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SOB BOLSONARO

Assassinatos no campo em 2021 batem recorde dos últimos quatro anos

Sob Bolsonaro, a média de ocorrências de conflitos já é a maior da história. No ano passado, 35 pessoas foram assassinadas no campo, 29 somente na Amazônia.

por Por Bianca Muniz e Rafael Oliveira da Agência Pública em 21/04/22 15:35

Os conflitos no campo seguiram acima da média no terceiro ano do governo Jair Bolsonaro (PL). Em seu levantamento anual, “Conflitos no Campo Brasil 2021”, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) registrou 1.768 ocorrências, uma média de 34 por semana. Nos dois primeiros anos de Bolsonaro na presidência, foram computadas 1.903 e 2.054 ocorrências, respectivamente. A média para os 18 anos anteriores, entre 2001 e 2018, é de 1.408 ocorrências de conflitos.

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Os dados, antecipados à Agência Pública, foram lançados nesta segunda-feira, 18 de abril, logo após o Dia Mundial de Luta Camponesa, celebrado ontem. Eles incluem conflitos por terra, água e trabalhistas. As ocorrências registradas pela CPT estão especialmente concentradas nos nove estados da Amazônia Legal: foram 939, o equivalente a 53% do total. Em nível nacional, os conflitos afetaram quase 900 mil pessoas.

Entre as populações mais afetadas estão indígenas, posseiros, quilombolas, sem-terra, assentados e ribeirinhos. Os conflitos foram deflagrados especialmente por fazendeiros, empresários, grileiros, por agentes do governo federal e também mineradoras internacionais e garimpeiros, segundo o levantamento da CPT.

Gráficos: Bianca Muniz (Agência Pública)

A CPT registrou também 35 assassinatos no campo em 2021, 28 deles ocorridos na Amazônia Legal. O número é quase o dobro do registrado em 2020, quando a CPT computou 18 assassinatos. É também o maior número dos últimos quatro anos.

O estado com mais mortes catalogadas é Rondônia, com 11 assassinatos. Cinco das mortes ocorreram no Acampamento Tiago Santos e outras três no Acampamento Ademar Ferreira, que são vizinhos e estão localizados no distrito de Nova Mutum Paraná, na capital Porto Velho. Os assassinados do segundo acampamento eram membros da Liga dos Camponeses Pobres (LCP) e foram mortos em ação policial.

O segundo estado com mais mortes foi o Maranhão, que vive escalada nos conflitos rurais nos últimos anos. Foram registrados nove assassinatos, dos quais três foram de quilombolas. A violência contra essa população no estado governado por Flávio Dino (PSB) também vem aumentando. Só nas comunidades Cedro e Flexeira, na Baixada Maranhense, cinco quilombolas foram mortos entre 2020 e 2022.

Gráficos: Bianca Muniz (Agência Pública)

Sobrevivente de chacina de Pau d’Arco assassinado

Entre as mortes registradas pela CPT com maior repercussão está a de Fernando dos Santos Araújo, assassinado em 26 de janeiro de 2021 com um tiro na nuca. Fernando era um dos sobreviventes e a principal testemunha da Chacina de Pau d’Arco, ocorrida em 24 de maio de 2017, na cidade a 860 km de Belém (PA).

Na ocasião, policiais militares e civis foram apontados como responsáveis pelo assassinato de dez trabalhadores rurais sem terra que ocupavam a fazenda Santa Lúcia, localizada no sudeste do Pará, além de serem acusados de torturas. Fernando viu o namorado ser assassinado e se fingiu de morto para conseguir escapar. Dezesseis policiais foram denunciados por envolvimento na chacina e aguardam julgamento do Tribunal do Júri em liberdade e seguem trabalhando.

À Repórter Brasil, Fernando relatou estar recebendo ameaças de policiais poucas semanas antes de ser morto. Ele já havia sofrido um atentado meses antes, em setembro de 2020, quando foi baleado com um tiro de espingarda no abdômen. Ninguém foi preso por nenhum dos crimes dos quais ele foi vítima.

Fernando era sobrevivente e principal testemunha da chacina de Pau D’Arco, foi assassinado com um tiro na nuca depois de receber ameaças. Foto: Lunaé Parracho (Repórter Brasil)

O assassinato de Fernando não é a única ocorrência relacionada a Pau d’Arco inclusa na base da CPT. Logo no primeiro dia de 2021, o advogado José Vargas Júnior foi preso, acusado de envolvimento em um caso de homicídio. Vargas Júnior é o responsável pela defesa das vítimas e dos assentados da chacina, além de defender indígenas Kayapó. Sua defesa enxerga a prisão como represália pela sua atuação no caso da chacina e em outros que contrariam os interesses de pessoas e grupos econômicos da região.

Os fatos que embasaram a prisão de Vargas Júnior são mensagens de voz em tom jocoso, enviadas por ele ao amigo e sócio Marcelo Borges, que é acusado de ter mandado matar Cícero José Rodrigues de Sousa, presidente de uma associação de epilepsia e candidato a vereador em Redenção (PA). A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) afirmou que provas que inocentam Vargas Júnior foram ocultadas e organizações internacionais condenaram a prisão. Ele passou 25 dias preso e depois ficou um ano em prisão domiciliar. O processo contra o advogado segue tramitando.

Com o caso de Vargas Júnior, a CPT registrou outras cem prisões em contexto de conflito rural em 2021, um aumento de 45% em relação ao ano anterior. A maior parte deles ocorreu em Rondônia. Em 2020, foram 69 prisões computadas.

Além dos 35 assassinatos e das prisões, a organização contabilizou outros casos de “violência contra a pessoa”: foram 27 pessoas vítimas de tentativas de assassinato, 13 de tortura, 75 de agressão e 132 que foram ameaçadas de morte. Além disso, a CPT registrou 108 casos de morte em consequência de conflitos. Somadas, as pessoas vítimas de violência em 2021 são 391 – 71% das quais estão na Amazônia Legal. O número total do levantamento representa um aumento de 38 vítimas em relação a 2020, quando a CPT computou 353 pessoas vítimas de violência.

Registro da invasão de mineradoras dentro das terras indígenas Yanomami. Foto: Chico Batata (Greenpeace)

Em 2021, os casos de violência contra mulheres no contexto de conflitos foram ao menos 53, incluindo dois assassinatos, ambos ocorridos no Maranhão.

O primeiro ocorreu em junho, na cidade de Junco do Maranhão, e foi perpetrado contra a trabalhadora rural Maria da Luz Benício de Sousa, além de seu marido, Reginaldo Alves Barros. O povoado Vilela, onde viviam, já registrara dois homicídios antes, ambos sem solução. Em agosto do ano passado, a polícia prendeu suspeitos de matarem o casal.

A segunda aconteceu em novembro passado e teve como vítima uma quebradeira de coco babaçu que vivia na cidade de Penalva. Maria José Rodrigues e seu filho, José do Carmo Correa Júnior, foram esmagados por uma palmeira derrubada por um tratorista, que fugiu do local. Os familiares e trabalhadores do assentamento onde Maria e seu filho viviam denunciaram que a região sofre com desmatamentos e grilagem.

Os números de violência contra mulheres podem ser ainda mais altos, já que muitos dos casos não têm informações acerca do gênero da pessoa afetada.

Áreas de mineração em Roraima. Foto: Chico Batata (Greenpeace)

Escalada de violência contra os Yanomami 

A cada quatro vítimas de algum tipo de “violência contra a pessoa” registrado pela CPT em 2021, aproximadamente uma era indígena Yanomami. A pastoral computou três assassinatos, 12 tentativas de assassinato e 101 mortes em consequência, relacionadas especialmente ao cerco de garimpo, à contaminação de rios com mercúrio, à proliferação de doenças e à desassistência na saúde pública. Além disso, a entidade registrou três ameaças de morte perpetradas por garimpeiros contra funcionários públicos que atuam na Terra Indígena Yanomami.

A mineração em terra indígena, principal responsável pelos casos de violência, pode ser legalizada pela Câmara dos Deputados, que deve votar o projeto nos próximos dias. Em fevereiro de 2020, a Pública revelou quem seria beneficiado com a mudança na legislação. O presidente Jair Bolsonaro (PL) é um dos principais entusiastas da proposta, criticada por organizações indígenas e por associação de mineradoras.

Para Josep Iborra Plans, da Articulação das CPTs da Amazônia, o governo tem se mostrado permissivo aos ataques em terras indígenas. “Há um incentivo explícito e implícito de um governo que tem tido a maior tolerância com os invasores de terra em áreas indígenas e acenado com a legalização do garimpo nessas terras. Isso tem incentivado muito os invasores e a invasão clandestina, de garimpo e também de desmatamento e grilagem de terras”, diz.

Garimpo e mineração influenciam escalada de violência em terras indígenas. Foto: Chico Batata (Greenpeace)

Em setembro de 2021, a Pública levou ao ar duas reportagens sobre o impacto do garimpo e da ausência estatal no interior da TI Yanomami. Na primeira, detalhamos como o território indígena tem o maior índice de mortes por desnutrição infantil do país. Na segunda, revelamos com exclusividade como garimpeiros ilegais estavam localizados a menos de 12 km de uma aldeia de indígenas isolados dentro da TI. As duas reportagens foram tema do quarto episódio do podcast “Amazônia Sem Lei”.

Apesar de representar parcela relevante, os casos de conflitos e violência envolvendo indígenas não foram exclusividade dos Yanomami. A CPT registrou dez assassinatos de indígenas em 2021, distribuídos em seis estados. Foram, ao todo, 188 indígenas vítimas de algum tipo de violência. Além disso, a CPT contabilizou 367 casos de conflitos envolvendo indígenas, que afetaram ao menos 88.716 famílias em 24 estados. O número representa 10% de todas as famílias afetadas em 2021.

Em 2020, primeiro ano da pandemia, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) já havia registrado o pior índice de assassinatos de indígenas desde 2015.

Conflitos por água 

Em 2021, a CPT registrou 304 conflitos relacionados à água, envolvendo mais de 56 mil famílias. Considerando o cálculo de quatro pessoas por família, são mais de 224 mil afetados. O número de conflitos é mais baixo do que os registrados em 2019 e 2020, mas superior ao levantado pela organização em todos os outros anos da série histórica, iniciada em 2002.

Para Plans, os conflitos por água na Amazônia são explicados pela mineração na região. “Sem os devidos cuidados, isso [a mineração] tem provocado rompimentos de barragem e trazido desastres para comunidades que moram nas beiras do rio. Mas aqui na região amazônica o problema principal é a contaminação por mercúrio, provocada no rio Madeira pela exploração de ouro, que nem sempre é legal.” Para ele, outro ponto de atenção nos conflitos por água é a presença de pesca clandestina, realizada com barcos piratas e sem registro na Marinha, especialmente em Itacoatiara (AM).

As populações mais afetadas por conflitos por água foram ribeirinhos, indígenas, quilombolas, pequenos proprietários, posseiros e pescadores. A maior parte dos conflitos envolveu mineradoras internacionais, empresários e fazendeiros, ocorrendo majoritariamente na Bahia, Pará e Minas Gerais.

Em outubro do ano passado, a Pública esteve na região oeste da Bahia, onde ocorreram vários dos conflitos por água registrados no estado nos últimos anos. A reportagem visitou cidades como Barreiras, São Desidério e Correntina, que aparecem no levantamento de 2021 da CPT. Um dos casos retratados na série é o da comunidade de fundo e fecho de pasto do Buriti, que foi contabilizado pelo órgão no último ano.

A reportagem visitou o oeste baiano para investigar como a concessão de outorgas de uso de água para irrigação, concentrada na mão de fazendeiros ligados a associações e de empresas, vem prejudicando os rios e as comunidades locais. A partir de portarias de concessão que obtivemos, constatamos que, somente na mão de um empresário, há mais de 466 milhões de litros de água autorizados para captação diariamente. As concessões vultosas são dadas pelo órgão ambiental estadual, que foi conduzido pela mesma servidora por mais de uma década.

Pública visitou o oeste baiano em outubro do ano passado e apurou que conflitos por água vem prejudicando os rios e comunidades locais. Foto: José Cícero (Agência Pública)

Na mesma região da Bahia, a CPT contabilizou conflitos por terra de comunidades tradicionais locais contra empresários do Condomínio Estrondo, um enorme latifúndio com tamanho equivalente a duas cidades de São Paulo. Em 2019, a Pública abordou o embate, que continua rendendo episódios de violência.

Trabalho escravo e pandemia

No campo de conflitos trabalhistas, os números de 2021 também são negativos: a CPT registrou 169 casos de trabalho escravo rural que afetaram 2.035 trabalhadores, sendo 64 menores de idade. É a primeira vez que o número de casos ultrapassa a marca de 100 e o de afetados a de 2.000 desde 2014. Os estados com mais casos foram Minas Gerais (51), Pará (27) e Goiás (17). Ao todo, a CPT registrou casos de trabalho escravo rural em 23 estados.

Plans comenta que uma explicação para esse aumento é, em parte, a pandemia. “A situação de crise econômica causada pela pandemia tem levado a uma situação de aumento da fome e da necessidade das famílias. Aí tem feito que mais famílias estejam dispostas a qualquer coisa para comer, para trabalhar, e pessoas dispostas a aproveitar essa situação e explorar a mão de obra”, avalia.

O presidente Jair Bolsonaro já criticou a atuação do Ministério Público do Trabalho (MPT) no combate ao trabalho escravo e já declarou que não vai regulamentar a emenda constitucional que pune com expropriação a propriedade rural que pratica trabalho escravo. A fiscalização trabalhista também foi esvaziada no atual governo.

Plans cita ainda dois novos casos que tornam 2022 um ano tão difícil quanto o anterior: a morte de um casal integrante da Liga dos Camponeses Pobres (LCP), em Porto Velho, e a chacina que matou ambientalistas em São Félix do Xingu, em janeiro.

Ele aponta também as reintegrações de posse, suspendidas durante a pandemia, como um fator potencial para os conflitos no campo. “Na pandemia houve uma liminar do STF que suspendeu as reintegrações, que foi prorrogada até junho. Pode haver uma grande crise humanitária por conta de reintegrações. Isso vai ser um problema muito sério, com muitas famílias desalojadas”, finaliza.

*Colaborou: Matheus Santino

Conteúdo originalmente publicado na Agência Pública e reproduzido em parceria com o MyNews.

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