Operário-doutor: Lula e a política simbólica do conhecimento Foto: Ricardo Stuckert / PR

Operário-doutor: Lula e a política simbólica do conhecimento

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Coluna do Daniel Carvalho de Paula

A concessão do título de doutor honoris causa ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva pela Universidade Pedagógica de Maputo, em novembro de 2025, insere-se em um debate mais amplo sobre reconhecimento público, legitimidade intelectual e disputa política. Trata-se da 42ª honraria recebida pelo presidente, somando-se a títulos concedidos tanto por de instituições públicas, quanto universidades privadas de elite, como a histórica Sciences Po, de Paris, que, fundada em 1871, que havia agraciado apenas 16 personalidades antes de homenagear Lula. Embora o acúmulo dessas distinções desperte reações de apoio e crítica, ele evidencia que o brasileiro ocupa um lugar de projeção global, capaz de mobilizar novos olhares sobre o papel da experiência política e social na produção de conhecimento.

O título honoris causa, literalmente “devido a honra”, não certifica formação acadêmica, mas reconhece contribuições consideradas relevantes para a sociedade, sejam elas políticas, sociais, culturais ou humanitárias. Não se exige diploma, especialização, tese ou defesa pública. Exige obra política, obra social, obra intelectual no sentido amplo. Nesse sentido, a honraria concedida por Moçambique recai sobre a atuação de Lula em áreas como desenvolvimento e cooperação internacional, campos nos quais o Brasil exerceu protagonismo variável ao longo de seus governos. Goste-se ou não de suas diretrizes políticas, trata-se de um reconhecimento que segue a lógica desse tipo de homenagem: valorizar trajetórias que influenciaram o debate público ou ampliaram agendas de transformação.

A forte reação de segmentos da extrema direita ao título recebido por Lula não se explica apenas por discordâncias políticas. Há, nesse incômodo, um traço histórico de elitismo intelectual brasileiro: a ideia de que apenas certos grupos sociais, especialmente os dotados de capital econômico e acadêmico formal, seriam legitimados como “merecedores” de distinções universitárias. A figura de Lula, com sua origem operária e trajetória política ascendente, confronta essa visão hierárquica. Não é que suas ações estejam acima de críticas, mas, sim, que a simples presença de um ex-operário recebendo distinção de instituições tradicionais abala uma noção antiga de quem pode ocupar certos espaços.

O título concedido em Maputo também possui dimensão geopolítica. Ele reitera a tentativa brasileira de retomar relações consistentes com países africanos, sobretudo diante da histórica negligência diplomática que marcou fases recentes da política externa do país. Nesse sentido, a honraria funciona como gesto simbólico de aproximação entre Brasil e Moçambique. Homenagens desse tipo são, afinal, também instrumentos de diplomacia cultural.

Por fim, o desconforto que essas distinções despertam revela algo sobre o Brasil: ainda existe resistência em admitir que figuras oriundas das classes trabalhadoras possam ser reconhecidas internacionalmente por suas contribuições políticas. O título honoris causa concedido a Lula indica que o mundo observa o Brasil a partir de perspectivas plurais e que a legitimidade, especialmente no campo político, não se restringe aos caminhos determinados pelas elites. Esse reconhecimento incomoda exatamente porque desmonta a ideia de que o fazer político e intelectual pertence apenas a uma casta superior, e recoloca em cena uma discussão histórica sobre quem tem direito à palavra, ao prestígio e ao lugar de formulação no espaço público.

 

*Daniel Carvalho de Paula é professor e pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Doutor, Mestre, Licenciado e Bacharel em História pela USP.

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