O legado de Niède Guidon, por Ricardo Galvão, presidente do CNPq Ricardo Galvão, presidente do CNPq com a também pesquisadora Niède Guidon, que faleceu nesta quarta-feira (04/06) ! Foto: CNPq

O legado de Niède Guidon, por Ricardo Galvão, presidente do CNPq

Muito já foi publicado sobre suas importantes descobertas arqueológicas na Serra da Capivara (PI). Mas, infelizmente, grande parte de nossa população ainda desconhece esse enorme patrimônio não lhe dando a devida importância, apesar de ser muito valorizado internacionalmente.

A revista Legado trouxe em sua última edição uma matéria assinada por Ricardo Galvão, que conta a emocionante e rica história de Niède Guidon. Abaixo, este relato feito com exclusividade para a publicação pelo presidente do CNPq, como ela, um dos cientistas mais celebrados internacionalmente.

Por Ricardo Galvão – presidente do CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico)

Entramos todos naquela ampla sala com um sentimento mesclado de ansiedade, curiosidade, respeito e reverência. Sentada à cabeceira de uma mesa de madeira, longa e sóbria, lá estava ela, altaneira, com um olhar inquisitivo e penetrante e um sorriso bondoso e contido de boas-vindas, Niède Guidon. Éramos seis membros da direção do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq, e viemos pessoalmente entregar-lhe o Prêmio Almirante Álvaro Alberto de Ciência e Tecnologia.

Legado de Niède Guidon

Esse é o mais renomado prêmio científico do País, que normalmente é outorgado na Sessão Solene da Reunião Magna Anual da Academia Brasileira de Ciências. Este ano a reunião ocorreu no dia 8 de maio, na Escola Naval. Não podendo comparecer pessoalmente, a Professora Guidon foi representada por sua colega de longa data, a Professora Marcia Chame, pesquisadora titular da Fundação Oswaldo Cruz e Diretora Científica da Fundação Museu do Homem Americano, FUMDHAM.

Mas Niède Guidon, apesar de ter já recebido grandes e prestigiosas honrarias científicas  internacionais, inclusive o título de Chevalier de la Légion d’Honneur, do Governo da França, e o Prins Claus Prijs, do Governo dos Países Baixos, ficou enormemente comovida pela premiação concedida pelo CNPq, fazendo questão de a receber pessoalmente onde vive atualmente, no Parque Nacional Serra da Capivara, um dos maiores legados científicos e culturais jamais deixados ao povo brasileiro por uma de suas filhas ou um de seus filhos.

Muito já foi publicado na imprensa brasileira sobre as importantes descobertas arqueológicas feitas por Niède e sua equipe na Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato, no Piauí. No entanto, infelizmente, grande parte de nossa população ainda desconhece esse enorme patrimônio científico e cultural brasileiro, não lhe dando a devida importância, apesar de ser muito valorizado internacionalmente.

Nascida em Jaú, São Paulo, filha de pai francês e mãe brasileira, Niède graduou-se em história natural pela Universidade de São Paulo. Tomou conhecimento das pinturas rupestres da Serra da Capivara na década de 1960, a partir de fotografias levadas ao Museu Paulista pelo então prefeito de Petrolina. No entanto, sua primeira tentativa de chegar por terra a São Raimundo Nonato foi impossibilitada pela queda de uma ponte na estrada de acesso. Niède prosseguiu então para completar sua formação avançada como pesquisadora, obtendo o doutoramento na Université Paris 1 Pantheon-Sorbonne, em 1975, sobre o tema de pinturas rupestres em Várzea Grande, cerca de 350km ao norte de São Raimundo Nonato. Mas a atração pelas pinturas rupestres da Serra da Capivara permaneceu em seu espírito.

Em 1977, já professora da École de Hautes Études em Sciences Sociales e pesquisadora do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), retorna como Chefe da Missão Franco-Brasileira do Piauí e coordenadora do Acordo CNPq-CNRS para a Universidade Federal do Piauí, onde criou a pós-graduação em Arqueologia.

Essa é uma das características de sua carreira que mais aprecio. Tendo se tornado pesquisadora de sucesso, estabelecida no exterior, e apesar de ter possibilidade de prosseguir a carreira inteiramente fora do país, retornou e dedicou sua vida a consolidar a respeitada arqueologia brasileira em um tema crucial para explicar o estabelecimento do homem pré-histórico na América do Sul. Nesse processo, teve que enfrentar não somente forte oposição de arqueólogos tradicionais, principalmente americanos, como também ameaças de grupos locais, contrários ao estabelecimento de um parque nacional em suas terras e proximidades.

Mas, com enorme estamina e apoio de uma dedicada equipe de alunos e jovens pesquisadores de grande competência, que se formou sob sua liderança, ela resistiu e provou a veracidade de suas descobertas, além de lutar sem trégua pela criação do Parque Nacional Serra da Capivara.

Mesmo os americanos passaram a reconhecer a relevância de sua pesquisa. Em editorial publicado em 27 de março de 2014, o New York Times afirma que as pinturas rupestres da Serra da Capivara “estão entre os testemunhos mais reveladores em qualquer lugar das Américas sobre como era a vida milênios antes do início da conquista europeia” e que as ferramentas de pedra lá encontradas indicam que “os humanos teriam chegado ao que hoje é o Brasil há 22 mil anos, derrubando a crença de que nossos antepassados teriam chegado pela primeira vez às Américas há cerca de 13 mil anos”.

De fato, segundo a explicação tradicional de arqueólogos americanos, os homens pré-históricos teriam chegado primeiro à América do Norte, vindo da Ásia, atravessando o estreito de Bearing, há 13.000 anos. Essa teoria é referida como Modelo de Clovis, devido à datação de pontas de lança pré-históricas encontradas em Clovis, no Novo México. Apesar de a polêmica ainda persistir, Niéde Guidon sempre reagiu como uma cientista bona fide. Em artigo publicado em 1986 na revista Nature, com G. Delibrias, ela apresenta sólidos resultados de datação de carbono 14 do carvão encontrado em fogueiras bem estruturadas por ação humana no sítio da Pedra Furada.

Além disso, descobertas mais recentes em outros sítios da América do Sul, inclusive no Chile, corroboram com o modelo de que a chegada do ser humano deve ter ocorrido há mais de 20.000 anos. As pesquisas atuais apontam para mais de 50.000 anos.

Na criação do Parque Nacional Serra da Capivara e na preservação de sítios que estão fora dele, ela também teve que enfrentar séria oposição. Um “causo” local afirma que uma vez ela teve que enfrentar um fazendeiro, que para fazer cal destruía paredes de calcário com pinturas rupestres, não aceitava a desapropriação de seu terreno para fazer parte do Parque. Visitando o fazendeiro, ela foi ameaçada de que, se retornasse no dia seguinte, ele a mataria. Ao invés de recuar, ela foi então à rádio local e anunciou que quem quisesse vê-la morta comparecesse à fazenda no dia seguinte, pois o fazendeiro a executaria. Naturalmente, no dia seguinte ela foi à fazenda e nada aconteceu.

Embora algumas pessoas mais idosas ainda tenham certo ressentimento devido às desapropriações que ocorreram no interior do Parque, as de meia-idade e mais jovens apoiam fortemente o trabalho feito por Niède Guidon. Isso porque, reconhecendo a dificuldade de desenvolver pesquisas e conservar o patrimônio arqueológico numa vizinhança de enorme pobreza, ela e a FUMDHAM, por ela criada, pautaram suas ações sobre três alicerces, educação, geração de renda através de atividades não predatórias e saúde pública.

Foram criados cinco Núcleos de Apoio às Comunidades (NACs), financiados pelo Terra Nueva do Ministério das Relações Exteriores da Itália, e depois por outros órgãos, implementados em parceria com a FIOCRUZ, UNICAMP e UNESP.  A região transformou-se; 5870 crianças e adolescentes estudaram até o ensino médio profissionalizante.

A cerâmica Serra da Capivara foi desenvolvida, a partir de uma proposta de Niède a um de seus mateiros que era oleiro, e hoje emprega mais de 50 funcionários da comunidade local de forma sustentável, o turismo trouxe visibilidade e riqueza regional, a região passou a ser a maior produtora de mel orgânico do País, a partir de um projeto pioneiro realizado para 500 famílias com recursos do BID e outros captados pela FUMDHAM. Além disso, Niéde procurou valorizar o trabalho das mulheres da região.

Em particular, durante o dia todas as guaritas do Parque têm somente vigias mulheres, sendo substituídas por homens no período noturno. O resultado de toda essa luta heroica alcançou reconhecimento internacional. Em 1991 o Parque foi reconhecido como Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO. Está atualmente sob a responsabilidade do ICMBio, que mantém com a FUMDHAM um termo de parceria para trabalhos específicos e apoio à gestão institucional.  Eu e meus colegas do CNPq visitamos parte dele em um dia e, além de ficarmos todos simplesmente maravilhados, sentimos imenso orgulho de sermos brasileiros e aumentamos ainda muito mais nossa admiração por essa grande dama da ciência brasileira, Niéde Guidon.

Percorremos os percursos do Parque da Capivara em camionetes traçadas que nos levaram a diferentes trilhas, que eram percorridas caminhando. Caminhadas extremamente prazerosas, cercadas por uma natureza de Caatinga exuberante, com árvores altas e animais silvestres, em particular os simpáticos e sempre presentes mocós. Ao final de cada trilha, encontrávamos um sítio cheio de belíssimas e cativantes pinturas rupestres, em vermelho, amarelo, branco e preto, retratando cenas diárias dos antigos habitantes daquelas paragens, há milhares de anos.

Um museu a céu aberto de valor inestimável! Nossos guias, pesquisadoras e pesquisadores colegas de Niéde, vários dos quais fizeram seu doutoramento sob sua orientação, mostravam cada detalhe de uma forma cativante, com os brilhos nos olhos de quem ama o que faz. A visita terminou com uma fabulosa e educativa visita ao Museu da Natureza, o mais novo atrativo da Serra da Capivara, que com maestria nos apresenta a história de evolução do universo e da humanidade, levando-nos até nossos dias, no contexto do território em que está situado o parque.

Niède recebeu a premiação de nossas mãos com humildade, em companhia de suas colegas pioneiras nos trabalhos na Serra da Capivara, Anne Marie Pessis, atual Diretora Presidente da FUMDHAM, Daniela Cisneros e outras. Como uma pesquisadora de espírito nobre, realçou que o prêmio na verdade era um reconhecimento para toda sua equipe, que sempre trabalhou com grande dedicação e desprendimento na pesquisa arqueológica em condições bastante adversas.

Um dos emblemas do Prêmio Almirante Álvaro Alberto, concedido pela Marinha do Brasil, é a miniatura de um farol marítimo que acende uma luz, o Farol do Conhecimento. Ela encantou-se com o presente, colocando-o em cima de sua mesa de trabalho “para atrair ainda mais pesquisadores para este maravilhoso sítio arqueológico”, alertando que ainda há muito mais a ser descoberto.

De fato, hoje estão cadastrados 1242 sítios arqueológicos e históricos, dos quais 1050 com arte rupestre e 180 escavados. São utilizadas técnicas modernas de escaneamento a laser dos paredões com suas pinturas, computação gráfica e modelos 3D para os estudos antropométricos e de vestígios, pesquisas da origem genética e paleoparasitológica em esqueletos e vestígios orgânicos, cronologia e composição química das pinturas, novas técnicas de datação e estudos paleoambientais e etnobotânicos.

As pesquisas sempre foram conduzidas por equipes formadas por pesquisadores amparados por outros mais seniores, como arqueólogos, botânicos, paleontólogos, historiadores, sociólogos, zoólogos, geomorfólogos, hidrogeólogos, parasitologistas, médicos e ecólogos. Foi tocante visitar o Museu do Homem Americano, situado na sede da FUMDHAM, e ver esses cientistas, desde os mais jovens aos mais experientes, trabalhando apaixonadamente na análise e catalogação de uma imensa quantidade de peças obtidas nesses sítios, desde pedras lascadas até esqueletos em urnas funerárias, passando por carvões, coprólitos e cerâmicas.

No entanto, na Serra da Capivara, o Legado de Niède Guidon vai muito além de sua relevância para a história do homem pré-histórico na América do Sul. Segundo Marcia Chame, “A decisão de manter todos os vestígios encontrados na região e expô-los na cidade, desde o início, deu às comunidades locais além de trabalho, orgulho, consciência da necessidade de preservação, oportunidades, formação qualificada, visão de futuro e riqueza regional. Mostra a todos que é possível transformar pobreza humana em desenvolvimento regional sustentável e respeitoso ao passado, como forma de construir o futuro”.

Mas esse riquíssimo legado ainda sofre ameaças constantes e é necessário que o Governo Federal e o Governo do Estado do Piauí estejam atentos e conscientes da necessidade de tomar as iniciativas necessárias para preservar essa inigualável riqueza científica e cultural de nosso povo. Em particular, é necessário combater a ampliação da urbanização em seu entorno, prover recursos e pessoal para que todas suas guaritas funcionem permanentemente e conter desequilíbrios e agregações.

No entanto, a ação mais necessária e urgente é estabelecer o Corredor Ecológico entre a Serra da Capivara e a Serra das Confusões. Esse corredor, que é essencial para garantir a plenitude evolutiva de plantas e animais, está sob a ameaça constante da política predatória de empreendimentos agrícolas e mineração, assombrando os produtores de mel e a comunidade científica local. Apelo ao Governador do Piauí, Rafael Fonteles, matemático que tive a satisfação de conhecer pessoalmente há poucas semanas em Teresina, para que encampe essa missão como uma das prioridades nobres de seu Governo.

  • Este artigo contou com a colaboração da Dra. Profa. Marcia Chame – diretora cientifica da FUMDHAM (Fundação Museu do Homem Americano).

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