Para professor da USP, a ação do republicano pode ser compreendida como crime eleitoral
por Vitor Hugo Gonçalves em 04/01/21 16:25
“E eu sei que você gostaria de ir ao fundo disso, embora tenha dito que não encontrou nada de errado. Quer dizer, você sabe, eu não perdi o estado, Brad”. A citação faz parte de um trecho da gravação telefônica entre o presidente dos EUA, Donald Trump, e o secretário de estado da Geórgia, Brad Raffensperger, divulgada pelo jornal “The Washington Post” no último domingo (3).
A coerção exercida por Trump, acrescida de um perceptível tom desesperado, soma-se às diversas tentativas falhas de anular o resultado da eleição presidencial estadunidense, que conferiu a vitória do democrata Joe Biden – a impossibilidade de reeleição republicana frustrou grande parte do partido, que previa uma vitória relativamente ampla.
No Almoço do MyNews desta segunda-feira (04), Felipe Loureiro, professor de Relações Internacionais da USP, conversou com Myrian Clark acerca do áudio publicado, bem como sobre os possíveis desdobramentos desse episódio, tanto em perspectivas domésticas como internacionais.
Caracterizando o ocorrido como “fato inédito”, Loureiro elucidou a maneira impositiva de Trump sobre outras esferas de poder, tendo em vista a pressão exercida sobre a autoridade de um estado, responsável pelo processo eleitoral, exigindo uma mudança inconstitucional do resultado a seu favor.
“Não há dúvida de que existe uma sensação de desespero completo. Depois de todo processo eleitoral ter transcorrido em todos os estados, os resultados terem sidos certificados, os eleitores já terem votado e agora faltar apenas a ratificação do resultado no Congresso norte-americano, a forma como o presidente falou com o secretário de Estado da Geórgia mostra um desespero para tentar alterar uma situação na qual todos sabemos que não pode ser mudada”, explicou. “A maneira como ele utiliza as palavras, ameaçando o secretário, envolve algo sem precedentes”, podendo, assim, ser classificado como “escandaloso”, segundo o professor.
Questionado sobre a possibilidade de haver decorrências jurídicas – mesmo faltando apenas 17 dias para o fim do mandato -, o professor argumentou que a justiça estadunidense é muito diferente da estrutura brasileira. “Os procuradores têm discricionariedade para seguir um caso ou não. Assim, é possível que eles não levem algum tipo de acusação contra o presidente Trump, apesar de muitos juristas entenderem que há sim condições de processá-lo criminalmente.”
Como contraproposta às consequências judiciárias, Loureiro memorou o poder de perdão presidencial, o qual confere ao presidente dos EUA o magno direito de perdoar quaisquer cidadãos que cometeram crimes federais. “Há o debate, inclusive, sobre a possibilidade do próprio presidente Trump se ‘auto perdoar’, o que seria algo absolutamente inédito”, completou.
Em confluência com o cenário brasileiro, a politização dos mais variados setores da administração pública também foi pauta da regência republicana nos últimos 4 anos. Sobre a politização do departamento de justiça, é plenamente possível afirmar que Trump rompe os limites efetivos da autonomia entre os poderes.
“Os EUA não têm um sistema eleitoral apartidário. As próprias autoridades eleitas são aquelas que administram as eleições […] No caso da Geórgia, o secretário Brad Raffensperger, figura ameaçada por Trump na ligação, é um republicano… o fato de não haver um processo eleitoral regido por instituições apartidárias, permite que figuras absolutamente sem princípios como Trump, se utilizem de suas posições de poder para tentar modificar resultados eleitorais”, explicou Loureiro.
Em meio às infundadas acusações de fraude, o já considerado ex-presidente tentou uma aflitiva cartada final, de acordo com o professor.
“Não há nenhuma evidência sobre votos de pessoas mortas em larga escala ou de máquinas que teriam computado votos a mais para o [Joe] Biden. Ou seja, as provas não existem. Trump perdeu na justiça estadual e na Suprema Corte […] Não há qualquer base empírica para essas acusações de fraude que Trump e seus aliados vêm fazendo; fato que só enfraquece a democracia norte-americana e, tristemente, enfraquece o princípio democrático no próprio sistema internacional”.
A mais recente tentativa de Trump de tentar reverter o resultado da eleição presidencial que frustrou sua permanência na Casa Branca foi também tema mais cedo do programa Morning Call.
A economista-chefe do banco Ourinvest, Fernanda Consorte, crê que o ato de Trump terá pouco efeito sobre o mercado. Isso porque, segundo ela, o republicano é cada vez mais visto com descrença.
“Esse áudio só reforça a descrença do mercado com o Donald Trump. No início do seu mandato havia até um agrado maior nele, porque se falava que os republicanos eram mais pró-mercado que os democratas e que Trump era um homem de negócios. E daí ele foi cometendo seus atos intempestivos ao longo dos anos. E vimos a reação do mercado quando o Biden foi confirmado presidente”.
Em 3 de novembro, o democrata Joe Biden, em uma votação apertada e que levou dias, venceu Donald Trump e impediu o republicano de permanecer por mais quatro anos na Casa Branca.
Em 14 de dezembro, o Colégio Eleitoral dos EUA confirmou as projeções que haviam apontado a vitória do candidato democrata. Biden recebeu o voto de 306 delegados, contra 232 de Trump. A diferença é a mesma de 2016, quando o mesmo Trump venceu a democrata Hillary Clinton.
O resultado será promulgado pelo Congresso americano no dia 6 de janeiro. Biden assume como 46º presidente dos Estados Unidos no dia 20 de janeiro, tendo a senadora da Califórnia Kamala Harris como vice-presidente.
Para definir por completo o cenário político a ser encontrado pelo sucessor de Trump, no entanto, ainda falta a eleição que definirá os dois representantes do estado da Geórgia no Senado.
Atualmente os dois senadores pela Geórgia são republicanos e considerados favoritos na disputa. No entanto, o Estado foi um dos que deu vitória ao democrata Joe Biden na eleição presidencial, o que é visto como algo que pode impulsionar os candidatos democratas.
Caso os dois democratas sejam eleitos, as cem cadeiras do Senado seriam igualmente divididas com os republicanos (50 a 50). Nesse caso, as disputas seria resolvidas pelo voto de Minerva [desempate] da presidência do Senado, ocupada pelo vice-presidente dos Estados Unidos — neste caso, então pela Kamala Harris, o que daria aos democratas o controle do Senado.
A Câmara dos Representantes [o equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil] já conta com maioria democrata e elegeu Nancy Pelosi, notória opositora de Trump, como presidente para os próximos dois anos.
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