Neste processo de acirramento da repressão, refugiados saíam do país caminhando, de ônibus ou voando, cada qual como podia.
Em 31/05/23 19:38
por Coluna da Sylvia
Sylvia Colombo nasceu em São Paulo. Foi editora da Ilustrada, da Folha de S. Paulo, e atuou como correspondente em países como Reino Unido, Colômbia e Argentina. Escreveu colunas para o New York Times em Espanhol, o Washington Post em Espanhol, e integra os podcasts Xadrez Verbal e Podcast Americas. Entrevistou a vários presidentes da regão. Em 2014, participou do programa da Knight Wallace para jornalistas na Universidade de Michigan. É autora do "Ano Da Cólera", pela editora Rocco, sobre as manifestações de 2019 em vários países da regiõa. Vive entre São Paulo e Buenos Aires, enquanto viaja e explora outros países da Latam
Reprodução Twitter
Às vésperas da eleição para a Assembleia Constituinte de 2017, época de muitos protestos nas ruas e repressão por parte do Estado, cheguei a Caracas para cobrir o evento e, logo ao sair do aeroporto, embarquei numa moto para chegar ao meu hotel. Era o único meio de transporte possível, pois as ruas na região leste da cidade, onde a oposição é mais forte, havia bloqueios armados pelos próprios moradores para enfrentar o avanço das diversas forças a favor do governo (a FAES, uma espécie de Bope, o Sebin, serviço de inteligência, e os colectivos, milícia civil chavista).
Já nas ruas dos bairros populares, castigadas pelos anos de crise, o transporte em duas rodas era o único meio para chegar a zonas mais humildes e completamente vigiadas pelos chamados “representantes do povo”. Além delas, havia apenas os caminhões que cobravam tarifas para levar dezenas de pessoas na caçamba de volta ao lar. O sistema de transporte coletivo, àquela altura, já estava quase colapsado.
Em tempos de ruas vigiadas, manifestações diárias, ataques de gás lacrimogêneo, ataques com pedras, as “guarimbas” (nome dado a esses bloqueios) eram o modo que parte da sociedade encontrava para dormir tranquilos, sem saques ou buscas específicas realizadas pelos serviços de inteligência. Colocando-se na primeira linha de enfrentamento com as forças oficiais, estava um grupo de jovens, de 14 a 20 anos, que integravam o La Resistencia. Eles avançavam com armas caseiras nos protestos, com coletes improvisados a partir de chapas de raio-x, não sem evitar mortos em suas filas e feridos que eram levados para ser tratados em casa, pois os hospitais os denunciavam às autoridades.
O ano de 2017 foi o de acirramento de um governo autoritário na Venezuela, e também quando muitos meios de comunicação, organismos de direitos humanos e parte da comunidade internacional passou a chamar a Venezuela de “ditadura”. As coisas já estavam feias desde antes, com perseguição a políticos, opositores e jornalistas. Em 2014, havia ocorrido outra onda de protestos furiosos, que levaram à prisão o líder Leopoldo López, hoje exilado nos EUA.
Neste processo de acirramento da repressão, refugiados saíam do país caminhando, de ônibus ou voando, cada qual como podia.
A Assembleia Constituinte acabou sendo eleita com fraude reconhecida internacionalmente. Na prática, substituiu a Assembleia Nacional eleita em 2015, esta sim considerada a última votação legítima da história recente da história da Venezuela.
Em 2018, Maduro afirma ter vencido eleições em que o comparecimento às urnas foi baixíssimo. A vitória não foi reconhecida pela comunidade internacional, e o líder da Assembleia de 2015, o então desconhecido Juan Guaidó, proclamou que havia um vazio de poder, e que, por conta disso, ele seria o próximo da linha de sucessão. O experimento fracassou. Hoje, Guaidó está ameaçado de morte e também está exilado nos EUA. Em entrevista concedida ao My News, afirmou que via “com muita preocupação a aproximação de governos da região” a Maduro.
Esse processo, que teve início com a virada da posição do governo da Colômbia, com a chegada ao poder do esquerdista Gustavo Petro, em agosto de 2022, teve mais um episódio ruidoso nesta semana, com a surpreendente recepção acalorada de Lula a Nicolás Maduro, no dia anterior da Cúpula dos Presidentes da América do Sul, em Brasília.
Se por um lado se pode entender a iniciativa de diálogo do governo brasileiro com relação à Venezuela, país com o qual o Brasil compartilha mais de 2 mil km de fronteira, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva parece ter passado dos limites com a frase que dirigiu a Maduro diante de jornalistas em que o brasileiro afirmou que a crise da Venezuela era uma questão de narrativa.
E por que não é? É possível dar algumas evidências concretas.
Uma, o Sistema Judiciário da Venezuela, na última década, foi cooptado pelo chavismo. Ao longo dos últimos anos, foram levados a renunciar, presos ou pressionados a exilar-se quase todos os membros da Corte Suprema.
A segunda, o governo dinamitou possibilidades de um referendo revogatório, algo que consta entre as ferramentas constitucionais para remover um governo, caso, em plebiscito, a população rejeite a continuidade de um governo. O próprio Chávez passou por um, vencendo-o. Já Maduro usou o CNE (Conselho Nacional Eleitoral), para afirmar que o recolhimento de evidências realizado pela oposição era irregular, e cancelou a votação em suas vésperas. Hoje, já ninguém fala de usar esse recurso.
É fato que há eleições, mas a maioria delas fraudadas. Quando entrevistei o líder chavista Jorge Rodríguez, hoje líder da Assembleia Nacional, ele me disse que a Venezuela era campeã na realização de eleições entre as democracias da região. De fato, o calendário eleitoral é respeitado, apesar de alguns tropeços, e ainda há referendos e plebiscitos que ocorrem à parte, o difícil é crer nos resultados, porque as votações têm proibida a participação de observadores internacionais e o sistema que costumavam usar, o Smartmatic, admite que houve alterações nas eleições dos últimos anos. Além disso, era possível verificar apenas com a visita aos principais centros eleitorais da capital e outros centros urbanos que muito pouca gente tinha comparecido a votar, diferentemente do que dizia o regime.
Outra razão para dizer que a Venezuela é uma ditadura é que o poder Legislativo foi completamente dominado pelo chavismo. Depois da derrota do regime, em 2015, nunca mais a ditadura cometeu o mesmo “erro” de ter eleições realmente livres. Tanto que, depois da superposição do parlamento de maioria opositora por meio da Assembleia Nacional Constituinte, se realizaram eleições para um novo Congresso em que a oposição foi impedida de participar. Hoje, o parlamento unicameral é formado apenas por deputados governistas.
Ainda, há pelo menos 3 mil presos políticos, a maioria deles confinados, sem julgamento e sem acesso à luz do dia, em locais tenebrosos como La Tumba ou El Helicóide, construções mirabolantes adaptadas a partir do “boom” de obras dos anos de auge do petróleo para cárceres em que a tortura é algo comum. A ONG PROVEA documenta essas prisões de perto.
Desde o início do regime chavista, há, segundo as Nações Unidas, 7 milhões de venezuelanos fora do país. Isso representa 25% da população, o que torna mais fáceis as fraudes eleitorais, uma vez que os opositores ou descontentes no exterior perdem o direito de votar.
Como se não bastassem essas razões, ainda poderíamos elencar o aumento da fome, da pobreza e a degradação das condições de vida de grande parte da população.
Por fim, não há liberdade de imprensa, que foi sendo dinamitada ao longo dos últimos anos, tendo início com a desapropriação dos principais canais de TV privados e arrasado com a imprensa independente por meio de pressões financeiras, prisão e exílio de seus bravos protagonistas. Para a imprensa internacional, cada vez foi ficando mais difícil entrar no país, eram necessárias artimanhas e desvios para qualquer cobertura. Um colega meu, da imprensa espanhola, quase perdeu um olho numa surra aplicada pelas forças do regime enquanto tentava cobrir uma das transições legislativas do regime.
Quando saía de Caracas pelo aeroporto de Maiquetía, naquele ano de 2017, um garoto de 15 anos sentou-se ao meu lado. Tinha um olho roxo e levava apenas uma mochila. Na inocência rebelde que fica evidente em seu modo de falar, ele me contava que havia cedido ao ultimato de seu pai, residente nos Estados Unidos, de ir embora do país caso a Assembleia fosse eleita. Eu dizia a ele que era um privilegiado de poder sair quando as coisas estavam ficando mais feias. E ele me respondeu, “meu lugar é em Barquisimeto (uma das cidades mais populosas do país), defendendo a democracia no meu país”. O menino era um dos integrantes do La Resistencia e, ao ouvir sua história, uma senhora que viajava conosco desenhou um sinal da cruz em sua testa: “Meu filho, um dia isso tudo acaba e voltaremos”.
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