Coluna Daniel Carvalho de Paula, no MyNews
A cena é recorrente nos shows de Caetano Veloso: após sucessos consagrados de seu repertório, o artista entoa a canção “Deus Cuida de Mim”, do pastor Kleber Lucas. A resposta do público — composto em larga medida por admiradores laicos, progressistas, críticos do fundamentalismo religioso — é fria, por vezes entremeada por vaias. Muitos veem nessa escolha uma provocação deslocada, uma suposta concessão ao bolsonarismo, dado o histórico apoio evangélico à extrema-direita. No entanto, essa leitura é, para dizer o mínimo, apressada e míope. Caetano não cede ao senso comum, mas propõe, pela via da música, uma reflexão profunda sobre escuta, alteridade e a complexidade da experiência religiosa no Brasil.
Reduzir os evangélicos à caricatura do reacionário militante é ignorar a pluralidade real e histórica desse campo e, no atual estado de coisas, incentivar a radicalização à direita de muitos grupos. Kleber Lucas, pastor batista negro, progressista, oriundo de comunidade periférica no Rio de Janeiro, é um exemplo eloquente da riqueza que existe dentro do universo evangélico. Sua trajetória — marcada por pontes entre tradições religiosas, pelo respeito às culturas de matriz africana e pelo compromisso com a justiça social — destoa da retórica de ódio que contaminou setores das igrejas. Quando Caetano escolhe cantar Kleber, ele o faz com plena consciência: não por ignorância sobre a força do bolsonarismo entre evangélicos, mas justamente para resgatar, em meio ao ruído, vozes que dissonam e que são invisibilizadas até mesmo (ou sobretudo) por parte da esquerda.
Há, portanto, um erro estratégico e moral no impulso de vaiar Caetano. Rejeitar a canção e sua proposta é rejeitar o convite a enxergar o outro em sua inteireza, com suas contradições e insurgências internas. Ao zombar da religiosidade popular — sobretudo quando encarnada em sujeitos negros, pobres e periféricos —, setores do campo progressista acabam por reproduzir o elitismo que denunciam e contribuem, inadvertidamente, para o isolamento de milhões de brasileiros. O abandono simbólico das massas evangélicas — tratadas como um bloco homogêneo e retrógrado — é uma das razões pelas quais a extrema-direita tem conseguido monopolizar esse campo. A política, afinal, não se faz só com razão: exige também empatia, imaginação e capacidade de escuta.
Cantar Kleber Lucas em um palco para o público majoritariamente progressista é, da parte de Caetano, um gesto político potente — e perigosamente mal compreendido. Se a esquerda deseja disputar corações e mentes, precisa deixar de lado o conforto da superioridade moral e compreender, com generosidade e estratégia, a religiosidade do povo. Não se trata de aderir ao fundamentalismo, mas de reconhecer que há fé progressista, há espiritualidade antirracista, há evangelhos que libertam — e vozes como a de Kleber que merecem ser ouvidas, não vaiadas. Ao rejeitar esse gesto, o progressismo corre o risco de repetir o mesmo erro de sempre: falar em nome do povo, mas sem escutá-lo de fato.
*Daniel Carvalho de Paula é Doutor em História e professor do curso de Ciências Econômicas da Universidade Presbiteriana Mackenzie
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