Ao ser expulso do país em flagrante desrespeito a uma decisão judicial (de 2019) que suspendia sua deportação, Abrego Garcia tornou-se símbolo de algo muito mais grave do que uma falha burocrática
O caso de Kilmar Armando Abrego Garcia, cidadão salvadorenho deportado indevidamente pelos Estados Unidos, é mais do que um erro administrativo: trata-se de um sinal preocupante da erosão das garantias fundamentais do Estado Democrático de Direito. Ao ser expulso do país em flagrante desrespeito a uma decisão judicial (de 2019) que suspendia sua deportação, Abrego Garcia tornou-se símbolo de algo muito mais grave do que uma falha burocrática — ele se converteu no aviso concreto de que nenhum cidadão, documentado ou não, está imune ao arbítrio quando o Executivo se permite agir fora dos limites da legalidade.
É justamente contra esse tipo de violência institucional — o poder do Estado de dispor do corpo do indivíduo, privando-o da liberdade sem o devido processo legal — que se ergue o instituto do habeas corpus. Criado para proteger a integridade física e moral do ser humano diante da máquina estatal, esse mecanismo jurídico é, por excelência, a última trincheira da liberdade individual frente à autoridade. Quando a deportação de um homem ocorre à revelia de uma ordem judicial, estamos diante da mais clara negação do habeas corpus em sua essência: o direito de não ser retirado do convívio social sem justificativa legal adequada e revisão jurisdicional efetiva.
É preciso compreender que o arbítrio não se instala, via de regra, por golpes espetaculares ou anúncios solenes de autoritarismo. Ele se infiltra nas frestas do cotidiano, normalizando práticas ilegais com base em discursos de eficiência, segurança ou patriotismo. O caso de Abrego Garcia mostra que, ao permitir que o governo dispense da jurisdição um indivíduo com base em alegações não comprovadas e sem observância das decisões judiciais, abre-se um precedente perigoso: hoje o alvo é um imigrante; amanhã, pode ser qualquer cidadão que incomode o poder. E isso não é alarmismo. O silêncio, ou a complacência, diante desse fato é cumplicidade.
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Portanto, o debate público que se impõe não deve restringir-se à nacionalidade, ao histórico migratório ou às suspeitas de associação de Kilmar Garcia com uma gangue — que ainda carecem de comprovação sólida. A questão central é o que esse episódio revela sobre a fragilidade das salvaguardas jurídicas em contextos de exceção travestidos de legalidade. O habeas corpus não é um privilégio de poucos, mas um pilar civilizatório. Desrespeitá-lo é permitir que a barbárie seja administrada com a frieza dos gabinetes e o verniz da autoridade. A recusa do governo Trump em fazer cumprir ordens judiciais inequívocas, aprofunda o desprezo pela legalidade e pela separação de poderes que caracteriza as tendências autocráticas do trumpismo.
*Daniel Carvalho de Paula é Doutor em História e professor do curso de Ciências Econômicas da Universidade Presbiteriana Mackenzie