Deputada falou da urgência de regulamentação e alertou até para abuso de “exploração infantil a partir de algoritmo”, plataformas que levam jovens a desperdiçar dinheiro com jogos
Ainda rescaldo do Fórum de Lisboa, a discussão sobre regulação das redes sociais é uma questão do tempo presente e do futuro. Esse debate molda os rumos da democracia no século 21 e expõe um vácuo desconfortável: o de conhecimento técnico à altura da complexidade do problema.
Enquanto autoridades jurídicas e políticas se revezavam em diagnósticos graves, faltou quem entendesse, de fato, o funcionamento profundo do ambiente digital. A ausência de nomes como Silvio Meira e Chico Saboya, cientistas brasileiros reconhecidos internacionalmente, tornou ainda mais evidente que, sem articulação entre política, tecnologia e ciência, não haverá resposta efetiva para o poder algorítmico que hoje desafia a soberania dos Estados.
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O ministro Alexandre de Moraes, do STF, abriu os trabalhos com um discurso forte, acompanhado de um vídeo que revisitava os ataques de 8 de janeiro de 2023 às sedes dos Três Poderes em Brasília. As imagens, usadas como ilustração de sua tese, deram corpo a uma acusação: as redes sociais falharam, ou melhor, as big techs falharam, em conter os incentivos algorítmicos ao golpismo.
“Chegamos ao ápice da falência da autorregulação”, disse o ministro, questionando por que a inteligência artificial das plataformas não foi capaz de identificar e frear os chamados golpistas em tempo real.
Embora a fala tenha o mérito de reconhecer o impacto das redes sobre a democracia, ela se manteve no campo do diagnóstico político e jurídico. Faltou, porém, o aprofundamento técnico. Culpar as redes sociais pela extrema direita golpista é simplificar demais o fenômeno mundial de avanço fascista. Quando nasceu na Itália em 1919 não havia tecnologia digital.
Quem brilhou na ausência de especialistas foi a deputada Tabata Amaral (PSB-SP). Em meio a uma plateia majoritariamente composta por juristas e políticos, foi ela quem demonstrou maior intimidade com a complexidade do tema. Com clareza e coragem, Tabata apresentou o que talvez tenha sido a reflexão mais precisa do Fórum neste tema: o problema não é se haverá regulação das redes, o problema é quem vai regular.
Essa inversão de eixo é essencial. As redes já são reguladas por empresas privadas, cujos critérios não passam por debate público, nem prestam contas à sociedade. O que está em jogo, portanto, não é a existência de regras, mas a legitimidade de quem as impõe. Trata-se de uma disputa entre duas soberanias: a democrática, construída coletivamente por instituições públicas; e a privada.
“Soberania é a resposta à pergunta: quem tem legitimidade para organizar a vida coletiva?”, explicou Tábata, ao dizer que a democracia só se sustenta se for capaz de alcançar também o território digital. Ela chamou atenção para o caso do Roblox, plataforma de jogos em que crianças criam conteúdo, movimentam dinheiro e geram valor, mas recebem quase nada em troca.
“Isso é exploração de trabalho infantil mediado por algoritmo”, disse. A analogia com o século 19 é inevitável: vales pagos pelas próprias empresas para consumo em seus armazéns. A diferença é que agora isso se dá em código-fonte.
Em vez de uma crítica genérica às redes sociais, a deputada propôs dois caminhos concretos: garantir que o mundo digital esteja submetido às mesmas normas que regem o mundo físico, como a proteção da infância, combate ao crime e respeito aos direitos humanos.
Reformar as instituições públicas para que elas sejam capazes de operar com eficácia na nova gramática digital da vida social. Ou seja, conseguir punir.
A ideia central, segundo ela, não é que o Estado controle a internet, mas que as plataformas passem a refletir os valores democráticos que regem outras áreas da economia. A exemplo do que acontece com os setores farmacêutico, automobilístico e financeiro, o ambiente digital precisa estar sujeito a regras claras, justas e públicas.
A fala de Tabata construiu uma ponte rara no debate público: ligou o universo da inovação tecnológica ao da responsabilidade institucional, sem cair no binarismo entre censura e liberdade. Com isso, expôs a superficialidade do debate atual e o risco de uma regulação feita apenas por juristas e políticos desconectados do funcionamento real das plataformas.
“Hoje, a nossa vida coletiva acontece, cada vez mais, no ambiente digital. Quase tudo está sendo transformado por ele. Se é nesse ambiente que a vida coletiva ocorre, então a soberania só existe se for capaz de organizar também esse ambiente. O problema é que os Estados, em geral, não têm hoje as condições para fazer isso. Não é só o Brasil. Em muitos países, vemos as instituições com dificuldade de organizar o ambiente virtual”.
Mas o digital também traz oportunidades, como observou a deputada. Historicamente, o Estado teve dificuldade em chegar até as pessoas. Hoje, as pessoas carregam o mundo nos bolsos. E isso significa que podemos levar o Estado até o bolso de cada cidadão.
“Se fizermos isso bem, criamos uma revolução de cidadania”, explicou. “Podemos ter serviços essenciais a um clique de distância, ou até a zero cliques”. Depois de ser interrompida por muitos aplausos, ela prosseguiu.
Já é possível, por exemplo, mandar uma mensagem no WhatsApp para uma mãe com o agendamento da vacina do filho, como é feito em Recife.
Outro exemplo: o Brasil tem o SUS, um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo. Com a integração de dados e o uso de IA, temos potencial para sermos líderes mundiais em prevenção, e não apenas em tratamento.
“Temos competência para isso. O Pix provou que o setor público pode criar infraestruturas digitais que transformam vidas”, disse Tabata..
Esses exemplos apontam para um novo Estado: mais próximo, mais eficiente, mais humano.
Com seu jeito calmo, despretensioso e sem ofender ninguém, Tabata Amaral deu uma verdadeira aula sobre soberania digital, responsabilidade democrática e inovação institucional. Vale a pena registrar que a deputada conquistou a plateia de juristas mesmo antes de iniciar sua fala.
Ao ser chamada ao palco para compor a mesa, foi recebida com aplausos efusivos e até os tradicionais “uhus” que, no mundo dos debates acadêmicos e jurídicos, só aparecem quando o público realmente se entusiasma. Em um fórum marcado por discursos fortes e algumas vezes protocolados, a parlamentar mostrou que conteúdo, clareza e serenidade ainda são capazes de mover plateias.