Programa, criado em maio de 2021, tinha como compensar os prejuízos causados pelas medidas de isolamento necessárias para o enfrentamento da Covid-19
por Tiago Mitraud em 21/11/24 15:58
Foto: Freepik
Lembro-me bem de quando, em março de 2021, no auge da pandemia, o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse) — foi votado na Câmara dos Deputados. Muitas restrições à realização de eventos ainda vigoravam, e diversas empresas do setor enfrentavam dificuldades reais devido às limitações impostas às suas atividades. Porém, a solução apresentada, como tantas outras no Brasil, trazia problemas que nos pareciam maiores do que os benefícios prometidos.
Como ocorre em tantos outros projetos aprovados às pressas para atender demandas pontuais de grupos organizados que pressionam o Congresso, o Perse apresentava inúmeras falhas. Entre elas, o projeto não focalizava os benefícios nas empresas que realmente sofreram com as restrições da pandemia, e tampouco estabelecia critérios para equiparar os benefícios concedidos às perdas efetivas dos negócios. Além disso, faltava uma estimativa do impacto orçamentário que a medida traria, gerando um risco fiscal elevado para o cidadão brasileiro, que invariavelmente pagaria a conta.
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O projeto era tão cheio de lacunas que, por mais que fôssemos solidários às empresas prejudicadas pela pandemia, não havia como apoiar sua aprovação. Ainda assim, o programa foi aprovado por quase todos os partidos na Câmara, à exceção do NOVO, bancada à qual eu integrava, que votou contra.
Para quem acompanhou a gestação do projeto, portanto, não é surpresa que a louvável iniciativa da Receita Federal de divulgar a planilha com os beneficiários do programa tenha exposto dados que deixaram os brasileiros indignados.
Desde a última semana, temos sido apresentados diariamente a renúncias fiscais milionárias destinadas a empresas que nunca precisaram de ajuda. Influenciadores ostentando riqueza nas redes sociais, artistas que passaram ilesos pela crise e até youtubers que se gabam de não depender do governo figuram entre os beneficiados. Além disso, empresas que prosperaram durante a pandemia, como plataformas digitais e redes de delivery, também foram largamente contempladas. A desconexão entre o objetivo do programa e sua execução ficou mais do que evidente.
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O Perse, portanto, falhou, e distribuiu bilhões de reais a quem não precisava. Dinheiro este, sempre bom lembrar, que sai do bolso dos mais pobres e deixa de ser investido em quem realmente precisa. Pequenos empresários que de fato enfrentaram dificuldades reais durante a pandemia receberam apenas uma pequena parcela dos benefícios — quando receberam.
Infelizmente, esse enredo é recorrente nas políticas setoriais do Brasil. Justificativas nobres, como evitar demissões ou apoiar pequenos empreendedores, frequentemente servem de narrativa para a implementação de projetos que acabam beneficiando empresas e setores que não necessitam de socorro. E o custo desses benefícios invariavelmente explode, onerando a população, enquanto os resultados prometidos ficam muito aquém do esperado.
Analisando os dados de outros programas de incentivo fiscal, como o de desoneração setorial da folha de pagamento, por exemplo, notamos um padrão semelhante: bilhões de reais destinados a empresas que estão longe de passar por dificuldades.
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Além dos problemas fiscais e da injustiça na concessão de benefícios, programas como esses geram distorções econômicas prejudiciais ao país. Eles oferecem vantagens competitivas a determinadas empresas e setores, que não são fruto de eficiência ou inovação. Beneficiam não as empresas mais produtivas ou que melhor atendem às necessidades do consumidor, mas sim aquelas que investem no lobby em Brasília ou em departamentos jurídicos e contábeis aptos a navegar pelos inúmeros incentivos fiscais do país.
Insistir no modelo de benefícios fiscais setoriais significa perpetuar políticas com critérios frouxos, abrangência desnecessária e alto custo fiscal, que continuamente apresentam resultados medíocres. Ainda assim, esses programas seguem sendo renovados, defendidos e até ampliados, mesmo sem qualquer comprovação de benefício concreto para a sociedade.
Esse enredo evidencia mais uma face do chamado custo Brasil, onde é mais vantajoso para as empresas investir em advogados e contadores do que em inovação e na qualidade de seus produtos e serviços.
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É hora de abandonar esse modelo ineficaz e apostar em políticas horizontais, que reduzam a carga tributária de forma equitativa para todos. Apenas assim será possível criar impacto econômico significativo, sem gerar distorções competitivas e injustiças como as evidenciadas pela planilha do Perse.
Sem uma mudança profunda na mentalidade de nossos legisladores e do setor empresarial, que insiste em pressionar por benefícios específicos, o Brasil continuará preso a ciclos de desperdício fiscal e políticas ineficazes.
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