Conheça Washington Quaquá, o dono do camarote onde foi dada a partida para as eleições 2024
por Chico Otavio em 01/03/24 12:16
Os gestos agitados sacudiam o relógio no pulso. “É um Cartier legítimo, custa R$ 85 mil”, gabava-se o dono da joia francesa. Washington Luiz Cardoso Siqueira, o Quaquá, 52 anos, admitiu que gosta de dinheiro. Na área exclusiva do camarote “Favela”, onde recebeu 1.700 pessoas no último carnaval, ele estimou em até R$ 4 milhões o lucro familiar com a venda de ingressos para o desfile das escolas de samba. Como muitos que exibem poder na Passarela do Samba, estava ornado do chamado “kit faraó”: Além do Cartier, ostentava um grosso cordão e um anel quadrado, ambos de ouro. O anel, segundo ele, foi um mimo do presidente da Câmara Municipal de Maricá, Aldair da Linda, que gravou um foguete na peça, em alusão à frase que Quaquá adora repetir: “Foguete não anda para trás”.
Iniciada nos setores mais radicais do PT, há quase 40 anos, a jornada de Quaquá pela política fluminense é uma viagem sem volta. Embora admita a candidatura a prefeito de Maricá, cargo que já ocupou em dois mandatos (entre 2009 e 2016), o deputado federal do PT pretende ir além e demonstrar a força de um cacique político nas eleições de outubro. Aspira eleger aliados em toda a Região dos Lagos, influenciar no voto das comunidades periféricas da capital e ainda dar pitacos na eleição em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, como dirigente nacional do PT e integrante do grupo de trabalho eleitoral do partido.
Nas ruas de Maricá, há quem acredite que as eleições da cidade serão meramente plebiscitárias. Quaquá seria imbatível. Porém, enquanto se aguarda a contagem regressiva para o início da disputa, adversários políticos, inclusive internos, se esforçam para abater o foguete antes da decolagem. Denúncias de enriquecimento ilícito, de contratos suspeitos, de farra com o dinheiro público e de amizades perigosas atravessam o caminho de um dos mais influentes e polêmicos políticos que despontaram no Rio de Janeiro nos últimos anos. Em termos de exposição, nada dá mais visibilidade a Quaquá do que o seu talento para o sincericídio. Elogios ao general-deputado Eduardo Pazuello (PL), apoio ao conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE) Domingos Brazão, xingamentos homofóbicos na Câmara dos Deputados engrossam uma coleção de parvoíces que garante um lugar cativo para o político na mídia.
Um componente especial incendeia a disputa em Maricá. A 60 quilômetros da capital, o município é um dos maiores arrecadadores de royalties do petróleo no Brasil. Sua faixa litorânea, base do cálculo do benefício, chega a quase 33 quilômetros. Em 2023, de acordo com os valores divulgados no site da prefeitura local, os repasses totalizaram pouco mais de R$ 3 bilhões – a soma do recebimento mensal dos royalties e da participação especial dos municípios, bem como sua rentabilidade. Tanta fartura tem o condão de fazer da cidade um emirado brasileiro e de seu prefeito, um sheik montado no dinheiro.
Para falar da carreira, de Maricá e das suas encrencas, Quaquá recebeu o MyNews, no dia do desfile das escolas de samba campeãs, 17 de fevereiro, no hotel em Botafogo, na Zona Sul do Rio, de onde seguiria para a Sapucaí. Chegou uma hora atrasado, de chapéu panamá, de camisa do camarote Favela e de kit faraó. Alegou que estava bebendo desde duas da tarde, com um grupo de executivos “do terceiro maior banco da Rússia”. Estariam interessados em investir na Mumbuca, a moeda social criada por ele em Maricá. Puxou um charuto cubano e ofereceu ao repórter. Pediu um uísque e um rum cubano ao garçom. Em seguida, disparou: “Não gosto de jornalistas!”.
Sem graça, seu assessor de imprensa se ajeitou na cadeira. Mas Quaquá não teve tempo de desenvolver a tese. Logo, começaram a disparar as ligações telefônicas. Eram pedidos de última hora por pulseiras de acesso ao camarote Favela. Um emissário do empresário Ricardo Amaral levou duas. “Acabaram de me pedir quatro para a Camila, puta que o pariu”, agitou-se. Deputada federal pelo PT sulmatogrossense, Camila Jara é pré-candidata à Prefeitura de Campo Grande. Do bolso de Quaquá, saíram mais duas pulseiras pedidas por Talíria Petrone, deputada do PSOL e potencial candidata à Prefeitura de Niterói.
Uma pergunta sobre a origem do nome mumbuca, a moeda criada por Quaquá para o pagamento dos beneficiários do programa “Renda Melhor”, deu ao ex-prefeito o gancho para falar de sua infância pobre. Filho de um soldado da PM e nascido no Caramujo, bairro da periferia de Niterói, ele disse que aproveitava as idas à casa da avó, em Maricá, para pescar acará no Rio Mumbuca, que corta o centro da cidade. Ao lado do pai e do irmão mais velho, ele pescava com a mão, arrancando os peixes da toca. Outro alimento extraído do rio era a rã, que os meninos matavam a pauladas antes de comer.
O pai, na época, era lotado no 12º Batalhão da PM (Niterói). O quartel proporcionou momentos de alegria na infância de Quaquá, quando os dois irmãos recebiam brinquedos na festa de natal da unidade. O ex-prefeito fez questão de lembrar que as festas de natal na PM foram obra do então comandante da corporação, general Nilton Cerqueira, o mesmo que, dez anos antes, havia liderado a Operação Pajussara, responsável em 1971 pelo cerco e morte do ex-capitão do Exército Carlos Lamarca no interior da Bahia.
Em matéria de ideologia, é difícil classificar Quaquá. O mesmo político que reconhece a gratidão ao general Cerqueira se declara fã de Vladimir Palmeira, o líder estudantil que enfrentou o regime militar. Aos 14 anos, começou a militar no PT pela corrente Refazendo, de Vladimir, que fazia uma oposição mais à esquerda ao grupo de Lula. Quaquá atribui o seu destempero verbal ao convívio com o ex-dirigente estudantil, famoso pelos discursos contundentes. Hoje, porém, entrou mais um no panteão do ex-prefeito: o deputado estadual Eduardo Suplicy (PT), com quem Quaquá disse ter conversas rotineiras sobre renda básica, à luz da experiência em Maricá.
Soa irônico ouvir de Quaquá elogios a Vladimir e Suplicy, dois esquerdistas ortodoxos, enquanto chacoalhava no pulso o Cartier de R$ 85 mil. Ele não se sentiu constrangido. Garantiu que era esquerdista também, mas não franciscano, e não via qualquer problema em ganhar dinheiro. Dono de uma agência de turismo chamada “Mais do que viagens”, disse que negociava com dirigentes cubanos o lançamento da campanha “Vai para Cuba”, com um apelo público centrado fortemente na história política da ilha caribenha.
“Quero ganhar dinheiro. Não sou otário. Esse projeto vai botar no bolso do grupo de investidores R$ 50 milhões” – aquilatou.
A conversa no hotel seguia animada até que a mulher de Quaquá ligou da Sapucaí. “Cadê você?”, reclamou. Era hora de partir.
Os três andares do Favela estavam lotados no desfile das campeãs. Ao chegar, Quaquá teve dificuldade de ir até a área vip no terceiro andar. Cumprimentos, abraços e poses para fotografias barraram-lhe o caminho. O beija-mão continuou na sala exclusiva. O sambista Moacyr Luz foi um dos primeiros a chegar. Desde o fim de semana anterior, no carnaval, passaram pelas catracas do camarote famosos como o ministro do Turismo, Celso Sabino de Oliveira, o embaixador de Cuba no Brasil, Adolfo Curbelo Castellanos, e o presidente da Assembleia Legislativa do Rio, Rodrigo Bacellar.
Quaquá descreveu o Favela, inspirado na marca de roupas da família, como uma fonte de lucros. Sob o comando da mulher, Gabriela Lopes, apuraria, afirmou, no final dos desfiles, um lucro de R$ 3 milhões a R$ 4 milhões com a venda de ingressos, especialmente pacotes para grupos empresariais. Porém, na medida em que os pedidos de pulseirinhas chegavam, ele admitiu que o camarote era também uma fonte de relacionamentos. Na sala vip, Quaquá mal teve tempo de ver as escolas passarem. Era uma conversa atrás da outra, numa interminável valsa de cadeiras regada a cerveja, salgadinhos e sushis.
O califado de Quaquá em Maricá já dura quase 16 anos – oito de seus dois mandatos e mais sete anos e dois meses do atual prefeito, Fabiano Horta (PT), o seu herdeiro político. Além da moeda própria, que movimenta a economia local com as compras das famílias de baixa renda no comércio da cidade, a gestão petista também promove um programa de tarifa zero no transporte público. Para utilizar o sistema, que mobiliza 115 ônibus em 38 linhas, basta fazer o sinal no ponto e embarcar.
Outro concorrido programa é o Passaporte Universitário, lançado para permitir que moradores de baixa renda, com pelo menos três anos de residência comprovada no município, tenham acesso gratuito ao estudo universitário. Para isso, a prefeitura conta com quatro universidades parceiras, todas privadas, que oferecem cursos de graduação, pós-graduação (em nível de especialização), mestrado e doutorado.
Tantas vantagens provocaram um boom demográfico no município. Maricá sofreu um acréscimo, de acordo com o IBGE, de quase 70 mil habitantes entre 2010 e 2022 – um salto de 54%, que a colocou no ranking das cidades que mais cresceram no país, com cerca de 197 mil habitantes. Na esteira do fenômeno, apareceram também distorções e denúncias de farra dos royalties. Um dos professores do Passaporte Universitário reclamou que, até bem pouco tempo, recebia em sala uma quantidade expressiva de alunos que mal sabia ler e escrever. Eram, segundo ele, pessoas de baixa renda que “queriam se letrar e se graduar ao mesmo tempo”, situação deixava o corpo docente de cabelos em pé.
O candidato pobre, para ingressar no programa, só precisava comprovar renda inferior a seis salários mínimos. Com a grita dos professores, só recentemente a Prefeitura contratou uma empresa para aplicar um teste de aptidão antes de matricular os alunos. São outras queixas recorrentes a falta de mão de obra local, pois a força de trabalho foi praticamente absorvida pela prefeitura, e a má vontade do comércio para aceitar compras a crédito, uma vez que a mumbuca, trocada no caixa municipal, garante sempre pagamentos à vista.
Companheiros do PT contaram que, para ascender à condição de vice-presidente do partido, Quaquá muitas vezes pisou no calo dos correligionários, nas renhidas disputas no diretório fluminense. É bem verdade que, ao longo dos últimos anos, o ex-prefeito amealhou respeito e estima dentro do partido. Uma das suas qualidades mais exaltadas é o talento para circular nas periferias pobres e falar de igual para igual com a gente simples, condição que o PT teria perdido desde que chegou ao poder central. Mas a virada de chave aconteceu durante a longa crise enfrentada pelo partido, iniciada com o impeachment da então presidente Dilma Rousseff, em 2016, e agravada pela prisão de Lula, em 2018. Neste cenário, Maricá virou um porto seguro do PT, empregando quadros ligados à cúpula partidária e transformando o município em um enclave socialista frente à onda bolsonarista que varria o país.
Em seu último ano como prefeito, em 2016, Quaquá inaugurou uma estátua de Che Guevara, em frente ao Hospital Municipal com o nome do guerrilheiro argentino. O evento contou com a presença de Aleida Guevara, filha mais velha de Che.
Todo esforço, contudo, não se traduziu em votos para o PT nas duas últimas eleições presidenciais. O partido de Quaquá perdeu nos quatro turnos disputados. Em 2018, Jair Bolsonaro venceu na cidade com 57,59% dos votos no primeiro turno, contra 24,84% dados a Fernando Haddad. No segundo turno, o ex-capitão obteve 62,30% contra 37,70% de Haddad. Já em 2022, a briga foi mais apertada. Bolsonaro marcou 47,79% no primeiro turno, enquanto Lula ficou com 45,81%. No segundo turno, nova vitória do ex-capitão, com 51,74% do total da cidade contra 48,26% do petista.
É essa contradição, somada às investigações envolvendo Quaquá, que encoraja seus adversários a aprontar uma surpresa nas eleições de outubro. O deputado estadual Filippe Poubel (PL), potencial candidato a prefeito que se identifica como “direitista, armamentista, conservador, anti-esquerda e empreendedor”, sonha em levar Bolsonaro pelo menos quatro vezes ao município antes da votação. Poubel, natural de Maricá, é hoje o maior adversário de Quaquá no município. Nas redes sociais, no plenário da Assembleia e onde quer que seja, desfila um rosário de críticas e ataques pesados ao petista.
“Quaquá saiu em 2016, mas continua dando as cartas em Maricá. São muitas as denúncias. Embora o município tenha uma das maiores rendas por habitante do país, a situação da saúde é precária. Ele não pensa na população, só em seu projeto pessoal. Pratica o assistencialismo. Transformou a prefeitura em cabide de empregos. Licitações são um jogo de cartas marcadas”, disparou Poubel.
De todos os problemas, aquele que mais aborreceu Quaquá foi a condenação a três anos, dois meses e 15 dias de prisão, em regime aberto, por fechar o aeroporto municipal durante sua gestão em 2013. Na decisão, o juiz citou a responsabilidade do então prefeito pelo risco causado à segurança do voo – sem a pista, os pilotos deixaram de ter a opção de um pouso de emergência em Maricá. Quaquá lamentou que o caso seja associado, sem ter relação direta, com a morte de duas pessoas na queda de um avião na Lagoa de Maricá.
“Tirei os traficantes de drogas do aeroporto e fui penalizado por isso. Os tripulantes morreram porque o avião se dissolveu no ar” – lamentou.
A carreira política de Quaquá sofreu ainda um hiato de quatro anos com a decisão da Justiça Eleitoral, tomada em 2013, de torná-lo inelegível por oito anos (a contar desde 2012) por abuso do poder político e conduta vedada a agente público pelo uso político-eleitoral do programa “Renda Melhor”. Por conta do revés, ele chegou a se eleger deputado federal em 2018, mas não foi empossado.
As confusões provocadas pela verborragia desvairada já não incomodam tanto. No ano passado, ele agrediu com um tapa o colega de Câmara Messias Donato (Republicanos-ES) e chamou Nikolas Ferreira (PL-MG) de “viadinho”. Em janeiro, quando a imprensa divulgou o nome de Domingos Brazão como o possível mandante do assassinato de Marielle Franco, Quaquá o defendeu: “Conheço o Domingos Brazão de longa data, inclusive de campanhas eleitorais nacionais onde ele esteve do nosso lado. Sinceramente, não creio que ele tenha cometido tal brutalidade”.
De forma discreta, Quaquá demonstrou arrependimento por uma de suas tretas. Atacado pelos aliados por publicar uma foto, sorridente, ao lado do deputado federal e ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello (PL), alegando na época que o militar era um homem de diálogo e que “o diálogo é artefato da democracia”, Quaquá assumiu uma autocrítica:
“A coisa do golpe (de 8 de janeiro) me decepcionou. Não transijo com golpes. Minha régua é a da democracia. Mas vamos aguardar, para ver se é verdade” – comentou, referindo-se ao suposto envolvimento de Pazuello com os ataques de 8 de janeiro.
Na época, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, escreveu no Twitter que a imagem era um desrespeito ao PT e era ofensiva às vítimas da Covid: “Tudo tem limite”, escreveu Gleisi. A reação não abalou Quaquá, que parece disposto a pagar um preço pela tentativa de tirar o PT de uma bolha, ampliando o diálogo com setores mais conservadores ao mesmo tempo que afina o discurso para as massas. Neste ponto, o ex-prefeito brindou o MyNews com mais uma frase potencialmente polêmica:
“O PT não está imune à demagogia. O PT não pode ser a classe média militante. O PT só fala para a classe média.”
No dia seguinte ao desfile das campeãs, ainda com a cabeça pesada, Quaquá embarcou para mais uma de suas viagens internacionais. O destino era Havana, Cuba, para tratar do projeto turístico, entre outras agendas. Mas o petista voltou a tempo de assistir a “Operação Salus”, deflagrada pela Polícia Federal (PF) no dia 27 de fevereiro para apurar desvios de recursos públicos federais destinados à saúde de Maricá. A suspeita partiu de pagamentos discrepantes à organização social contratada pela Prefeitura, em fevereiro de 2020, com provável prejuízo de R$ 70 milhões.
A presença das viaturas pretas da PF é apenas um prenúncio do que vai acontecer até outubro em Maricá. Muitas águas do Rio Mumbuca ainda vão rolar por baixo da ponte.
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