No dia do aniversário de 87 anos do primeiro parque nacional do Brasil o presente é um incêndio
por Nogueira Gonçalves em 20/06/24 10:44
No dia 14 de junho passado, data em que se comemorava os 87 anos de criação do primeiro parque nacional do país, o Parque Nacional do Itatiaia (PNI), um incêndio de causas ainda não oficialmente conhecidas consumiu cerca de 200 hectares de vegetação nativa na parte alta, o chamado Planalto do Itatiaia, região onde ficam alguns dos pontos mais altos do Brasil, como o pico das Agulhas Negras (2791m) e as Prateleiras (2539m). O que se viu foi o Parque Nacional do Itatiaia em chamas.
A vegetação atingida são os chamados campos de altitude, um dos ecossistemas que compõem a Mata Atlântica e que ocorrem no topo das cadeias de montanhas mais altas do sudeste brasileiro, como a Serra da Mantiqueira e a Serra do Mar, geralmente acima de 1800 metros de altitude. Os campos de altitude são considerados “relíquia vegetacional” porque são remanescentes de uma vegetação que dominou grande parte do continente sul-americano na última era glacial, há cerca de 10 mil anos atrás. Porém, com o aquecimento natural do planeta e a expansão das florestas, essa vegetação foi ficando cada vez mais isoladas nos locais do continente onde o clima ainda é parecido com o do passado: os topos das montanhas. Não é coincidência o fato de algumas áreas da Patagônia e da Cordilheira dos Andes possuírem um aspecto parecido. Na verdade, alguns gêneros e espécies de plantas ocorrem tanto lá quanto cá, comprovando a origem em comum desses campos.
Os campos de altitude muitas vezes são confundidos com áreas que foram desmatadas, como ocorre com frequência em altitudes mais baixas, como os pastos de braquiária (capim africano muito utilizado em pastagens e altamente invasor em ecossistemas nativos). Porém, trata-se de uma vegetação campestre natural, refúgio para muitas espécies de plantas ameaçadas de extinção e de grande potencial ornamental e hábitat de diversos animais silvestres, como o Lobo-Guará e a Onça-Parda. Além disso, fornecem importantes serviços ecossistêmicos, funcionando como caixas d’água naturais, uma vez que grande parte de importantes rios brasileiros têm suas nascentes nesses ecossistemas. É o caso, por exemplo, do Rio Paraíba do Sul, que nasce nos campos de altitude da Serra da Bocaina e também tem nascentes no PNI e que abastece o Vale do Paraíba Paulista e 80% do estado do Rio de Janeiro, e o Rio Grande, que possui suas nascentes no maciço do Itatiaia e corta os estados de Minas Gerais e São Paulo até desaguar no Rio Paraná, gerando grande parte da energia hidrelétrica do país no caminho. No caso específico do PNI, os campos de altitude do planalto formam um dos principais remanescentes desse tipo de vegetação. O pesquisador aposentado do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, Dr. Gustavo Martinelli, verificou que cerca de 11% das plantas encontradas lá são localmente endêmicas, ou seja, não ocorrem em nenhum outro local. O Biólogo Dr. Izar Aximoff contabilizou mais de 700 espécies de plantas no planalto do Itatiaia. Na minha pesquisa de doutorado, chegamos a encontrar 20 espécies de plantas em apenas 1 metro quadrado de campo de altitude.
Ao contrário do Cerrado, onde o fogo faz parte do processo evolutivo e que, bem manejado, contribui para a manutenção da biodiversidade, ainda sabemos muito pouco sobre o efeito do fogo sobre os campos de altitude. Fogo espontâneo sobre esses campos é um evento possível, porém raro. Em sua maioria, ocorre depois de longos períodos secos, como os meses de inverno. Os raios que precedem as primeiras tempestades da primavera/verão podem causar a combustão da biomassa extremamente seca. Contudo, o fogo não tende a se espalhar tanto, uma vez que após os raios, cai a chuva que o controla naturalmente.
Não foi o caso ocorrido no último dia 14 no Parque Nacional do Itatiaia. Acabamos de entrar na temporada seca e não houve nenhuma tempestade na montanha que pudesse ocasionar o fogo natural.
A administração da Unidade de Conservação informou que serão realizadas perícias no local para apurar a origem do incêndio. Mas um fato tem chamado a atenção dos frequentadores do parque: nos dias 13 e 14 de junho, este último exatamente a data de início do incêndio, estava acontecendo um treinamento dos cadetes da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) na parte alta do parque, e o acesso de turistas estava proibido. Ou seja, no momento em que incêndio começa, apenas os militares do Exército estavam no local. Imagens da câmera de monitoramento do parque mostram às 14:08h a fumaça do início do fogo ao lado do comboio do Exército. Na sequência, os caminhões vão embora e o fogo se alastra, consumindo o equivalente a 200 campos de futebol entre o Morro do Couto e a Pedra do Camelo, tendo sido controlado por brigadistas e voluntários nos dois dias seguintes. Tem circulado nas redes sociais um vídeo de Brendon Ericles, guia de montanha e voluntário no combate ao incêndio, em que ele mostra uma conversa de Whatsapp na qual um militar que estava em um dos caminhões diz que acendeu um fogareiro para preparar um macarrão instantâneo enquanto espera o retorno dos cadetes.
Além de apurar a causa do incêndio, outro detalhe importante e que cabe à gestão da Unidade de Conservação esclarecer é que, segundo o Protocolo Operacional de Visitação do PNI (PROV 01/23), o parque não poderia ser utilizado pelos militares entre os dias 10 de junho e 15 de agosto, período de alta temporada turística.
Lucas Nogueira Gonçalves é biólogo, mestre e doutorando em ecologia
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