“A pandemia fez perceber que não tinha controle de nada, exceto da minha alimentação e do corpo”, mulheres relatam como a Covid agravou casos de anorexia e bulimia
por Carina Gonçalves em 01/06/21 14:48
Instabilidade extrema, falta de controle sobre o que acontece, solidão, convivência extrema com si própria e o espelho, tempo demais nas redes sociais. Isso descreve a vida da maioria dos brasileiros há mais de um ano, mas para as pessoas que enfrentam transtornos alimentares esta é também a descrição de tudo aquilo que tira seu sono e pode disparar a doença – e tornar a pessoa ainda mais vulnerável ao coronavírus.
A estudante baiana Mia, de 21 anos, sentiu no corpo isso tudo: desde o começo da pandemia, passou de 70 kg para 41 kg, com seus 1,64 m de altura. Seu quadro de anorexia, que estava sob controle havia anos, voltou com tudo com o início da pandemia. E quando contraiu a Covid-19, a situação piorou. “Cheguei ao ponto de emagrecer religiosamente cerca de 2 kg por dia”, conta.
Enfraquecida, ela teve dificuldade para se recuperar da doença. Mesmo em repouso e tomando os remédios recomendados por cerca de 15 dias, sempre que parecia melhorar, os sintomas voltavam. Mesmo não conseguindo ficar de pé, relata que “estava feliz internamente”, pois apesar de estar se sentindo mal o seu corpo estava magro.
Mia é uma entre muitas. Um estudo da Clínica Schoen Roseneck, na Alemanha, com pacientes com transtornos alimentares que tiveram alta em 2019, mostrou que 41,5% tiveram piora nos sintomas. Já na Austrália, um estudo revelou um surto de anorexia nervosa entre crianças no início da pandemia. No Brasil, nenhum estudo foi feito sobre o tema, mas relatos como o de Mia mostram que o problema está rolando por aqui também.
Outro indício do problema é o aumento de outros transtornos mentais, que mais que dobrou com a crise de saúde, segundo uma pesquisa da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Nesse cenário, as mulheres estão sendo as mais afetadas: 40,5% das mulheres ouvidas por uma pesquisa Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, relataram sintomas de depressão; 34,9% de ansiedade e 37,3% de estresse.
E quando o assunto são transtornos alimentares, mulheres também são as mais afetadas. São 9 mulheres para cada homem com anorexia e os motivos ainda estão sendo investigados pela ciência, mas a pressão dos padrões estéticos ligados a gênero está entre eles. “A cultura do corpo perfeito pertence a uma representatividade de sucesso e competência. Tudo isso estimula a adoção de comportamentos alimentares inadequados, que podem contribuir para a instalação do quadro clínico dessas doenças”, explica a psicóloga e membro da Associação Brasileira de Transtornos Alimentares (ASTRAL) Mireille Almeida.
Apesar das distorções de imagem, os distúrbios alimentares não estão associados somente a questões estéticas, mas a uma série de fatores psicológicos e biológicos. As especialistas ouvidas pela reportagem contam que um deles é a necessidade de controle.
As pessoas com transtornos alimentares sentem a necessidade de controlar algo quando tudo em volta está instável, o que torna o alimento a sua única forma de domínio sobre a realidade. Imagine como isso não fica na pandemia. “Durante o isolamento foi muito complicado, só intensificou, principalmente, por não ter tantas atividades; minha cabeça se voltou para controlar e pensar 24 horas na comida”, relata a paulistana Marcella Brincaccio, de 20 anos, que havia acabado de passar na Unicamp e dde terminar um relacionamento abusivo.
“Eu tinha acabado de entrar na faculdade dos meus sonhos e começou a pandemia, imagina a frustração de quem fez cursinho, passou e não pôde aproveitar a faculdade. Isso me fez perceber que não tinha controle de nada, exceto da minha alimentação e do corpo”.
A solidão e a falta de apoio aparecem também entre os motivos citados pelas entrevistadas para a volta dos transtornos. “Acho que conviver demais comigo mesma me fez voltar a ver o que eu via em mim antes. Muito tempo sozinha, mais tempo com o espelho, saí da terapia e essas coisas. Eu só voltei a comer depois que peguei covid”, conta Mia.
O agravamento dos casos de saúde mental durante o isolamento também está relacionado com os transtornos alimentares, conforme explica Cristiane Seixas, psicóloga e professora da UERJ. “Todo transtorno alimentar vem acompanhado de uma dificuldade para lidar com as emoções, as relações familiares e sociais que vêm tanto de antes dele quanto em sua decorrência”.
Ela também relata como consequência deste problema um “empobrecimento maior da vida”, pois os pensamentos giram em torno da comida e do peso. “Então imagine estar trancado em casa apenas com ideias “o que vou comer?” e “como evitar de engoli-lo?”, com todas as mudanças que estavam ocorrendo ao redor destas pessoas”.
Tratar um distúrbio alimentar no Brasil não é fácil. Caso a pessoa procure por internação, o AMBULIM, no Hospital das Clínicas em São Paulo, é a única clínica no Brasil inteiro especializada em transtornos alimentares e que oferece tratamento gratuito e, por isso, tem uma fila de espera. “Por falta de opção, geralmente as pessoas se internam em clínicas gerais, que podem não ter profissionais especializados no tema”, conta a psicóloga Mireille Almeida.
A ASTRAL coleta informações sobre a quantidade de profissionais especializados em transtornos alimentares e a sua localização no Brasil. Conforme os dados atualizados em setembro de 2020, existem no país 20 lugares públicos e 27 privados para tratamento, com enorme concentração geográfica.
Além da concentração geográfica, faltam profissionais. São apenas 551 em todo o país e é importante destacar que o tratamento é multidisciplinar, envolvendo nutricionistas, psicólogos, psiquiatras e outros.
Existe ainda a questão da renda no acesso ao tratamento. Como mais da metade das clínicas com tratamento são privadas, o acesso para a população de baixa renda é limitado. “O tratamento pelo serviço privado é muito caro, porque precisa ter três profissionais (nutricionista, psicólogo e psiquiatra), e, como são quadros muitas vezes graves, os atendimentos precisam ser frequentes e muitas vezes não é possível fazer um atendimento por mês, por exemplo”, diz nutricionista e doutoranda da UERJ Carolina Coutinho.
Com a pandemia e o isolamento social, este cenário se agrava. “Este último ano tem sido bem tenso de maneira geral para nós psiquiatras que tratamos transtornos alimentares, ansiedade e depressão. Tem sido muito intenso e a procura bem maior”, relata a psiquiatra Mireille Almeida. O mesmo ocorreu para a nutricionista Carolina: “num primeiro momento, observei uma redução nos atendimentos, mas logo em seguida um aumento da procura”, diz ela. Ambas as profissionais estão prestando atendimento online e presencial.
A baixa quantidade de acesso a atendimento e a profissionais da área ocorre também pela falta de estudos sobre o tema. A questão não tem recebido tanta atenção, o que acaba fazendo com que não haja pesquisas de base populacional que mostre a quantidade de casos de pessoas com este problema no país e com que não se criem políticas públicas para suprir demandas locais para tratamento. “Isso é um problema muito grave, pois normalmente as políticas públicas são formuladas através de dados epidemiológicos a partir da identificação de determinadas demandas de saúde que são muito prevalentes e muito significativas”, relata a nutricionista e doutoranda da UERJ Carolina Coutinho.
Com risco de contágio e isolamento social, a principal alternativa de tratamento tem sido o atendimento online. Na procura por acompanhamento profissional, apesar de morar hoje nos Estados Unidos, G.S., de 20 anos, uma estudante brasileira de psicologia na Universidade comunitária de Triton College que preferiu não se identificar, está fazendo tratamento por videoconferência com um médico brasileiro. Esta opção surgiu porque no país onde mora os preços para consultas na saúde são muito caros. Ela tem anorexia e bulimia desde os 12 anos, mas estavam sob controle até entrar na fase da pandemia.
Ela estava com 70 kg em março de 2020 e em janeiro de 2021 chegou a 59 kg. A sua rápida perda de peso, de acordo com ela, ocorreu pelo uso de um medicamento psiquiátrico. No começo, experimentou o remédio das crianças em seu emprego de babá, e acabou se tornando um vício. Além dele, passou também a fumar tabaco e maconha e a ingerir bebida alcoólica em um quadro de dependência química.
Com o tratamento, porém, as coisas melhoraram. Ela conta que há mais de seis meses não se pesa na balança e está comendo de maneira mais saudável. Apesar das recaídas de vez em quando, não está mais contando calorias, mesmo olhando sempre atrás da caixa para consumir alimentos menos calóricos e sentindo que engordar ainda gera um sentimento de pavor. “O triste é saber que isso não tem cura, sabe? Sempre terei que estar de olho e tomando cuidado com possíveis gatilhos deste problema.”
Como ela, Mia e Marcella seguem com acompanhamento profissional e apoio da família na recuperação. “Não quero mais perder peso, inclusive tenho ganhado um pouco. Tenho entendido bem mais a fundo essa relação do peso, autoestima e autoconhecimento”, diz Marcella.
Errata: A reportagem foi alterada para anonimização de uma das entrevistadas.
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