Júlio César Gomes dos Santos, em discurso, contou que foi incumbido dos preparativos do velório do ex-presidente duas semanas antes de sua morte e deu detalhes, como a escolha do esquife
Numa solenidade para lembrar os 40 anos da transição democrática e da eleição da chapa Tancredo Neves e José Sarney no colégio eleitoral, o embaixador Júlio César Gomes dos Santos, que foi subchefe o cerimonial à época, relatou fatos e desceu a detalhes daquele período que causaram surpresa e perplexidade. E mesmo indignação.
O diplomata, hoje aposentado, relatou para uma plateia com as presenças de Sarney e dos ex-presidentes Julio Maria Sanguinetti (Uruguai) e Michelle Bachelet (Chile), que passou os 38 dias de internação de Tancredo ao lado da família e contou que, duas semanas antes de sua morte, foi chamado de São Paulo para Brasília para os preparativos do velório.
“Essa montagem com Tancredo ainda vivo, mas condenado à morte, foi das lições durante toda a minha vida no Itamaraty mais difícil que tive que desempenhar”, afirmou o embaixador, no evento “Democracia, 40 anos: conquistas, dívidas e desafios”, realizado pela Fundação Astrojildo Pereira, vinculada ao partido Cidadania, e pelo jornal Correio Braziliense.
O diplomata revelou que encomendou com antecedência o esquife, o caixão de Tancredo, quando retornou a São Paulo, onde o ex-presidente estava internado, no Hospital das Clínicas, após a reunião em Brasília. Destacou um militar de sua equipe para providenciar o caixão, mas como se fosse para seu pai (do militar), para não dar pistas de quem realmente se tratava. “Disse ao tenente (do cerimonial): ‘vai na funerária e peça fotos, dizendo que seu pai está muito mal e que a família quer ver qual esquife vai escolher'”.
No seu discurso no evento, Júlio César fez outras inconfidências. Atacou o atendimento e estrutura do Hospital de Base de Brasília, onde Tancredo foi inicialmente internado, e afirmou que a maca de tirar radiografia, usada pelo ex-presidente, era limpada com um pano por um enfermeiro. “O homem passou um pano como fosse um outro paciente que estava na fila”.
Na capital paulista, no hospital, o embaixador providenciou uma sala para receber autoridades e celebridades que queriam estar próximo de Tancredo e contou que instituiu um livro com assinaturas e mensagens dessas pessoas, que está sumido, e que hoje “valeria uma fortuna”.
Entre os visitantes, contou que o ex-presidente Jânio Quadros apareceu lá com um “aroma etílico”, levado pelo ex-governador paulista José Serra, do PSDB. Júlio César chegou a revelar aos presentes uma cena insólita: que foi procurado por uma celebridade, que, falando baixinho, lhe pediu coca. Ele entendeu se referir ao refrigerante, mas não. “Ah, essa coca (droga) eu não tenho”.
O embaixador trabalhou cinco anos com Sarney, de quem foi chefe do cerimonial, cargo que ocupou também na gestão de Fernando Henrique Cardoso. Mas ele deixou o Planalto, em novembro de 1995, após gravação de conversas telefônicas feitas pela Polícia Federal que envolveram seu nome em indícios de tráfico de influência em favor da empresa Raytheon, responsável pelo então programa Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia), acusação que negou.
A seguir, trechos da fala do embaixador Júlio César Santos no evento:
“Pano na mesa de radiografia como se Tancredo fosse outro paciente”
“Com Tancredo, foram 38 dias inesquecíveis, tristes e difícil de esquecer algumas coisas que não foram publicadas. Começou com a deficiência do hospital de Base de Brasília. O doutor Tancredo com seus médicos tirando fotografia para mostrar que estava em boa forma e que poderia se recuperar. Ele desceu um dia para a sala de radiografia do hospital, onde havia uma fila de pessoas que iam, entravam, saíam, eram radiografados. E o enfermeiro passava um pano em cima da mesa e quando chegou a vez do doutor Tancredo numa maca de rodas, o homem passou um pano como fosse um outro paciente que estava na fila. E eu me perguntei: meu Deus do céu, será que não tem ressonância magnética, não desinfetaram essa mesa”
“Não! Essa coca eu não tenho”
“Montei uma sala de cerimonial no primeiro andar (no Hospital das Clínicas, em São Paulo), com um livro que deve estar em algum lugar e deve valer uma fortuna hoje porque ninguém podia subir ao quinto andar para cumprimentar (a família de Tancredo) e instituí um livro com capa de couro lindíssima. As pessoas chegavam, assinavam e escreviam alguma coisa, todas as celebridades do Brasil. E alguns fatos interessantes aconteceram. O Jânio Quadros chegou às 10 da manhã, senti um ligeiro aroma etílico, trazido pelo José Serra. Uma celebridade das artes um dia chega prá mim e diz: ‘você tem coca?’. E perguntei: ‘por que você tá falando tão baixinho? Pega na geladeira’. Aí ele disse, parecendo a personagem da série da feiticeira e fez assim com o nariz (embaixador faz movimento de mexer o nariz da personagem Samantha, de A Feiticeira). Eu disse: “Não! Essa coca eu não tenho”.
Reunião ultrassecreta em Brasília
“Faltando duas semanas para o Tancredo Neves falecer, fui convocado para ir a Brasília, numa reunião ultrassecreta. Era para planejar o que fazer fazer com a morte de Tancredo Neves. E nessa reunião, que nos surpreendeu ou não, as instruções era que eu organizasse em São Paulo tudo, para que chegado o momento se fizesse no Palácio do Planalto o velório de Tancredo Neves. De volta em São Paulo, me reuni com duas pessoas do cerimonial. ‘Olha , vou lhes contar umas história. Fui a Brasília para isso e isso’. Para o tenente, eu disse: ‘você é um militar e tem que guardar segredo’. .. Foi escolhido (para o velório) um Cristo sem cruz, articulado como se tivesse pregado na cruz, mas com os dois braços assim, entreabertos e junto ao corpo”
“Montagem do velório com caixão escolhido, ainda com Tancredo vivo”
“Quando faleceu o presidente Tancredo, já tínhamos a foto do esquife. Disse ao tenente: ‘vai na funerária e peça fotos, dizendo que seu pai está muito mal e que a família quer ver qual esquife vai escolher’. Não foi escolhido o mais caro, mas o mais nobre, com janelinha para ver o rosto de Tancredo. Essas pequenas coisas ali, essa montagem com Tancredo ainda vivo, mas condenado à morte, foi das lições durante toda a minha vida no Itamaraty mais difícil que tive que desempenhar.