O abraço populista e o abismo fiscal que une governo e oposição Fachada da Agência de Previdência Social de Atalaia, AL | Foto: JB Azevedo/Secretaria da Previdência Social Previdência

O abraço populista e o abismo fiscal que une governo e oposição

A Câmara dos Deputados protagonizou ontem, 7 de outubro, um espetáculo político com sabor agridoce: a união quase unânime de governo e oposição para aprovar, em regime de urgência, uma medida que, segundo cálculos do próprio Ministério da Previdência, pode gerar um rombo atuarial superior a R$ 800 bilhões nas contas públicas. A pressa e […]

A Câmara dos Deputados protagonizou ontem, 7 de outubro, um espetáculo político com sabor agridoce: a união quase unânime de governo e oposição para aprovar, em regime de urgência, uma medida que, segundo cálculos do próprio Ministério da Previdência, pode gerar um rombo atuarial superior a R$ 800 bilhões nas contas públicas. A pressa e a celebração, liderada pelo presidente da Casa, Hugo Motta, junto aos agentes comunitários beneficiados, expõem a perigosa atração fatal que o populismo fiscal exerce sobre a classe política brasileira. É o abraço populista e o abismo fiscal.

A hipocrisia: elogio público, desastre nos bastidores

O que torna a aprovação desta medida ainda mais cínica é o contraste entre o que foi dito no plenário e o que circula nos corredores de Brasília. Publicamente, a grande maioria dos parlamentares colheu os louros, alardeando a “justiça” e a “reparação histórica” para os agentes comunitários. O presidente da Câmara, Motta, foi ovacionado, pela categoria. O mesmo que amarga uma perda brutal de popularidade por conta do apoio a PEC que blindava parlamentares.

No entanto, nos bastidores, o tom é de desespero e reconhecimento de um “desastre” iminente. Fontes de diversos partidos, do governo e da oposição, admitem que o impacto fiscal é insustentável e que a medida é uma bomba-relógio para a Previdência. Essa duplicidade revela a prioridade máxima da classe política: garantir votos e o apoio dos agentes comunitários, que são poderosos cabos eleitorais, sacrificando a sustentabilidade da previdência. Nada de novo se olharmos atentamente ao que tem sido feito com a previdência nos últimos anos.

A tentação da reeleição sobre o equilíbrio fiscal

O cerne da medida é a concessão de integralidade e paridade, o direito de se aposentar com o último salário da ativa e ter os reajustes iguais aos dos funcionários em atividade, aos agentes comunitários de saúde. Essa regra, extinta para a maioria dos servidores federais desde 2004, foi reintroduzida no Regime Próprio de Previdência (RPPS) para esses agentes em um prazo de 20 anos.

O mais alarmante, contudo, é a tentativa de estender esses benefícios ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS), onde tais regras nunca existiram. Essa manobra representa um precedente perigosíssimo.

A explicação para tal unanimidade transcende ideologias. Os agentes comunitários de saúde são figuras de peso nos 5.500 municípios do país, atuando como verdadeiros cabos eleitorais e líderes comunitários. A aprovação da medida é vista, principalmente pelo governo, como um trunfo indispensável para a reeleição do presidente Lula, mesmo que o custo seja aprofundar o buraco da Previdência.

A oposição, por sua vez, abraça o populismo com o cinismo do “quanto pior, melhor”, apostando no colapso fiscal como munição para futuras disputas. Foram raríssimos os deputados que resistiram, com o partido Novo sendo uma das poucas exceções a não embarcar na proposta.

Os R$ 800 Bilhões e o Risco de Isonomia

O número assusta: um impacto atuarial de R$ 800 bilhões, conforme a estimativa do Ministério da Previdência que, de forma inexplicável, não foi apresentada durante a votação na Câmara, realizada em dois turnos na mesma tarde de ontem. O cálculo, por si só, já é devastador, mas o risco maior é o que a doutrina jurídica chama de “efeito isonomia”.

Se os agentes comunitários, que em muitos casos ingressaram por processos seletivos e são pagos pela União, conseguem a integralidade e paridade no RGPS, categorias como enfermeiros, médicos e policiais terão o princípio da isonomia para exigir o mesmo tratamento. Não só eles. O impacto fiscal dessa cascata de benefícios seria incalculável, transformando o rombo de R$ 800 bilhões em um abismo financeiro sem precedentes.

Além disso, a medida incluiu regras que permitem a aposentadoria precoce, como a possibilidade de se aposentar com apenas 15 anos de contribuição para os mais novos e, em alguns casos, com menos de 50 anos de idade. Ou seja, a medida joga no lixo a reforma da previdência.

A aprovação na Câmara foi concluída em tempo recorde. Agora, a pauta segue para o Senado Federal, onde pode ser votada ainda hoje, nesta quarta-feira, 8 de outubro.

O Brasil assiste, mais uma vez, a uma aliança suprapartidária onde o cálculo eleitoral vence o dever fiscal. A estabilidade de uma minoria é comprada com a instabilidade da nação, reafirmando o triste diagnóstico de que, no nosso cenário político, são impressionantemente raros aqueles que conseguem escapar da sedução do populismo, mesmo que isso signifique empurrar o país para um colapso financeiro de longo prazo.

Relacionados