Na matéria de Márcio Silva, advogado e assessor da bancada federal do PT entre 1996 e 2006, foi debatido o governo atual no país
Em termos ideais, um ambiente político saudável e construtivo contaria com a pluralidade de ideias, consubstanciadas em Partidos que praticam democracia interna e disputam a hegemonia política em processo justo. Para ilustrar a trajetória do maior Partido de oposição na década de 90 do século passado até a assunção na Presidência em 2002, tomo emprestado os termos de Celso Rocha de Barros na Folha. Confira a análise sobre o PT.
(https://www1.folha.uol.com.br/colunas/celso- rocha-de-barros/2024/08/por-que-a-democracia-brasileira-sobreviveu.shtml),
Afinal, porque precisos, porque de alguém de fora da estrutura partidária, porque pertinente ao raciocínio que quero desenvolver. Disse ele: “Fizemos nossa transição à democracia com a classe política herdada da ditadura, fortemente conservadora (pois a esquerda foi perseguida) e bastante corrupta (pois na ditadura conviveram grandes projetos de desenvolvimento e ausência de controle institucional).
Por outro lado, em um país desigual como o Brasil, era de se esperar que a esquerda fosse bem-sucedida em eleições majoritárias (como a presidencial). Isso teria criado crises quando a esquerda chegasse ao poder em qualquer cenário.”
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Volto no tempo sem maiores digressões sobre as muitas dificuldades (organizacionais, financeiras, comunicacionais, etc…) que o PT enfrentou, mas me apoiarei em um dado histórico específico e devidamente documentado que ilustra a transição sofrida e as consequências prováveis.
Em outubro de 2001, no âmbito do processo legislativo que intentava implementar o parlamentarismo no Brasil, a bancada federal do PT apresentou voto em separado em que rechaçava a proposta (fundamentalmente porque o povo a havia rejeitado em recente plebiscito) e ofertava substitutivo, no qual propunha a adoção de listas partidárias e financiamento exclusivamente público de campanha.
E por que o PT defendia a adoção de listas? Considerado o papel central – ao menos no atual estágio de desenvolvimento de nossa democracia – do partido político enquanto agente institucional intermediário entre cidadão/Estado, bem como a racionalidade na gestão de recursos públicos e privados integrados ao patrimônio desse mesmo agente, a coerência política e ideológica que vincula o eleito ao exercício do mandato pressupõe a maneira como a candidatura é apresentada ao eleitorado.
Não escapa a esse raciocínio que na adoção de listas fechadas a distorção pode ser precedente, ou seja, se estabelecer quando da formação da mesma, supostamente estimulando apropriações oligárquicas, situação que caracterizou a realidade de várias experiências partidárias nacionais. Mas essa é questão que diz respeito aos partidos, no âmbito de sua autonomia. A constatação decorre de cultura que privilegia o personalismo político, ainda presente e fortíssimo em nossa realidade, mas que nenhum ator político sério defende enquanto modelo. Atualmente, nosso sistema contempla a apresentação de listas “abertas” pelos partidos que registram número pré-determinado de candidatos. Cabe ao eleitor “ordenar” dentro de cada lista o número de representantes de cada partido que ocupará a vaga destinada a essa legenda após aferição do quociente partidário.
Tal modelo possui inspiração individualista, que proporciona aos mais aptos à exposição de sua candidatura maior probabilidade de angariar votos e, nesse contexto, exercer influência pessoal no exercício do cargo conquistado. Ou seja, ainda que sua candidatura e exercício de eventual mandato dependa do respaldo partidário, na prática os candidatos agem como se candidaturas avulsas fossem, sem censura institucional. Ao contrário, candidatos ricos e já conhecidos fazem valer seu privilégio sem constrangimentos. De fato, a projeção de líderes em detrimento da militância de massa se insere em contexto histórico-cultural inegável do capitalismo pós-industrial, na qual a política tornou-se um espetáculo.
Para se afastar desse modelo que prestigia o individual e desconsidera a construção coletiva, o PT de 2001 defendia um sistema que tende a despersonificar a representação popular, vincula um partido ao seu programa e à atuação parlamentar consequente e viabiliza adoção de critérios democráticos na formação das bancadas (políticas afirmativas).
E quanto ao financiamento da Democracia? Evidente que apurar a vontade do eleitor em ambiente no qual estejam garantidos princípios republicanos, requer mecanismos que busquem o ideal de normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico. O valor a ser perseguido é o da igualdade de condições materiais (reais), para além da isonomia (abstrata). Com a personificação do Poder, a política é norteada pela oferta de fetiches que logo são mercantilizados, daí a importância impressionante das estratégias publicitárias (tradicionais e disruptivas) na estruturação de uma campanha eleitoral e o custo delas em nossa história recente. Por essa razão, o PT de 2001 defendia o financiamento exclusivamente público, que tem como consequência lógica o limite orçamentário e regras auditáveis de distribuição.
Mas veio a vitória de Lula em 2002, decorrente das demandas de um país desigual e da força do voto. Fez absolutamente todo o sentido, e é um marco histórico, o primeiro discurso do Presidente eleito no Congresso Nacional, quando ele cravou como meta que todo brasileiro pudesse fazer três refeições diárias.
A partir de então, a dimensão utópica da construção coletiva por mais democracia se deparou com a necessidade pragmática de gestão do Orçamento e acomodação dos muitos interesses e privilégios que disputam com as reais necessidades do povo brasileiro os parcos recursos públicos. O que assistimos foi o gradual distanciamento das prioridades do PT para a reforma política e o sistemático ganho de relevância das pautas econômicas. Sim, são excludentes, apesar de figurarem em escaninhos distintos da burocracia gerencial.
Enquanto políticas de transferência de renda, cotas raciais e aumentos do salário mínimo contemplaram por uma década necessidades prementes, a adoção de sistema partidário e eleitoral democrático passou a ser tema irrelevante, ou mesmo tabu, a julgar pela recentíssima reunião do diretório nacional que decidiu mudar o estatuto do partido e liberar a reeleição sem limites para seus dirigentes.
Com a normalização de direitos anteriormente sonegados e a metamorfose do perfil do eleitorado, o discurso envelhecido não seduz como outrora. Mas o sistema de acesso ao Poder continua o mesmo: personalista, mentiroso, desconectado com a realidade orçamentária, sequestrada por emendas parlamentares e chantageado pelo mercado financeiro e, mais recentemente, pelas grandes empresas tecnológicas, detentoras da manipulação algorítmica.
Hoje, críticas são dirigidas ao Presidente Lula, o acusando de estar “isolado”. Ocorre que o nosso sistema político-eleitoral premia quem adota atalhos e age de maneira diametralmente oposta ao que prevê o artigo 242 do Código Eleitoral, ou seja, ganha eleição justamente quem emprega meios publicitários destinados a criar, artificialmente, na opinião pública, estados mentais, emocionais ou passionais. Perguntem ao Nikolas Ferreira ou ao Carlos Bolsonaro…
Talvez seja momento ótimo de compreender que a construção coletiva de consensos já não é mais como era antigamente e que, certamente, não será feita com a outorga de poderes ilimitados a alguns poucos líderes que decidem o futuro da manada, nessa humilhante miséria intelectual em que se transformou o debate político.
Se nossa realidade é, exclusivamente, uma suposta disputa entre Lula e Bolsonaro, estamos irremediavelmente perdidos, porque obviamente não é disso que se trata.
No entanto, se é unicamente para gerir um Orçamento conforme as necessidades e conveniências de uma elite mesquinha, destinando migalhas residuais às políticas compensatórias, então seria muito mais proveitoso e digno que o PT retome pautas utópicas que um dia lhe conferiram sentido e grandeza.
Márcio Silva, advogado. Foi assessor da bancada federal do PT entre 1996 e 2006. Advogou nas campanhas presidenciais de Luís Inácio Lula da Silva em 1998, 2002 e 2006, e coordenou a equipe jurídica da campanha de Dilma Rousseff em 2010.