Aos 92 anos, deixa legado no Brasil
A morte de Niède Guidon, aos 92 anos, marca o fim de uma era na ciência brasileira — mas não o fim de seu legado. Arqueóloga de formação clássica, doutora pela Sorbonne, Guidon foi mais do que uma especialista em vestígios do passado remoto: ela foi símbolo da tenacidade intelectual que a pesquisa científica exige, especialmente em países onde o investimento em ciência e cultura oscila conforme as conjunturas políticas. Seu nome está intrinsecamente ligado ao Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, cenário de descobertas que colocaram o Brasil no epicentro dos debates sobre o povoamento das Américas.
À frente da Missão Arqueológica Franco-Brasileira por mais de quatro décadas, Niède liderou escavações que trouxeram à luz mais de 1.300 sítios arqueológicos, com vestígios datados em até 100 mil anos — muito além do que previa o paradigma dominante, que situava a chegada do homem às Américas há cerca de 12 mil anos. Suas conclusões, baseadas em rigor técnico e interdisciplinaridade, desafiaram consensos estabelecidos e provocaram reações acaloradas na comunidade científica internacional. Ainda assim, sua insistência inabalável em defender suas evidências, aliada à publicação em revistas científicas e à interlocução com centros de pesquisa europeus, garantiram-lhe reconhecimento e respeito além das fronteiras nacionais.
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Mas o trabalho de Guidon não se limitou ao campo acadêmico. Ela compreendeu que preservar o passado exigia cuidar do presente. Criou o Museu do Homem Americano, fundou a Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM) e lutou com vigor pela proteção da Caatinga e das comunidades de São Raimundo Nonato. Seu esforço não era apenas arqueológico, mas civilizatório: proteger os sítios da Serra da Capivara era, para ela, afirmar a soberania cultural e científica do Brasil, muitas vezes relegada a um lugar periférico nas decisões políticas e nos orçamentos públicos.
Niède Guidon representa a ciência brasileira em sua forma mais resiliente: aquela que, mesmo diante da escassez, da burocracia e do descaso institucional, resiste com elegância e profundidade. Sua trajetória nos lembra que ciência não é luxo nem adereço — é compromisso com o conhecimento, com a memória e com o futuro. Que sua ausência nos sirva de alerta: ou protegemos nossas cientistas e nossos territórios, ou perderemos, com elas, a chance de compreender quem somos.
*Daniel Carvalho de Paula é Doutor em História e professor do curso de Ciências Econômicas da Universidade Presbiteriana Mackenzie
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