Coluna Daniel Carvalho de Paula no MyNews
As recentes declarações do governador Romeu Zema, ao se recusar a afirmar que houve ditadura militar no Brasil, revelam não apenas uma tentativa de se esquivar de um posicionamento ético, mas também um descompromisso preocupante com a memória histórica do país. Ao alegar que “não é historiador” e que “tudo é uma questão de interpretação”, Zema ignora deliberadamente o consenso construído por décadas de pesquisa, por documentos oficiais e pela própria institucionalidade democrática.
A ditadura brasileira (1964–1985) não é matéria de opinião — é um fato histórico respaldado por fontes, testemunhos e decisões jurídicas. Mortos e desaparecidos políticos, milhares de presos e torturados, censura sistemática à imprensa, fechamento do Congresso e cassações são evidências inescapáveis de um regime autoritário. Não há espaço para relativismos quando o preço pago por tantos foi a própria vida.
Mais grave ainda é a tentativa de estabelecer uma equivalência entre a repressão promovida pelo Estado e a resistência armada contra o regime. Ao afirmar que “houve terroristas naquela época também”, Zema opera com uma retórica perversa: sugere que as violações de direitos humanos — como tortura, assassinato e desaparecimento forçado — seriam apenas reações a crimes cometidos por opositores. Essa lógica falseia o papel do Estado, que, numa democracia, deve ser o primeiro a respeitar as leis, não o agente da barbárie. Equiparar a resistência à repressão estatal é confundir, perigosamente, vítimas com algozes.
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O discurso sobre o indulto ao ex-presidente Jair Bolsonaro segue a mesma lógica distorcida. Ao justificar um possível perdão sob o argumento de que se concedeu indulto a “assassinos e sequestradores” durante o regime, Zema não apenas “tortura” os fatos históricos — pois o regime militar concedeu ampla anistia a seus próprios agentes — como instrumentaliza a história para fins políticos imediatos. Trata-se de um uso seletivo da memória nacional, em que o passado é manipulado para legitimar impunidades presentes.
Por fim, nem mesmo os próprios protagonistas do regime ousaram tal negação. Jarbas Passarinho, ministro de Estado durante a ditadura, reconheceu publicamente que se tratava de um regime autoritário, que suprimiu direitos civis e impôs à sociedade numerosas violências. Quando até os arquitetos do regime reconhecem sua natureza, negar sua existência é, no mínimo, um gesto de má-fé. Ao tratar a ditadura como “questão de interpretação”, Zema não apenas rebaixa o debate público — atenta contra a memória coletiva e os valores fundamentais da democracia.
*Daniel Carvalho de Paula é Doutor em História e professor do curso de Ciências Econômicas da Universidade Presbiteriana Mackenzie
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