O Brasil do espelho quebrado e os reflexos do ataque à diversidade e inclusão Foto: arquivo pessoal

O Brasil do espelho quebrado e os reflexos do ataque à diversidade e inclusão

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Apesar dos avanços das últimas décadas, Brasil acompanha retrocesso político e cultural estadunidense no âmbito empresarial

“Liliane, mas aqui no Brasil não está acontecendo o mesmo que nos Estados Unidos em termos de retrocesso de diversidade e inclusão”. Esta foi a frase que escutei recentemente de um CEO, em uma conversa por telefone, e de uma profissional C-level, em uma reunião presencial. Para ambos dei a mesma resposta, a de que não adianta tentar analisar o cenário do Brasil, tendo nos olhos a lente estadunidense. Enquanto tudo o que acontece lá, em termos sociais, acontece às claras, de maneira evidente,  – e por que não dizer, até agressiva -, por aqui, os retrocessos estão acontecendo de forma velada e, por esse motivo, estão sendo “suavizados”.

Por exemplo, nos EUA, neste momento, há um processo explícito por meio de iniciativas como as Ordens Executivas (EOs) 14151 e 14173, que exigiram a extinção imediata de todos os escritórios, cargos (incluindo Chief Diversity Officers) e programas de DEI (Diversidade e Inclusão), em todas as agências e departamentos federais. Além disso, há a Certificação Anti-DEI, implementada por meio de uma nova cláusula contratual obrigatória, que exige que todos os contratados federais e beneficiários de subvenções certifiquem que não operam programas de DEI que violem as leis federais de antidiscriminação.

No Brasil, por outro lado, o processo segue sutil. Não fosse assim, não ficaríamos sempre surpresos e até desacreditados com dados sobre a sub-representatividade de diversidade nas empresas. Embora suas ações sejam menos evidentes e noticiadas, , empresas brasileiras já estão cortando orçamentos e equipes, além de proibir o uso das palavras “Diversidade” e “Inclusão” em sua comunicação com funcionários e públicos em geral.

Nas últimas décadas, o Brasil ensaiou passos firmes rumo a uma sociedade mais plural. No entanto, hoje o país se vê diante de uma onda de reação que fragmenta avanços conquistados a duras penas. Os chamados backlash (termo popularizado em inglês para sinalizar esse tipo de retrocesso) e omovimento antiwoke (uma espécie de “anti-despertar”, que se opõe às ideias de defesa da representatividade de grupos historicamente marginalizados), manifestam-se como uma rachadura no espelho coletivo: em vez de refletir a riqueza da diversidade brasileira, projeta uma imagem distorcida, marcada pelo medo, pela indiferença e pelo esforço de restaurar privilégios antigos. Mais do que um retrocesso político ou cultural, trata-se de um alerta sobre como a intolerância pode corroer silenciosamente as culturas corporativas.

Qual é a sociedade que vemos quando olhamos no espelho? Hoje, vejo uma sociedade que, mesmo tendo 52% de mulheres, 56% de negros, 9% de pessoas com deficiência, 28% de pessoas com 50 anos ou mais, 10% de homossexuais e 2% de pessoas trans em sua demografia, parece ter rapidamente voltado a considerar normal que suas estruturas sejam compostas apenas por homens, brancos, heterossexuais, cisgêneros, sem deficiência e, no máximo, com até 40 anos de idade. Lembrando que, segundo o estudo Diversidade, Representatividade e Percepção – Censo Multissetorial da Gestão Kairós, no quadro das grandes empresas brasileiras, a demografia no nível de gerente e acima é composta por 75% de homens, 79% de brancos, 96,6% de heterossexuais, 99,3% de cisgêneros, 97,3% sem deficiência e 85% com menos de 50 anos de idade. Isso antes do backlash em curso, presumo que, se fizéssemos a mesma pesquisa hoje, os números seriam ainda mais extremos.

O espelho não mente, ele revela o quanto ainda aceitamos a normalização da exclusão. Não é a diversidade que desaparece, mas a coragem das empresas em sustentá-la. Enquanto cortam orçamentos e silenciam palavras, reforçam privilégios antigos. A pergunta é: o que faremos para garantir que, ao menos no Brasil, as empresas continuem a ser um reflexo fiel da sociedade?

*Fundadora e CEO da Gestão Kairós – Consultoria de Sustentabilidade e Diversidade, Liliane Rocha acumula 20 anos de experiência em grandes empresas. Conselheira Deliberativa do Instituto Tomie Ohtake e Integrante do Comitê de Diversidade da AMBEV. É mestre em Políticas Públicas e possui MBA Executivo em Gestão da Sustentabilidade pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Autora dos livros Como Ser uma Liderança Inclusiva e Protagonistas, desde 2016 detém oficialmente no Brasil o termo e conceito Diversitywashing – Lavagem da Diversidade, registrado no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI).  

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