítimas atingidas pelo regime de exceção, assim como Eunice Paiva no filme, a buscarem essa retificação na causa oficial da morte de seus parentes. A certidão de Rubens Paiva foi retificada e atualizada em janeiro. A anterior, recebida por Eunice em1996, como a de Dinaelza, consta apenas que são “desaparecidos políticos”. O filme concorre no Oscar em três categorias: o melhor filme, melhor filme internacional e melhor atriz, com Fernanda Torres.

O Canal MyNews apurou que, até agora, 82 familiares de desaparecidos pela ditadura já se manifestaram perante à Comissão Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos com o interesse em obter essa nova certidão e responderam a um formulário com informações sobre seus parentes que também nunca mais voltaram para casa. O formulário visa atualizar dados dos familiares e providenciar a entrega das certidões retificadas. Pergunta se a pessoa prefere receber a certidão em uma cerimônia ou não, por exemplo. Se pelo Correio ou em casa.

Ao todo, a expectativa é que até o final do ano sejam entregues as certidões retificadas de 414 desaparecidos. O número oficial levantado pela Comissão Nacional da Verdade é que a ditadura matou 434 pessoas. Vinte destes já obtiveram a certidão. Estão previstas cerimônias regionais, nos estados de origem desses militantes políticos mortos naquele período.

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A presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos, a procuradora regional Eugênia Gonzaga, já contou ao MyNews sobre o impulso de “Ainda Estou Aqui” nessa causa e que “poupou um trabalho imenso” do colegiado que preside. E também sobre o estímulo para os familiares buscarem esses certidões com dados reais da morte do familiar. Além da culpa assumida pelo Estado, consta no documento local e data da morte.

“Promover a retificação desses dados é um dever do Estado. É uma ação positiva, da entrega de um documento tão simbólico. É importante que os familiares preencham esses formulários”, disse Eugênia Gonzaga, que comentou a contribuição do filme de Walter Salles Jr. para o conhecimento daquele período que o país viveu.

“Dois meses depois (da reinstalação da Comissão de Mortos e Desaparecidos, em julho de 2024) o filme estourou. E nos poupou um trabalho imenso, que é explicar para as famílias, uma sensibilização que só a arte é capaz de fazer”, disse.

A alteração nessas certidões de óbito atende a uma determinação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de dezembro do ano passado, para que cartórios de registro civil retifiquem e alterem os documentos de pessoas mortas e desaparecidas políticas.

Pai, companheiro e irmão desaparecidos políticos

Victoria Grabois tem uma história dramática com a ditadura. Os militares mataram e desapareceram com os corpos de seu pai (Maurício Grabois), de seu irmão (André Grabois) e de seu companheiro (Gilberto Olimpio). Todos atuaram na Guerrilha do Araguaia. Victoria vai em busca das certidões retificadas e atualizadas, com pedido diretamente ao cartório.

A certidão expedida de seu marido, Gilberto, a antiga, ignora a história. Cita como “desconhecido” o local de seu falecimento; “ignorada” a causa de sua morte; e o sepultamento em “cemitério ignorado”.

“A importância da retificação das certidões de óbitos dos mortos e desaparecidos durante a ditadura civil-militar no Brasil é muito importante porque o Estado brasileiro reconhece que foi ele, o Estado, o responsável pelos desaparecimentos de 434 brasileiros e brasileiras que lutaram contra o arbítrio e pela democracia”, disse Victoria Grabois, que considera essa iniciativa, porém, insuficiente.

“Mas isso ainda é muito pouco. Nós queremos saber como, quando, onde e quem matou nossos familiares. E para que isto aconteça, faz-se necessário abrir os arquivos da ditadura e cumprir a sentença do Araguaia (da CIDH, em  2010, e que determinou a localização dos restos mortais dos desaparecidos e a elucidação das circunstâncias das mortes).

 

Abaixo, Victoria Grabois com as certidões ainda não retificadas de Maurício e Gilberto. / Foto: Arquivo pessoal

 

O filme também provocou familiares a entrarem com processos na comissão, com pedidos de reconhecimento da perseguição do Estado sobre a morte e desaparecimento de familiares. A comissão se debruça ainda sobre a reabertura das investigações da morte do ex-presidente Juscelino Kubitschek, ocorrida em 1976, na rodovia Presidente Dutra.

Diva Santana também entende que o filme incrementou o debate sobre a ditadura e moveu familiares a agir.

“O filme trouxe luz. Como conta uma história da ditadura muito leve está tocando o coração das pessoas. Tem a história da família e leva essa informação e clareia o entendimento das pessoas. E o filme está promovendo também que as pessoas percam o medo de falar, de procurar, de buscar. Isso, esse medo, as famílias tinham, e tem, muito ainda”, disse Diva Santana.

Ex-ministro dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda celebra a contribuição de “Ainda Estou Aqui” em alavancar não só o debate como ações de reparação da verdade, memória e justiça.

“Este 2025 será um ano de muitos feitos nessa área. Desde entrega das certidões retificadas, como julgamentos importantes, como a reabertura do caso da morte de JK, e muitas outras iniciativas”, disse Nilmário, que é Assessor Especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade do Ministério dos Direitos Humanos.

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