MyNews conversa de forma exclusiva com ex-Ouvidor da Defensoria Pública sobre a prisão de cantor e como as autoridades enxergam as favelas na Cidade Maravilhosa
MC Poze foi preso, solto, e o debate sobre sua prisão segue no Rio de Janeiro e no Brasil. Há quem defenda o ato e pessoas contrárias à maneira como ocorreu e também aos argumentos. Assim, o MyNews conversou com Guilherme Pimentel, advogado e ex-ouvidor da Defensoria Pública. Ele atua há anos nas favelas da Cidade Maravilhosa e também defendendo a cultura do Funk.
Guilherme atuou bastante durante a campanha “Funk é Cultura”, lá no Rio, que virou lei (na época, os bailes estavam proibidos). Aqui, ele fala sobre a prisão de Poze.
R: “Discordo absolutamente da prisão do Poze e de qualquer artista popular que seja criminalizado pela sua arte, pela sua atividade musical ou por estar numa favela cantando com as pessoas ali, né? É um completo absurdo esse tipo de criminalização. Isso é uma forma de censura, isso é uma forma de silenciamento, é uma forma de extermínio também, porque o extermínio tem várias facetas. É extermínio quando matam, é extermínio quando traumatizam, que geram sofrimento psíquico, adoecimentos e esse tipo de coisa que gera silenciamento. É extermínio quando encarceram e é extermínio quando censuram e silenciam. Então, esse tipo de situação compõe um cenário de extermínio contra a população brasileira”
R: “A repercussão da mídia, a atenção da mídia, é sempre uma repercussão muito intensa. A gente está falando de um artista famoso, que tem muitos fãs, que tem muitas pessoas que ouvem a sua música. Então, isso gera repercussão, gera cliques, gera audiência, gera acessos, gera engajamento nas redes sociais e tudo mais. Então, é sempre uma cobertura muito intensa. Mas também, na minha opinião, costuma ser uma cobertura muito superficial. Por norma, grande parte da mídia costuma validar, de antemão, a versão da polícia.
“Quando a polícia vem com essas teses criminalizantes de artistas populares, falando serem pessoas ligadas ao crime, ligadas a quadrilhas, a atividades ilegais, a mídia, ao invés de reforçar a presunção de inocência e exigir que sejam apresentadas provas dessas acusações, trabalha, normalmente, a questão como se fosse uma narrativa válida por si só, pelo simples fato de esses artistas serem de favelas, serem pessoas negras. Ou seja, serem pessoas que se encaixam nesse estereótipo que se constrói para criar inimigos da sociedade. A história anda, o tempo passa, e se atualiza, mas é sempre um jovem negro periférico criminalizado”.
Há anos, Guilherme trabalha com Direitos Humanos. Aqui, ele explica sua função, tarefas e demandas.
R: “Eu trabalho com direitos humanos há muito tempo. E trabalhar com direitos humanos no Rio de Janeiro é trabalhar necessariamente com questões da cultura popular. Não tem como você discutir o processo de criminalização e extermínio sem falar também do processo de silenciamento, do processo de estigmatização, de preconceito que está colocado também nas culturas negras, principalmente nas culturas periféricas. Então, desde sempre, a gente vai discutir a criminalização da juventude negra, que é um tema central na questão dos direitos humanos, no Rio de Janeiro principalmente, e vai sempre surgir a questão do funkeiro, a questão do funk, das formas de agir, da linguagem, da forma de se vestir, dos gestos, de tudo isso que compõe a cultura popular. Então, meu trabalho com direitos humanos, como é um trabalho muito voltado para as favelas e periferias, que compõem a maior parte da população e aquelas que mais sofrem com violações dos direitos humanos, é um trabalho que também sempre esteve muito ligado ao debate da cultura popular”
“Em 2008, eu ajudei a fundar uma associação. Eu fiz assessoria jurídica popular para um monte de funkeiros, MCs, DJs, donos de equipes de som que estavam fundando uma associação — na época foi a APA Funk, Associação dos Profissionais e Amigos do Funk. Ali, auxiliei também na produção de cartilhas, tanto sobre direitos autorais, quanto materiais de orientação sobre abordagem policial, coisas que afetam o dia a dia das pessoas de favela e do funk. Auxiliei também na elaboração e toda a construção da luta pela aprovação da Lei Funk é Cultura, em 2009. Da mesma maneira, auxiliei também pela revogação da lei — uma lei do Álvaro Lins, agora esqueci o número da lei, 5265, alguma coisa assim. Mas era uma lei do Álvaro Lins que praticamente inviabilizava a realização de bailes funk no Rio de Janeiro, criminalizava bastante”
“Depois, a gente discutiu muito a questão da resolução 013, que era uma resolução, na época do Beltrame, que também trazia muitos problemas para os bailes funk, para a cultura funk no Rio de Janeiro. Teve toda a questão do conflito das UPPs com os agentes culturais populares, que também eram do funk, mas de outras vertentes artísticas também, e tudo que representava de autoritarismo e repressão às manifestações culturais nas favelas que vinham sendo “pacificadas”.
“Atuei muito na época da prisão dos MCs, em dezembro de 2010, quando foram presos os MC Smith, Frank, MC Ticão e Max. Depois, em 2019, teve a prisão do Renan da Penha. Eu participei muito da campanha, dos esforços pela liberdade do Renan da Penha. Enfim, sempre tive um vínculo muito forte com essa questão da cultura popular, em especial da cultura funk. E sempre estive junto. Nesse tempo eu também coordenava o defeZap, que recebia denúncias de violência de Estado, e a gente conseguiu documentar e comprovar uma série de violações em bailes funk, em eventos da cultura funk, como, por exemplo, a polícia militar chegando com seu caveirão e destruindo equipamentos, barbarizando para cima de produtores culturais e artistas do funk”
A cultura do funk, há anos, sofre perseguição das autoridades brasileiras, principalmente no Rio de Janeiro. Aqui, Guilherme fala sobre isso — e sobre a proibição dos bailes no início dos anos 2000 e a campanha “Funk é Cultura”.
“A campanha “Funk é Cultura” foi promovida pela Associação dos Profissionais e Amigos do Funk, a APA Funk, em 2008 e 2009. E foi uma campanha muito importante para, primeiramente, mobilizar a própria massa funkeira, a partir da liderança dos profissionais do funk, dos MCs, dos DJs, dos donos de equipe de som, para a conscientização sobre os seus direitos e a organização coletiva para a defesa desses direitos”
“Eu estava como amigo do funk, prestando assessoria jurídica popular, ajudando-os a se apropriarem das ferramentas jurídicas para se defenderem. E testemunhei de perto a potência que é os próprios funkeiros se auto-organizando, tomando a palavra, fazendo as suas falas, defendendo seus pontos e se colocando como sujeitos de direito na nossa sociedade. Então, se colocando como pessoas que não só reconhecem que possuem direitos, mas exigem que sejam cumpridos e, quando há problema na legislação, vão lá mudá-la. Foi uma campanha fundamental porque mobilizou milhares de funkeiros através de rodas de funk, que eram manifestações político-culturais que passaram por vários cantos da cidade”.
“A importância da Lei Funk é Cultura foi gigantesca, porque, pela primeira vez, o Estado reconhecia, por meio de lei, que deveria tratar o funk prioritariamente pela Secretaria de Cultura, e não mais pela Secretaria de Segurança. Agora, nós sabemos que toda lei está no papel. Cultura precisa inspirar pessoas e precisa se manter viva. A gente vê, até hoje, a massa funkeira se mobilizando das suas maneiras, das suas formas. Agora, em torno do caso do MC Poze, foi muito forte isso também. E a massa funkeira precisa se manter mobilizada para que a gente consiga alcançar uma realidade em que o funk deixe de ser criminalizado e passe a ser, não só reconhecido, mas fomentado como qualquer outra cultura merece ser fomentada”.
Hoje é o Poze. No passado, outros cantores de funk foram presos pelos mesmos motivos e justificativas das autoridades. Entre eles, MC Smith, em 2010. No entanto, uma parte legal é que esses artistas mantêm seus laços com os lugares onde nasceram. Guilherme analisa por que os alvos são sempre os mesmos.
R: “Enxergo isso como a continuidade histórica da colonização escravocrata no nosso país. A colonização escravocrata fundou o Brasil — esse modelo de colonização como aquele movimento em que o colonizador produz violência no território colonizado para extrair riqueza. E, da mesma maneira, a escravidão, como esse movimento do trabalho forçado e do não reconhecimento da pessoa escravizada como um ser humano. Na escravidão, as pessoas escravizadas são tratadas como objeto. Elas não são reconhecidas na sua humanidade e, portanto, também não são reconhecidas nos seus direitos. Nós precisamos sempre lembrar que o Brasil tem 525 anos de história, mas quase 400 anos conviveu com a escravidão legalizada no nosso país.
“Então, nós temos uma permanência histórica, uma continuidade histórica da escravidão nas práticas cotidianas dos poderes do Estado brasileiro. Veja: a polícia militar, a polícia civil, os embriões do que hoje é o sistema de justiça no Brasil, foram todos fundados nessa época da escravidão e da colonização”.
Eu lembro muito, quando você fala desses MCs, por exemplo, do jogador Adriano. O jogador Adriano que virou Imperador na Itália, né? Virou um grande jogador da seleção brasileira, um ídolo do Flamengo. E quando ele decide curtir e festejar com seus amigos na favela, lá na Vila Cruzeiro, as pessoas automaticamente criminalizam, como se isso fosse sinônimo de que ele quer estar ali no meio do crime, no meio da sujeira, etc. Como se ele não tivesse afeto, como se ele não tivesse carinho pelo lugar de onde vem, como se ele fosse obrigado a nunca mais voltar lá se tivesse, digamos, um caráter bom. Então, isso é um desrespeito com toda a favela. E ele manteve a firmeza, indo lá, curtindo, etc., assim como esses artistas, que podem ganhar muito dinheiro, mas mesmo assim mantêm seus laços com as favelas.
Por fim, Guilherme explica como foi sua atuação na Defensoria Pública. Ele foi ouvidor entre dezembro de 2019 e dezembro de 2023. Esse é o tempo máximo que a lei prevê para o mandato da função.
R: “Eu disputei a eleição para ouvidor externo em 2019, a partir de uma indicação do próprio movimento funk. Alguns produtores de baile funk me indicaram a participar desse processo eleitoral, por tudo que a gente já vinha construindo antes — de lutas, de direitos, de busca de dignidade, de posicionamento. Então, isso, para mim, foi muito simbólico. Foi muito honroso poder ter essa confiança do movimento funk. Eu ganhei a eleição, então assumi a ouvidoria em dezembro de 2019 e passei a ter uma atuação que prioritariamente olhava para o acesso a direitos daqueles e daquelas que tiveram mais violações”.
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“Então, estive muito presente nos territórios, com muita intensidade de presença em favelas, periferias, subúrbios. Mas também nos assentamentos rurais, nos quilombos, nas aldeias indígenas.
E outra característica da minha atuação sempre foi a atuação em rede, ou seja, nunca fiz nada sozinho. Além dos movimentos e dos coletivos, sempre busquei atuar junto com outras equipes, instituições e órgãos que tinham uma função complementar à minha. Assim como eu ia para escutar, quando a gente escuta como ouvidor, a gente também precisa tomar providência”.
“Das cinco maiores chacinas, três foram durante a minha gestão. Em todas elas — não só nessas maiores, mas em todas as outras que aconteceram durante a minha gestão —, nós estávamos lá no território, junto com os movimentos, atuando em rede, dando resposta em tempo real, acolhendo pessoas com transdisciplinaridade e escuta ativa. Então, foram anos muito intensos, mas conseguimos construir uma forma de acesso à justiça muito positiva.
“E aí, para finalizar, o que isso tem a ver com o funk? Olha, se não fosse tudo o que eu aprendi com a massa funkeira, tudo o que eu aprendi com os profissionais do funk, se não fosse a rede de contatos, os aprendizados de linguagem, de postura, de conduta, eu não teria conseguido fazer nem metade do que a gente construiu”
“Porque o que eu consegui aprender com o movimento funk, eu posso dizer que foi tão valioso quanto a faculdade que eu fiz. Porque me deu um repertório e uma capacidade de escuta e de me desarmar de preconceitos também, que a sociedade costuma reproduzir. E isso foi muito importante para eu conseguir atender com qualidade a população. Então, eu sou muito grato ao movimento funk. Porque eu sei que tudo que eu fiz, tudo que eu tenho conseguido fazer, eu não estaria fazendo nem metade se não fossem os aprendizados que eu tive. E eu não teria também conseguido aprender tanto com o movimento funk se eu não fosse tão bem acolhido pela massa funkeira, com todas as lutas que nós travamos”, concluiu ao MyNews.
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