Apesar de controlar um orçamento de mais de R$ 5 trilhões, o espaço fiscal do Presidente para as suas escolhas discricionárias é de cerca de R$ 200 bilhões
As disputas sobre o orçamento brasileiro têm se intensificado. O novo capítulo desta história é o contínuo adiamento da votação do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) 2025 pelo Congresso. A situação tem causado constrangimentos, como a edição de uma medida provisória para não interromper as linhas de crédito subsidiadas do Plano Safra e o represamento do aumento salarial dos servidores públicos federais. A acomodação das emendas parlamentares e de alguns programas de Governo (Vale Gás e Pé de Meia) na peça orçamentária estão entre as causas apontadas para a demora, com destaque fundamental para a primeira.
E o que essa situação revela? Um acirramento do conflito sobre a despesa pública entre os Poderes Executivo e Legislativo, expressa pela redução do poder discricionário do primeiro, e do aumento desse poder pelo segundo. Para que se tenha uma ideia, em 2025, o valor das emendas parlamentares deverá ser alguns bilhões maior que o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no orçamento, que é de R$ 60,9 bilhões.
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Dito de outro modo, o avanço do Poder Legislativo sobre as prerrogativas do Poder Executivo acentua a rigidez do orçamento. Apesar de ser responsável por um orçamento de mais de R$ 5 trilhões, o espaço fiscal do Presidente para as suas escolhas discricionárias é de cerca de R$ 200 bilhões. Conforme projeção recente do Tesouro Nacional, esse espaço deve se reduzir continuamente como proporção do PIB na vigência das atuais regras de gasto, de cerca de 1,7% do PIB em 2024 para 1% do PIB em 2033. A redução será maior a partir de 2027, quando as sentenças judiciais e os precatórios voltam a se sujeitar ao limite de despesas. Tudo constante, as manobras necessárias ao atendimento de novas demandas setoriais vão rarear, dificultando o atendimento de promessas feitas e demandadas pelos eleitores.
O estado de coisas intensifica conflitos já existentes e propicia a criação de novos. Não sem acaso, emergiu na semana passada, em vários veículos de comunicação, a notícia de que o Congresso Nacional criará uma secretaria no âmbito da Comissão Mista de Orçamento (CMO) para definir os critérios de divulgação de informações orçamentárias, além de disciplinar critérios para emendas de comissão que favorecem a decisão alocativa de líderes partidários.
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A teoria orçamentária nos informa que conflitos na elaboração e votação do orçamento são solucionados porque os prazos se impõem. Há despesas que politicamente inadiáveis, como demonstra o Plano Safra. Um pouco mais de adiamento e servidores estariam telefonando para todos os congressistas, reclamando que a recomposição dos seus salários ainda não caiu na conta. Isso exposto, a questão que se coloca é como se resolve o conflito sobre o orçamento daqui para frente.
Na arena política, já está evidente que um escândalo orçamentário não é capaz de deter o Congresso no avanço sobre os recursos discricionários. Também parece claro que apenas grandes distorções quanto aos gastos tributários serão endereçadas, dadas as dificuldades de redução do seu volume no tempo. Adicionalmente, vê-se que a preocupação com o ajuste é muito maior no Poder Executivo, sugerindo baixa colaboração dos demais na redução do ritmo do aumento da despesa. Por fim, é preciso notar que a fragmentação do investimento público pelas emendas parlamentares ainda não produziu o seu inverso: a necessidade de concentrar mais recursos no Poder Executivo para que eles possam se interligar ou alcançar outra escala, segundo uma racionalidade socioeconômica.
Na arena técnica, apesar de servidores públicos, consultores e pesquisadores já terem realizado suas análises sobre o orçamento, ainda não emergiu uma proposta que seja politicamente viável, alinhada às melhores práticas internacionais, adaptada à realidade brasileira e capaz de ressoar tanto na arena política quanto no mercado. Resumindo: o ponto de estrangulamento em 2027 está claro. A pergunta que persiste é: o que virá depois?
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Talvez nossa inspiração para a mudança já esteja à vista. Em 2023, no Ministério da Fazenda, foi criada a Secretaria Especial de Reforma Tributária (SERT). Liderada por Bernard Appy, economista com reputação técnica inegável e trânsito político idem, a SERT foi constituída por vários especialistas com senioridade e competências complementares. Aproveitando-se dos consensos já trabalhados na sociedade civil e no parlamento anos antes, a Secretaria em dois anos entregou uma emenda constitucional e uma lei complementar que mudarão a face do sistema tributário brasileiro pelos próximos anos, tornando-o mais simples, eficiente e menos injusto.
O que quero dizer com isso é que, nestes dois anos em que uma solução política precisa ser encaminhada, é hora e vez da arena técnica fazer florescer propostas dialogadas de reforma do orçamento, que contemplem desde um equilíbrio razoável do gasto discricionário entre Legislativo e Executivo, até aspectos como desempenho e equidade. Ao mesmo tempo, é preciso que se identifique quem são os possíveis empreendedores da reforma, com capacidade de dialogar para dentro e para fora do governo, técnica e politicamente. Finalmente, é preciso criar espaços formais e informais para os debates orçamentários que se alimentem do orçamento, mas não estejam diretamente envolvidos com ele. Afinal, o processo orçamentário é complexo o suficiente para que se deixe de lado qualquer intento de reforma estrutural.
É hora de transformar o impasse em oportunidade. Do contrário, continuaremos presos a um orçamento que limita o crescimento econômico, a eficiência e a equidade das políticas públicas e perpetua conflitos.