Vitória: A história real por trás do filme de Fernanda Montenegro, com Fábio Gusmão Dona Vitória com sua máquina, a que fez história no Rio de Janeiro / Foto: Fábio Gusmão

Vitória: A história real por trás do filme de Fernanda Montenegro, com Fábio Gusmão

Jornalista do Grupo Globo concede entrevista exclusiva ao MyNews e conta história que foi para as telonas em 2025

Neste mês de março, estreou nos cinemas o filme Vitória, estrelado pela atriz Fernanda Montenegro. A produção retrata a história de uma senhora que, cansada da criminalidade, documentou o tráfico de drogas, guardou as gravações em fitas e entregou tudo às autoridades.

Além do filme, a história também foi registrada em um livro, escrito pelo jornalista Fábio Gusmão, do Extra, do Grupo Globo. Em entrevista exclusiva ao MyNews, ele contou como conheceu Dona Vitória e como surgiu a ideia de transformar sua trajetória em um livro.

A origem da matéria e a repercussão

R: “Publicamos um caderno especial no dia 24 de agosto de 2005, contando toda a história. No início, tive dificuldades para escrever sem identificá-la e pedi ajuda ao editor. Foi Otávio Guedes, então editor executivo, quem sugeriu o nome Dona Vitória.

Logo após a publicação, a repercussão foi imensa, tanto no Brasil quanto no exterior. Muitas pessoas me procuraram com perguntas sobre ela, e foi então que decidi transformar a história em um livro. Escrevi em pouco mais de um mês, mas só conseguimos uma editora para publicação em 2006. No livro, além da história de vida dela, também compartilhei minha relação com Dona Vitória.”

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Os primeiros contatos e as fitas que revelaram o crime

Fábio relembrou os primeiros contatos com a história de Dona Vitória, o recebimento das fitas e os desafios até a publicação da matéria.

R: “Descobri o que ela fazia durante uma ronda em busca de uma matéria especial para o Extra de domingo. Em março de 2004, encontrei as fitas na Coordenadoria de Inteligência da Polícia Civil, no Simpol, no Rio de Janeiro. Ela tinha acabado de deixar oito fitas. Um policial, que era minha fonte, comentou: ‘Acabou de vir aqui uma senhorinha. Você não cruzou com ela? Ela deixou mais oito fitas do tráfico na Ladeira dos Tabajaras. Ela filmou os bandidos em ação.’ Pedi para ver as gravações. Quando aumentamos o volume da TV, vimos os homens armados. Nada muito diferente do que já conhecíamos no Rio, mas o fato de ser filmado por uma senhora chamava atenção.

Imagens feitas pela brilhante dona Vitória – Foto: Arquivo Fábio

Quis levar as fitas, mas não permitiram porque a chefe do setor não estava. Disseram para eu pedir autorização diretamente a ela. Depois de mais de duas semanas, ela autorizou que eu assistisse, desde que não publicasse nada antes da investigação ser concluída e que não revelasse sua identidade. Respeitei o acordo. Só conheci Dona Vitória pessoalmente em agosto de 2004, quando a policial Marina, minha fonte, foi transferida e nos apresentou. A partir daí, criei um laço com Dona Vitória. Passei muitas tardes na casa dela, tomando café, comendo biscoito e ouvindo suas histórias.”

A decisão de publicar a reportagem e garantir a segurança de Dona Vitória

R: “Quando entrei no apartamento dela, em agosto de 2004, fiquei impressionado com a proximidade dos criminosos. Logo percebi que não seria seguro publicar a reportagem enquanto ela morasse lá. Nossos encontros seguiram até novembro de 2004. Ela estava sempre irritada porque queria que a matéria saísse logo, mas jamais cogitamos publicar com ela ainda no imóvel. Em uma das conversas, sugeri darmos um tempo até que ela considerasse se mudar.

Livro feito pelo comunicador com o nome escolhido após a idosa deixar sua casa no Rio de Janeiro – Foto: Fábio

Ela só aceitou a ideia em março de 2005. Reunimos os editores e diretores de redação, que concordaram em retomar a história, desde que sua segurança fosse garantida. Oferecemos contato com a Secretaria de Segurança, e as negociações começaram. Ela resistiu a entrar no programa de proteção a testemunhas, mas, com o tempo, passou a considerar a ideia.

Após aceitar o programa, só decidiu sair após vender o imóvel. A venda ocorreu rapidamente, em cerca de 20 dias. No dia 23 de agosto de 2005, a Secretaria de Segurança nos avisou que realizaria uma grande operação no dia seguinte, justamente quando publicamos a reportagem.”

A personalidade de Dona Vitória e a interpretação de Fernanda Montenegro

No filme, Dona Vitória aparece como uma figura divertida, que entra em conflito com a polícia, os vizinhos e outras pessoas. Fábio comentou sobre a convivência com ela e como a atriz Fernanda Montenegro trouxe essa personalidade para as telas.

R: “Nossa convivência sempre foi muito amistosa. Ela só ficava impaciente com a demora para publicar a reportagem. Nunca enxergou perigo no que fazia, o que gerava discussões. Mas, no geral, era bem-humorada e ativa. Gostava de dançar e, às vezes, colocava música enquanto conversávamos. Fernanda Montenegro captou essa essência perfeitamente. Sua interpretação mostra todas as nuances de Dona Vitória: divertida, combativa, melancólica e solitária. Se as pessoas só a conhecessem pelas fitas, não teriam ideia de quem ela realmente era. O mesmo aconteceu com o ator Alan, que me interpretou. Ele fez um trabalho tão preciso que minha família e meus amigos se reconheceram na atuação.”

Ainda existem outras Donas Vitória?

Fábio analisou se há outras figuras como Dona Vitória atualmente.

Fábio com dona Vitória – Foto: Arquivo pessoal

R: “Acredito que existam muitas Donas Vitórias hoje, mas de forma mais diluída, o que dificulta identificá-las. O que diferenciava Dona Vitória era sua narrativa. Hoje, muitas pessoas filmam cenas de violência, mas ela fazia um diário, registrando sua busca por justiça. Otávio Guedes escreveu no prefácio do livro que a história dela não era contada da janela para fora, mas da janela para dentro. E essa foi a grande diferença.”

A violência na Ladeira dos Tabajaras e a falta de segurança pública

No dia do lançamento do filme, o Grupo Globo publicou uma reportagem mostrando que a Ladeira dos Tabajaras continua violenta, em alguns casos até pior. Fábio comentou sobre o problema.

R: “A falta de uma política clara de segurança pública faz com que essas situações se repitam. Após a saída de Dona Vitória, anos depois, houve uma tentativa de instalar uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), que trouxe certa tranquilidade por um tempo. Mas, como acontece em muitos lugares, a violência voltou. Não é um problema apenas do Rio de Janeiro. Outros estados também sofrem com o crime organizado, que se fortalece e exibe seu poder nas redes sociais. Apesar disso, considero que a luta de Dona Vitória foi vitoriosa. Sua denúncia levou dezenas de criminosos à prisão.”

O que pode ser feito pelas autoridades?

Por fim, Fábio analisou o que as autoridades podem fazer para combater o crime.

R: “A situação piorou ao longo das décadas, e cada estado precisa de estratégias diferentes. No Rio, a disputa territorial entre facções causa extorsão sistemática, pois cobram taxas de moradores e comerciantes. Sem uma política de segurança forte, com retomada real de territórios e liberdade de circulação para as pessoas, será difícil mudar esse cenário. Mesmo com dificuldades, acredito que o Estado tem condições de enfrentar o crime, mas precisa de uma estratégia contínua e estruturada para avançar.”, concluiu Fábio Gusmão.

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