Apesar das complexidades desnecessárias, modelo trouxe inovações importantes que podem gerar resultados positivos para a gestão orçamentária
por Daniel Couri em 03/09/24 16:46
Regime fiscal sustentável completou um ano em 30 de agosto | Foto: Pixabay
Talvez você não tenha notado, mas em 30 de agosto, o mesmo dia em que o Poder Executivo enviou ao Congresso Nacional a proposta orçamentária da União para 2025, a lei complementar do regime fiscal sustentável completou um ano. O novo regime foi uma exigência da chamada PEC da Transição e refletiu o desejo do governo recém-eleito de romper com o teto de gastos, em vigor desde 2017. Dessa vez, contudo, uma lei complementar deveria estabelecer o regime fiscal, diferente do antecessor, que era uma regra constitucional.
O regime fiscal sustentável, em essência, trata das nossas principais regras fiscais, limites numéricos sobre agregados relevantes para a política fiscal. Os países adotam essas regras como salvaguarda: agindo livremente, os governos tendem a gastar demais, preocupando-se mais com as próximas eleições do que com as consequências de longo prazo desse gasto para a sociedade.
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Embora certos governos olhem torto para o tema, ele não chega a ser uma pauta que separa direita e esquerda: 105 países adotam ao menos uma regra fiscal. Cada um o faz à sua maneira, respeitando suas próprias idiossincrasias. A lei complementar do regime fiscal sustentável é o modelo escolhido pelo Brasil a partir de 2023.
De certa forma, o novo regime homenageia o anterior, pois continua ancorado em duas regras fiscais principais: a meta de resultado primário (receitas menos despesas, exceto juros da dívida), uma antiga conhecida da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF); e o limite para as despesas primárias. Este último é, na prática, um teto de gastos, embora o vocábulo “teto” tenha sido propositalmente abandonado. A diferença é que o novo teto (ou limite) é menos rígido e permite que as despesas cresçam acima da inflação.
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A manutenção desses dois pilares é um ponto positivo do regime fiscal sustentável, mas o desenho ainda merece discussão. Idealmente, qualquer regra deveria prezar pela simplicidade – e as fiscais não são exceção. No entanto, o novo regime introduz complexidades desnecessárias em ambas as regras.
No caso do limite de gastos primários, criou-se um verdadeiro tratado sobre o crescimento da despesa: a cada ano, o limite da despesa será corrigido pelo IPCA, acrescido de um percentual equivalente a 70% da variação real da receita primária, seguindo critérios específicos regulamentados pelo Ministério da Fazenda, com um piso de 0,6% e um teto de 2,5% ao ano. Esse percentual de 70% pode cair para 50% caso o governo não cumpra a meta de resultado primário.
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É compreensível a ideia de permitir crescimento real das despesas, desde que compatível com a sustentabilidade fiscal no médio prazo. No entanto, toda essa fórmula poderia ser substituída por um percentual fixo, com pouquíssima diferença em termos de gasto total no médio prazo. Regras mais simples são também mais inteligíveis e estimulam a participação de mais pessoas no debate.
A meta de resultado primário também se tornou mais complexa com a introdução de um intervalo de tolerância de ±0,25 ponto percentual (p.p.) do PIB previsto no projeto da lei de diretrizes orçamentárias (LDO). O orçamento é elaborado com base na meta, mas seu cumprimento considera o limite inferior de 0,25 p.p. do PIB. Acima desse limite, a meta é considerada atingida; abaixo, medidas de ajuste principalmente focadas no controle da despesa obrigatória são acionadas.
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Em teoria, esse modelo oferece uma margem de manobra para o governo ao longo do exercício. Em 2024, por exemplo, os 0,25 p.p. do PIB correspondem a R$ 28,8 bilhões, um valor significativo. Entretanto, a prática revelou uma utilização diferente. Nesse ano, a margem de tolerância tem sido usada para acomodar aumentos relativamente previsíveis na despesa obrigatória da União, enquanto gastos de fato imprevisíveis, como os decorrentes das enchentes no Sul, foram excluídos da apuração da meta.
O resultado é preocupante: não apenas o centro da meta foi abandonado na execução, como também o piso inferior falhou em limitar o gasto, uma vez que uma parte relevante foi excepcionalizada. Para ilustrar, o próprio governo projeta hoje um déficit de R$ 61,4 bilhões, bem distante do limite inferior do intervalo da meta. Em algum momento, será necessário reconhecer que o intervalo de tolerância não tem funcionado como previsto, o que pode levar à necessidade de ajustes no novo regime.
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Mas o novo regime trouxe inovações importantes que, se bem implementadas, podem gerar resultados positivos para a gestão fiscal e orçamentária no futuro. Uma delas é o aperfeiçoamento do marco fiscal da LDO, que agora cobre um período de quatro anos, em vez dos três anos anteriormente previstos, alinhando-se mais à média internacional.
Além disso, foi introduzida a exigência de que as metas na LDO sejam “compatíveis com a sustentabilidade da dívida”. A própria lei do novo regime define isso como a necessidade de metas de resultados primários que estabilizem a relação entre a dívida pública e o PIB. Em outras palavras, durante os quatro anos cobertos pelas metas, o governo não deve projetar cenários onde o endividamento cresça continuamente em relação ao PIB.
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A LDO agora também deve incluir uma projeção de dez anos, mostrando o impacto das metas de resultado primário na convergência da dívida pública. Isso ajudará a definir os níveis fiscais necessários para estabilizar o endividamento.
Por fim, há ainda a determinação de que a LDO apresente os resultados das avaliações de políticas públicas, que já se refletiu em seção específica do anexo de metas fiscais do PLDO 2025. Se a cultura de avaliação e, mais do que isso, a criação de interfaces entre essas avaliações e o processo orçamentário se consolidarem, poderemos alcançar bons resultados sobre a despesa no futuro.
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O maior desafio do novo regime, contudo, vem de fora e está relacionado à dinâmica dos gastos em áreas como previdência, saúde e educação. Uma das principais causas desse crescimento é a lei que instituiu a política de valorização do salário mínimo, uma das bandeiras do governo em seu primeiro ano. Além disso, boa parte das regras que impulsionam esse aumento de despesas são constitucionais, o que uma lei complementar, como a do novo regime, não pode resolver.
Nesse tema, infelizmente, há pouca margem para otimismo. Como disse a presidente do PT, partido do Presidente da República: “Entre mexer na vinculação do salário mínimo e mudar o arcabouço, tem de mudar o arcabouço. Simples assim”.
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