A instabilidade global afeta diretamente países como o Brasil, que dependem da previsibilidade para se manterem no mercado internacional
O atual agravamento das tensões entre Israel e Irã não pode ser interpretado de forma descolada do contexto político doméstico israelense. A figura de Benjamin Netanyahu, um dos mais longevos líderes da política israelense, enfrenta desgaste interno significativo — tanto pela condução do conflito em Gaza quanto por escândalos pessoais e impasses institucionais. Diante desse cenário, uma ofensiva contra o Irã — historicamente percebido pela população israelense como inimigo existencial — pode operar não apenas como reação geopolítica, mas como tentativa de reconstrução de capital político e sobrevivência no poder.
A literatura sobre regimes de extrema-direita tem destacado, de forma recorrente, a propensão desses governos à retórica e à prática belicosa. Mais do que elementos de defesa nacional, esses enfrentamentos servem frequentemente como estratégia de mobilização interna, construção de inimigos simbólicos e desvio de atenção sobre crises políticas, econômicas ou de governança. O caso israelense é exemplar nesse sentido: a radicalização do discurso, o tensionamento com instituições democráticas e o apelo à guerra como justificativa patriótica convergem com o que se observa em outros países governados pela extrema-direita.
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O resultado é um cenário internacional cada vez mais hostil, em que conflitos regionais tendem a ser ampliados por dinâmicas populistas, enfraquecendo os mecanismos de cooperação multilateral e tornando mais incerta a previsibilidade do comércio global. Para países como o Brasil, que operam fortemente integrados às cadeias internacionais e dependem da estabilidade para planejar sua inserção produtiva, essa reconfiguração do sistema internacional é especialmente sensível.
Algumas consequências práticas já são visíveis. Empresas de transporte expresso (conhecidas como couriers) suspenderam temporariamente suas operações em Israel, e o espaço aéreo entre os dois países diretamente envolvidos permanece restrito. Os mercados de energia também acompanham com apreensão: o Irã é um dos maiores produtores de petróleo do mundo e já utilizou aliados não estatais — como os rebeldes houthis no Iêmen ou milícias no Líbano e no Iraque — para desestabilizar rotas de navegação e infraestrutura energética na região. Eventuais ataques a navios ou refinarias podem elevar o preço global dos combustíveis, com impactos diretos nos custos logísticos e inflacionários em diversos países, incluindo o Brasil.
No plano diplomático, o Brasil já convive com relações tensas com o governo de Netanyahu, tanto pela postura crítica em relação à ofensiva israelense em Gaza quanto pelos posicionamentos públicos do presidente brasileiro em defesa da causa palestina. Diante de um novo agravamento regional, essa relação pode se deteriorar ainda mais — o que poderia dificultar, por exemplo, o acesso brasileiro a tecnologias de ponta, um dos poucos setores estratégicos nos quais Israel atua como exportador relevante.
Ainda assim, é preciso reconhecer que o Irã também contribui para a escalada. Desde a Revolução Islâmica de 1979, lideranças iranianas adotam um discurso sistematicamente hostil à existência de Israel, o que serve de combustível para reações militares e para a construção de consensos internos em Tel Aviv. A dúvida é por que a escalada se intensifica agora, quando esse discurso já é conhecido há décadas. O momento, mais do que o conteúdo, é revelador da natureza política da ofensiva.
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Do ponto de vista comercial, o Brasil pouco importa do Irã, mas não por proibição direta. O comércio é tecnicamente permitido, já que o Brasil não adota sanções unilaterais. No entanto, as sanções impostas pelos Estados Unidos dificultam a operação logística e financeira, levando bancos, seguradoras e armadores a evitarem transações com o país persa. Em situações excepcionais, como durante a crise de fertilizantes causada pela guerra na Ucrânia, o Brasil chegou a importar ureia e outros insumos do Irã. Foram operações pontuais, não estruturais, com alto risco reputacional e bancário.
A escalada entre Irã e Israel, portanto, representa não apenas uma disputa regional, mas mais um ponto de inflexão no enfraquecimento da ordem internacional baseada em regras. Para economias periféricas e médias potências comerciais como o Brasil, que dependem da previsibilidade para exportar, importar e financiar suas operações, o aumento da imprevisibilidade geopolítica não é neutro. Ele afeta rotas, custos, prazos e reputações. E cobra, mais do que nunca, a capacidade diplomática de entender o mundo como ele é — não como se gostaria que fosse.
Por onde anda a força retórica de Trump? Em meio a esse cenário, surge um novo ponto de interrogação global: diante da incapacidade de conter a ofensiva russa na Ucrânia e de frear os avanços de Israel sobre o Irã, a retórica trumpista será suficiente para dissuadir a China em relação a Taiwan? Até aqui, Trump é apenas Trump. O resto — inevitavelmente — é geopolítica.
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Por Kaio Cezar de Melo, mestre pelo INSPER e diretor executivo da Braver Corporation, consultoria estratégica especializada em comércio exterior e relações internacionais, com atuação na América Latina, Europa e Ásia. O executivo tem mais de 17 anos de experiência em comércio internacional, supply chain e sustentabilidade. Atuou em empresas como AVON (Natura &Co), GOL Linhas Aéreas, MITSUBISHI e FIESP.