MyNews teve a oportunidade de receber a jornalista e é cofundadora do Intercept Brasil para falar sobre a cidade maravilhosa
O MyNews teve a oportunidade de conversar com a brilhante jornalista investigativa, dedicada à cobertura do tráfico de drogas, armas e violência. Cecília Olliveira é cofundadora do Intercept Brasil e diretora fundadora do Instituto Fogo Cruzado. O tema da conversa não poderia ser outro: segurança pública no Rio de Janeiro.
Cecília, aliás, inicia destacando o que considera um dos maiores problemas atuais do Rio de Janeiro: o avanço do tráfico em territórios da milícia e o crescimento do TCP com o Peixão, um dos criminosos mais procurados do país.
R: Vou acrescentar um quarto grande problema que, a meu ver, é o maior do estado: a falta de políticas públicas que tratem a segurança da população como prioridade. Os dados mostram que, entre 2008 e 2021, as áreas dominadas por milícias cresceram quase 400%, enquanto as do Comando Vermelho aumentaram 57%. Ao todo, aproximadamente 20% do território do Grande Rio está sob domínio de algum grupo armado. Isso não é um fenômeno recente, mas resultado de décadas de políticas de segurança pública ineficazes.
O que observamos é um desafio estrutural de violentas disputas pelo controle urbano, que mobiliza mercados ilegais de drogas e armas e envolve corrupção em instituições públicas. Essa expansão ocorre há pelo menos três décadas, então o problema do Rio não é uma facção ou outra, mas um sistema. O Estado pode controlar o avanço do TCP ou do Comando Vermelho, mas isso não mudará a realidade vivida pela população. Para haver mudança, é preciso enfrentar o conjunto: deter a expansão dos grupos armados, retomar territórios, sanear as polícias, investigar homicídios, produzir dados e tratá-los com transparência.
Além disso, a prática de nomear inimigos públicos não é novidade. Ela faz parte dessa política de segurança ineficiente que vigora no estado há décadas. O Rio de Janeiro já teve outros inimigos públicos, como o Peixão, que foram presos ou mortos. Depois disso, o que mudou? Nada.
Nos últimos quatro anos, a população carioca e, principalmente, as autoridades, observam o crescimento e a expansão do Comando Vermelho. Essa facção tomou territórios históricos do Rio de Janeiro que antes eram dominados por milicianos, como a Gardênia Azul, vizinha da Cidade de Deus, e agora busca Rio das Pedras.
R: A série histórica do Mapa dos Grupos Armados mostra o crescimento consistente das milícias até 2021. Isso muda em 2022, quando o CV volta a crescer por dois anos consecutivos. Nos dois casos, enquanto não houver uma política pública voltada para a desarticulação efetiva das redes econômicas que sustentam os grupos armados, conviveremos com essa oscilação, em que, num ano, a milícia cresce mais e, noutro, o CV lidera.
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Essa oscilação também é consequência das escolhas do poder público, que privilegiam operações espetaculares de confronto armado. Ora um grupo é mais afetado, ora outro, mas a estrutura não se modifica. A questão não é somente de conivência policial, mas também da ausência de uma política de segurança baseada em evidências e no enfrentamento sistêmico da corrupção entre agentes públicos.
Recordamos, com Cecília, a entrevista do MyNews com o secretário de Segurança, Victor Santos, sobre sua proposta de cortar o tráfico na parte financeira a longo prazo. Perguntamos se há um plano de curto prazo e trouxemos a declaração do secretário.
R: A fala do secretário Victor Santos aponta para uma abordagem mais estratégica, que seria fundamental, mas não é o que se vê na prática. A política de segurança continua privilegiando o confronto, centrada em operações policiais mal planejadas. Um exemplo disso foi a desastrosa operação de outubro do ano passado no Complexo de Israel. O tiroteio tomou a Avenida Brasil e três trabalhadores foram mortos. Qual a estratégia por trás desse tipo de ação?
Por outro lado, é verdade que não existem soluções imediatas para um problema que se estruturou ao longo de três décadas. No entanto, há caminhos que o governo do estado insiste em ignorar. O melhor exemplo é a ADPF 635. Nas primeiras semanas da decisão proferida pelo ministro Fachin, em média, nove vidas foram poupadas por semana. Em um ano, os tiroteios caíram 23%, e o número de pessoas baleadas, 26%. Essa foi a melhor medida já tomada em termos de segurança pública na história recente do Rio de Janeiro: preservou vidas, inclusive de agentes das forças de segurança, e reduziu o número de balas perdidas e tiroteios. Ou seja, é possível controlar a violência armada no curto prazo.
Enquanto isso, o carioca pede educação e recebe polícia, exige transporte de qualidade e recebe polícia, entre outros exemplos. Agora, Eduardo Paes, prefeito do Rio de Janeiro, anuncia a criação de uma Guarda Municipal armada. Cecília comenta sobre essa decisão.
R: A tendência de responder a questões sociais complexas com mais policiamento tem sido constante no Rio de Janeiro. Os dados do Fogo Cruzado mostram que essa abordagem não gera os resultados esperados em termos de segurança pública. A proposta de uma nova guarda especializada segue o padrão histórico de multiplicação de forças de segurança sem atacar as causas estruturais da violência.
Mesmo com diversas iniciativas baseadas nessa lógica de policiamento para enfrentar todos os males, o domínio territorial de grupos armados só cresceu na região metropolitana. Não será a força municipal que enfrentará essa questão.
Curiosamente, diversos indicadores de criminalidade no Rio estão em queda. Roubos, inclusive de carga, e letalidade violenta estão muito abaixo dos patamares de dez anos atrás. É natural que a população tenha a percepção de que a situação piorou, mas o poder público não pode se pautar por percepções e sim planejar políticas com base em evidências. Talvez por isso, o projeto do prefeito não inclua dados nem indicadores para medir o impacto da nova força de segurança. Como saberemos se deu certo?
Isso não é novidade. É um modelo de segurança que se cristalizou no Brasil. O que o prefeito propõe já existe na Guarda Municipal e no programa Segurança Presente, duas forças que não atuam diretamente no principal desafio do Rio: a expansão dos grupos armados e os conflitos entre eles. Aliás, diferente dos índices de roubo, esse problema está em alta. Os dados do Fogo Cruzado apontam que os tiroteios por disputa de território cresceram mais de 300% em 2024, comparado a 2017.
Por fim, perguntamos a Cecília se o Brasil, especialmente o Rio de Janeiro, um dia deixará de registrar crimes como os que vitimaram Juliana Rangel, baleada na cabeça por policiais rodoviários federais na BR-040 na véspera do Natal, e o comunicador Igor Melo. Antes, a polícia atirava e perguntava depois. Agora, só atira.
R: O Brasil investiga muito pouco. As polícias civil e científica nem sempre têm os meios adequados para resolver crimes. O resultado é que somente um em cada quatro homicídios é esclarecido no Rio — uma das piores taxas do país, cuja média nacional é de 39%. É difícil prever como um caso específico terminará, mas os dados gerais não são animadores.
Ainda assim, acredito que há espaço para avanços. No ano passado, tivemos uma pequena vitória quando o Supremo Tribunal Federal decidiu que o Estado é responsável pela morte ou ferimento de vítimas baleadas em operações policiais. A decisão veio durante o julgamento do caso de um homem morto em 2015, durante uma ação da Força de Pacificação do Exército no Complexo da Maré. O laudo foi inconclusivo, e os ministros decidiram que, mesmo nesses casos, deverá haver indenização. Para não ser obrigado a pagar, o Estado terá que provar que não foi responsável pelo disparo.