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ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS

Cifra de desaparecidos volta ao debate político na Argentina

No último debate eleitoral argentino, no domingo (1), o candidato de ultradireita Javier Milei reacendeu um debate que ocorre na Argentina desde os anos 1970

Em 05/10/23 09:39
por Coluna da Sylvia

Sylvia Colombo nasceu em São Paulo. Foi editora da Ilustrada, da Folha de S. Paulo, e atuou como correspondente em países como Reino Unido, Colômbia e Argentina. Escreveu colunas para o New York Times em Espanhol, o Washington Post em Espanhol, e integra os podcasts Xadrez Verbal e Podcast Americas. Entrevistou a vários presidentes da regão. Em 2014, participou do programa da Knight Wallace para jornalistas na Universidade de Michigan. É autora do "Ano Da Cólera", pela editora Rocco, sobre as manifestações de 2019 em vários países da regiõa. Vive entre São Paulo e Buenos Aires, enquanto viaja e explora outros países da Latam

No último debate eleitoral argentino, no domingo (1), o candidato de ultradireita Javier Milei reacendeu um debate que ocorre na Argentina desde os anos 1970, o da cifra de desaparecidos durante a ditadura militar (1976-1983). Milei afirmou que não foram 30 mil as vítimas do regime, mas sim 8.753.

No dia seguinte, defensores dos direitos humanos, políticos e analistas trataram de dar continuidade a esse debate tão passional que polariza os argentinos. De um modo geral, a direita sempre tenta diminuir essa cifra, enquanto a esquerda segue aferrada ao número de 30 mil.

Durante a gestão de Mauricio Macri (2015-2019), o embate também ocorreu, pois este se posicionou contra a política de repassar verba às associações de direitos humanos, como as Mães e as Avós da Praça de Maio. A pressão da sociedade foi tanta que Macri se moderou e não tocou mais no tema. Sua posição, porém, levou muitos a novamente questionarem a cifra e a pedir o fim dos chamados “currais” de direitos humanos, ou seja, das organizações que ainda buscam a verdade e a reparação dos crimes da ditadura _e a quem a direita em geral é hostil.

Naquela época, porém, Macri não pôde avançar muito com essa posição ao sentir o grande risco de perder apoio político. Afinal, o tema das vítimas do regime ainda é sensível e comove a boa parte da sociedade argentina.

Milei, porém, sem papas na língua, como sempre, volta com essa ideia de “deixar os anos 1970” para trás. Muito mais agressivo do que Macri tentou ser neste tema, Milei não só afirmou que a cifra de desaparecidos é bem menor que a dos 30 mil. Também reforçou que considera a política de direitos humanos um “curral” com finalidades eleitoreiras, e que “nos anos 1970, o que ocorreu foi uma guerra”, com mortes dos dois lados.

Comecemos pelo número de vítimas, o que de fato se sabe sobre isso? Milei está correto ao afirmar que não foram 30 mil os desaparecidos. Este número, que não foi calculado a partir de nenhuma base empírica, na verdade se tratou de um discurso forjado por argentinos exilados na Europa, fugidos da perseguição política, para chamar a atenção para a repressão que corria solta em seu país.

A primeira contagem confiável dos desaparecidos surgiu com os trabalhos da Conadep (Comissão Nacional de Desaparecidos), instituída pela democracia, no governo de Raúl Alfonsín (1983-1989), cuja principal porta-voz é a ativista Graciela Fernández Meijide, mãe de Pablo, um rapaz então de 17 anos, que foi arrancado de seu quarto, diante de todos os familiares, e que nunca mais voltou.

A Conadep contabilizou, nos anos 1980, com a ajuda de outras instituições de direitos humanos, 7.954 casos de pessoas desaparecidas, com nome, sobrenome e circunstância do desaparecimento.

Essa lista, com o tempo, foi sendo aumentada com a revelação de outros casos que vieram à tona nos primeiros anos do período democrático. Logo, o número ultrapassou os 10 mil desaparecidos.

Porém, essa lista sempre foi alimentada por relatos ou denúncias de familiares ou amigos que podiam dar o nome e o sobrenome de alguém próximo que perderam. Mas não contabiliza os sumiços que não foram relatados por medo de uma possível retaliação ou porque, em muitos casos, eliminou-se toda a família na repressão e não sobrou quem pudesse fazer a denúncia.

Há ainda mais indícios de que o número inicial, da Conadep, não era o mais correto. Por exemplo, um deles surgiu de documentos que tiveram o sigilo derrubado por Washington nos últimos quinze anos.

Tratava-se de uma correspondência entre militares argentinos e chilenos, conversando no âmbito da Operação Condor, em que os primeiros relataram aos colegas do país vizinho que já haviam “eliminado 22 mil pessoas ligadas à subversão”, entre os anos de 1975 e 1978. Ou seja, uma informação que veio da boca dos próprios responsáveis pela repressão.

Portanto, nem 30 mil, nem muito menos 8 mil. Há consenso entre historiadores hoje de que o número real deve estar em torno de 20 ou 25 mil. É importante esclarecer a verdade e contar a história como ela é. Mas lembremos que, nesse estica-e-puxa em que vivem esquerda e direita argentinos, uns jogando a cifra de desaparecidos para cima e outros, para baixo, não há por onde justificar os horrores da ditadura. Se fossem mil ou 500 ou 100 os desaparecidos, por exemplo, o período continuaria sendo nefasto.

Quanto à afirmação de Milei sobre ter havido uma “guerra” nos anos 1970, e que não só os militares que tivessem cometido “abusos” deveriam ser punidos, mas também “os montoneros e o ERP (guerrilhas marxistas urbanos)”, existe uma verdadeira má-fé.

Milei praticamente repetiu letra por letra uma frase do comandante da Marinha da ditadura, Emilio Massera, que dizia que “houve uma guerra, e nessa guerra, forças do Estado cometeram excessos”.

Milei, como muitos antes dele, crê que a violência política deve ser interpretada da mesma forma, como se os crimes de civis pudessem ser equiparados a crimes de Estado.

Milei passa por cima de tratados internacionais, dos quais a Argentina é signatária. O Estatuto de Roma, por exemplo, estabelece que apenas a violência do Estado é um crime de lesa humanidade e que por isso não prescreve nunca, e que delitos cometidos por civis prescrevem depois de um tempo.

Do jeito que Milei expõe, não teria havido condenação a montoneros ou membros do ERP, o que não é verdade. Nos anos 1980, após a redemocratização, dezenas deles foram presos. Após os indultos concedidos por Carlos Menem (1989-1999), a maioria foi liberada, assim como muitos cabeças das Forças Armadas. Quando os julgamentos foram retomados, durante o período dos Kirchner, já era tarde demais para julgar ex-guerrilheiros, por conta da prescrição de seus delitos e o foco ficou nos militares, porque seus crimes são considerados de lesa humanidade.

Mas, talvez, o pior erro de Milei tenha sido dizer que “não há mais que discutir a história, viemos para governar”. Um povo sem memória fica vulnerável a incorporar discursos negacionistas e a perder seu senso crítico sobre os rumos de seu país.

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