Nessa parte final, o procurador-geral avançou em relação à denúncia que apresentou e mostrou a clareza da tentativa de golpe em minúcias
Antes de tudo, é essencial ressaltar que, nas Alegações Finais da Ação Penal 2.668, o Procurador-Geral da República consolida e expande a linha acusatória apresentada na denúncia, reafirmando tratar-se de uma tentativa de golpe de Estado estruturada a partir de uma organização criminosa armada. Diferentemente do que se poderia supor na fase inicial, a peça final não se limita a reiterar os fatos imputados, mas os qualifica por meio de abordagem fático-jurídica, integrando elementos probatórios colhidos ao longo da instrução processual.
Esse conjunto — composto por documentos, laudos periciais, oitivas de testemunhas e depoimentos de colaboradores — evidencia de forma coesa a articulação entre instâncias políticas, militares e logísticas, revelando a existência de um plano de ruptura da ordem democrática conduzido a partir do núcleo presidencial.
Nesse sentido, as Alegações Finais marcam um divisor de águas na responsabilização penal de um ex-Chefe de Estado por tentativa de golpe no Brasil. Se a denúncia já expunha a espinha dorsal de uma organização criminosa voltada à ruptura violenta da ordem democrática, as Alegações Finais densificam o que até então se percebia como um mosaico fragmentado de atos, transformando evidências isoladas em uma cadeia organizada de condutas, conectadas por um nexo de causalidade funcional.
Não foram meras bravatas
Nesse mosaico, o núcleo de inovação reside em demonstrar que não se tratava de meras bravatas retóricas, mas de uma tentativa concreta, amparada por recursos estatais, planejamento logístico, base civil-militar e instrumentalização de órgãos como ABIN, PRF e setores das Forças Armadas.
Essa moldura probatória reforça a materialidade dos crimes de tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito, deixando claro que o Supremo Tribunal Federal não foi mero espectador, mas alvo central da estratégia de desmonte institucional. Os elementos reunidos indicam que não se tratava de manifestações isoladas, mas de uma sequência de ações concretas cujo escopo era inviabilizar a posse do presidente eleito por meio de mecanismos paralelos de pressão institucional e mobilização social.
Entre os pontos que emergem com maior nitidez destacam-se reuniões reservadas com comandos militares, a existência de minutas de decretos de estado de sítio e intervenção federal, a instrumentalização de órgãos como a Polícia Rodoviária Federal e a Agência Brasileira de Inteligência, além da logística de bloqueios rodoviários e da manutenção de acampamentos em frente a quartéis — todos articulados como etapas de um mesmo propósito: frustrar a transição de governo pela força.
Papel central de Bolsonaro
O núcleo da imputação, conforme reafirmado nas Alegações Finais, está na demonstração de que Jair Bolsonaro exerceu papel de liderança e comando funcional sobre os diversos núcleos de execução. Ainda que não haja confissão expressa, o conjunto probatório — composto por laudos de dispositivos eletrônicos, anotações manuscritas, transcrições de reuniões e depoimentos de militares e assessores — confirma que as ordens partiram do centro do governo.
Fica assim configurada, com base em elementos objetivos, a materialidade da tentativa de golpe: não se trata de conjectura ou narrativa política, mas de atos organizados, interdependentes e finalisticamente orientados à abolição violenta do Estado Democrático de Direito, tal como tipificado pela legislação penal brasileira.
As falas públicas de Eduardo Bolsonaro, filho do ex-presidente, sobre invadir o Supremo eram mais que mera retórica: evidenciam como o núcleo familiar expandia o mesmo roteiro operacional, com fases bem delineadas — desde a instrumentalização da PRF e da ABIN até o estímulo a acampamentos em quartéis e bloqueios de rodovias.
Assim, o golpe não foi uma construção abstrata, mas uma tentativa concreta de subverter a vontade popular, convertendo o Estado em instrumento de autoperpetuação de poder. A demonstração desse nexo funcional conecta cada discurso incendiário, cada ato, cada minuta golpista, integrando-se na dinâmica de manutenção do poder em contrariedade ao resultado eleitoral e pavimentando a projeção desse método para além das fronteiras nacionais.
Os crimes atribuídos ao ex-presidente
Além de consolidar o quadro probatório, as Alegações Finais formulam pedido expresso de condenação de Jair Bolsonaro pela prática de cinco crimes tipificados, todos interligados por sua conexão funcional na tentativa de subversão da ordem constitucional. Conforme consta na parte final da peça, o Ministério Público requer a responsabilização penal do ex-presidente pelos seguintes delitos: (i) tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, pela prática de atos voltados a impedir, mediante grave ameaça ou violência, o exercício dos poderes constitucionais, em especial a posse do presidente eleito; (ii) golpe de Estado, pelo planejamento e início de execução de medidas concretas destinadas a depor o governo legitimamente constituído; (iii) associação criminosa armada, caracterizada pela atuação de núcleos políticos, militares e civis com divisão de tarefas, estabilidade e emprego de armamento; (iv) dano qualificado ao patrimônio público, relativo à destruição de bens tombados e sedes dos Três Poderes durante a fase executória do plano; e (v) incitação ao crime, pela divulgação reiterada de discursos de incentivo à prática de atos ilícitos contra autoridades constituídas e instituições republicanas.
Essas imputações encontram respaldo em passagens específicas das Alegações Finais. Destaca-se, por exemplo, o trecho em que se afirma que o conjunto de minutas apreendidas, aliado aos depoimentos de Mauro Cid e de oficiais generais, demonstra que o denunciado, na condição de Chefe de Estado e Comandante Supremo das Forças Armadas, teve participação direta na concepção e operacionalização de medidas destinadas a impedir a posse do candidato eleito (p. 53).
Tudo muito articulado
Em outro ponto, o PGR sustenta que a associação criminosa, estruturada com divisão de tarefas e uso de aparato estatal, manteve-se ativa mesmo após o insucesso imediato do intento golpista, evidenciando sua permanência como organização voltada a desestabilizar a ordem constitucional (p. 360). No que se refere aos acampamentos em frente a quartéis e aos bloqueios de rodovias, o texto enfatiza que essas ações foram mantidas mediante incentivo material, apoio logístico e discurso de incitação, criando ambiente para a adesão de civis armados e para a perpetuação da ameaça à estabilidade institucional.
Dessa forma, as Alegações Finais não apenas reiteram a gravidade dos fatos narrados na denúncia, mas estruturam de modo preciso a subsunção jurídica de cada conduta aos tipos penais correspondentes. Para o Ministério Público, a tentativa de golpe de Estado, longe de se reduzir a atos isolados ou meros excessos de linguagem, se concretizou como uma sequência de atos materiais organizados, com planejamento, divisão de tarefas, ameaça de violência real e instrumentalização de meios públicos — todos articulados para sustentar o pedido de condenação pelos cinco crimes imputados.
Quanto à dosimetria, embora a definição exata da pena dependa da futura sentença e da valoração concreta das circunstâncias judiciais, o conjunto de imputações — envolvendo cinco delitos de elevada gravidade, com especial destaque para a tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado, ambos com penas máximas que podem superar dez anos cada — aponta para uma dosimetria total em patamar suficiente para fixar o regime inicial como fechado, nos termos do art. 33 do Código Penal.
A depender de fatores como a primariedade, eventual confissão, atenuantes ou causas de diminuição relacionadas à tentativa, o quantum final pode variar, mas dificilmente se afastaria de uma condenação em regime privativo de liberdade. Caso se confirmem os prognósticos de trânsito em julgado célere, ou mesmo prisão preventiva convertida em execução provisória, abre-se a possibilidade de cumprimento de pena já no segundo semestre, ainda que, por razões humanitárias ou de segurança institucional, a execução se inicie em regime domiciliar monitorado, hipótese excepcional já admitida em precedentes envolvendo ex-mandatários.
A originalidade da arquitetura do golpe reside também no método político que transcende fronteiras. Pela primeira vez, um modelo de ataque às instituições — ancorado na retórica de fraude eleitoral, na mobilização de uma base violenta e na deslegitimação da Suprema Corte — foi sistematicamente exportado para outras democracias. O caso Eduardo Bolsonaro ilustra esse deslocamento: ele levou aos Estados Unidos a cartilha de mobilização de base radicalizada e questionamento de resultados eleitorais, transformando a experiência brasileira em manual prático de erosão democrática.
Esse fenômeno revela um aspecto inédito na geopolítica recente: a interferência externa já não se dá apenas por recursos naturais, fronteiras estratégicas ou petróleo, mas também por interesses econômicos e solidariedade ideológica entre grupos que compartilham o mesmo método de ataque às instituições constitucionais.
Intervenção de Trump
É sintomático que, pela primeira vez, um chefe de Estado estrangeiro — como o presidente dos Estados Unidos — tenha sido instado a intervir não apenas por vias diplomáticas, mas também por medidas econômicas diretas, como a imposição de uma sobretaxa de até 50% sobre setores estratégicos da indústria brasileira. Trata-se de uma forma de tensionar a autoridade soberana de um Tribunal Constitucional nacional que processa e julga a tentativa de golpe de um aliado político, convertendo alinhamento ideológico em instrumento de pressão econômica real.
Esse movimento não se esgota em atos isolados: conecta-se a uma tentativa de golpe que, mesmo após o insucesso inicial, se reconfigura como estratégia permanente de subversão da ordem constitucional. Agora, essa engenharia projeta-se de forma transnacional, operacionalizada pelo filho do ex-presidente, Eduardo Bolsonaro, que, mesmo investido no mandato de deputado federal, atua de fora do país para mobilizar bases estrangeiras, tensionar decisões do Supremo Tribunal Federal e reforçar narrativas de descrédito institucional. Essa atuação subverte a função parlamentar, transformando um mandato conferido pelo voto popular em instrumento de ataque aos interesses econômicos, políticos e institucionais da Nação.
Nesse contexto, o Brasil — potência regional e mercado digital multibilionário — permanece vulnerável a um novo colonialismo de dados, em que plataformas e big techs de capital estadunidense lucram cifras bilionárias, como os mais de 150 bilhões de dólares arrecadados pela Meta em 2024 apenas com anúncios. Diferentemente da China, que protege suas plataformas com barreiras de um capitalismo de Estado, o Brasil se expõe à captura de dados, à manipulação de fluxos de informação e à erosão da soberania regulatória sobre redes sociais. Assim, a politização da justiça constitucional cruza-se com a disputa por mercados digitais estratégicos, convertendo o STF em polo simbólico de resistência institucional — não apenas contra narrativas golpistas, mas também contra um processo mais amplo de captura econômica e tecnológica.
STF se internacionaliza
Por isso, as Alegações Finais não são apenas uma peça técnica. Elas sedimentam uma lição política e jurídica: o crime de tentativa de golpe não se esgota na consumação, mas se materializa na própria existência de uma arquitetura de poder que se estrutura para abolir o Estado Democrático de Direito. E o mais relevante: esse modelo não fica restrito ao direito interno. Ele transborda o Brasil, mobiliza redes internacionais e revela que a defesa da Constituição, hoje, também é um ato de resistência contra a captura democrática em escala global.
Em suma, a AP 2.668 evidencia como o STF, antes visto como árbitro de disputas nacionais, se torna símbolo mundial de enfrentamento a arquiteturas de golpe que cruzam sistemas legais e ideológicos. Para qualquer análise séria do caso, três âncoras permanecem fundamentais: tentativa concreta, exportação do método e internacionalização do Supremo. Não se trata apenas de julgar um ex-presidente, mas de afirmar a soberania constitucional diante de uma nova era de ataques transnacionais à democracia.