Cultura

Corrida pelas vacinas

Como o início da vacinação contra a Covid-19 reflete a desigualdade entre os países

Reino Unido e EUA devem imunizar parte da população nos próximos dias. Em outros países, como o Brasil, ainda não há previsão

por Hermínio Bernardo em 08/12/20 09:46

Atualizado às 09h00 de 8.dez.2020

Enquanto os brasileiros ainda não sabem ao certo quando poderão se vacinar contra a Covid-19, outros países já iniciam a imunização de suas populações.

O Reino Unido, por exemplo, começou nesta terça-feira (8) a vacinar a população contra o coronavírus. A dose desenvolvida pela Pfizer e BionTech é disponibilizada pelo NHS, o serviço público de saúde britânico. No primeiro momento, a prioridade é imunizar pessoas do grupo de risco, como idosos, e pessoas que trabalham na área da saúde.

Essa é a primeira vacina disponível no mundo com estudos divulgados que comprovam a eficácia da imunização, que chegou a 95%. Rússia e China também já iniciaram a vacinação de suas populações, mas de doses ainda sem dados conhecidos.

Após o Reino Unido, os Estados Unidos devem ser os próximos a iniciar a imunização, também com as doses produzidas por Pfizer e BionTech. O chefe do programa de vacinas contra a Covid-19 dos Estados Unidos, Moncef Slaoui, afirmou que as doses devem começar a ser aplicadas no próximo dia 11. Ainda resta a aprovação de uso emergencial por um comitê do governo americano que vai se reunir no dia anterior.

A Alemanha também já se prepara para distribuir as mesmas doses de Estados Unidos e Reino Unido. O governo alemão está criando centros de vacinação em diferentes regiões do país e planeja iniciar a imunização ainda em dezembro. O maior desafio é a logística, já que a vacina da Pfizer/BionTech precisa ser armazenada a -70ºC, o que requer um congelador especial.

Vacinação e desigualdade

Os primeiros países a vacinar contra a Covid-19 são aqueles com capacidade interna para desenvolvimento de vacinas. Logo, são as nações mais ricas.

Um levantamento feito por pesquisadores do Global Health Innovation Center, da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, mostra que as vacinas contra a doença não serão distribuídas de maneira igualitária.

Os países de alta renda representam mais da metade de todas as compras confirmadas, além de acordos para comprar mais doses que a própria população. O Canadá, por exemplo, tem nove vezes mais doses que população. Austrália e Reino Unido garantiram cinco doses para cada habitante, enquanto os Estados Unidos devem ter três doses para cada americano.

A microbiologista, presidente do Instituto Questão de Ciência e pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, Natalia Pasternak, afirma que essa desigualdade existe porque esses países mais ricos puderam se planejar.

“São países que se planejaram e fizeram acordo e, claro, têm poder aquisitivo para comprar vacina. Um certo nível de desigualdade certamente existe, os países que têm certo poder de barganha vão conseguir fazer mais acordos com mais empresas”, afirma.

Teste para identificação a Covid-19 realizado pela Fiocruz
Teste para identificação de Covid-19 realizado pela Fiocruz. Brasil está atrasado em planejamento para recebimento de vacinas em relação a outros países.
(Foto: Itamar Crispim/Fiocruz)

A microbiologista também destaca a iniciativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) em criar a Covax, uma aliança que visa distribuir vacinas para países de menor renda. O Brasil integra essa aliança.

“É uma das iniciativas necessárias para termos uma distribuição global de vacinas. A ideia é muito boa, todos os países-membros vão ter acesso a um portfólio de vacinas. Assim que elas forem aprovadas — de acordo com eficácia e segurança —, os países vão receber as doses necessárias para vacinar até 20% de sua população. Quando todos os membros forem contemplados, os países vão poder pleitear mais doses. É uma tentativa que pode funcionar para distribuir com mais equidade”.

O médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, fundador e ex-presidente da Anvisa, acredita que as pessoas mais ricas serão imunizadas primeiro.

“Em um curto espaço de tempo, não sei quanto, vai ser permitida a comercialização. Então, quem tiver dinheiro vai comprar a vacina. A vacina russa e a vacina chinesa estão sendo vendidas em Dubai. Quem tem dinheiro, vai até Dubai e toma a vacina russa ou chinesa. Quem tem dinheiro vai ter a vacina, o importante é garantir para quem não tem dinheiro. E isso é função do Estado, do governo.”

E a vacinação no Brasil?

No Brasil ainda não há uma data prevista para o início da imunização. O governo federal tem acordo com a Universidade de Oxford e o laboratório AstraZeneca, mas houve um atraso de pelo menos dois meses. Os testes com a vacina foram suspensos em setembro, o que impediu o pedido de uso emergencial que inicialmente estava previsto para ocorrer entre novembro e dezembro. A expectativa é de que o pedido aconteça até fevereiro de 2021.

O governo federal, que chegou a indicar que não faria acordo com a Pfizer e destacou a dificuldade de armazenar as doses em temperaturas tão baixas, avançou em tratativas com o laboratório americano para a compra de 70 milhões de doses da vacina. Outros países latinos, como Peru e Chile, também negociam a compra de doses da vacina da Pfizer.

Para Pasternak, houve uma falta de planejamento por parte do governo brasileiro para garantir uma variedade de vacinas.

“O Brasil resolveu apostar todos os ovos na mesma cesta quando fez o acordo com a Universidade de Oxford e a AstraZeneca e segue ignorando o acordo com a Coronavac [desenvolvida pela China], o governo federal finge que ela nem existe. Fazendo um único acordo para 140 milhões de doses — o que nem é suficiente para vacinar nossa população —, o Brasil deixou passar a oportunidade de fazer acordos com outras empresas, sabendo que não é com uma única vacina que vamos imunizar toda a população”.

A especialista prossegue, apontando que problemas de logística não deveriam ser empecilho para o governo federal descartar a vacina desenvolvida pela Pfizer.

“O Brasil é muito grande e não vai dar para transportar para regiões mais remotas, mas isso não descarta que ela seja usada em grandes metrópoles e grandes centros que tenham condição de comprar os equipamentos necessários para armazenar. Faltou planejamento para ter mais diversidade, porque só temos acordo com uma empresa e demos azar de atrasar os resultados, o que acontece e é previsível”.

A infectologista Rosana Richtmann, do Comitê de Imunização da Sociedade Brasileira de Infectologia, ressalta que o governo deve garantir as doses para a população. Ela acredita que a rede particular não terá acesso às vacinas em um primeiro momento.

“Estamos num cenário de emergência sanitária, então a vacina deve ser gratuita e isso é uma função do Estado. Não vejo, num primeiro momento, que a rede particular consiga adquirir vacina. Eu diria às pessoas que, assim que tivermos uma vacina disponível, devem aderir às campanhas. Não espere outra vacina por achar que uma seja melhor que outra porque nós não temos nenhum prazo para isso. A melhor vacina é aquela que eu tenho hoje, tenho algum dado e está disponível. As clínicas privadas vão ter vacinas em algum momento, mas acho pouquíssimo provável que seja nesse momento inicial e está certo. Isso é uma ação de governo e todo mundo tem que ter direito gratuitamente”, declarou.

Casos no Brasil e prevenção

Os casos de coronavírus seguem com tendência de alta no Brasil. Dados do consórcio de veículos de imprensa mostram que a média móvel de novos casos é a pior desde agosto. Estados e municípios voltaram a anunciar medidas restritivas. No total, mais de 175 mil brasileiros já morreram de Covid-19 e o país registra cerca de 6,5 milhões de casos.

Enquanto a vacina não chega ao público brasileiro, Natalia destaca a importância das medidas de prevenção contra o vírus. Isso justamente em um momento no qual a população já baixa a guarda nesse quesito e às vésperas das festas de fim de ano.

“Vamos redobrar a atenção, ainda mais que as pessoas estão cansadas, angustiadas, ansiosas para se reunir e ver seus familiares. Mas é nesse momento que temos de garantir que nossos familiares estejam vivos no ano que vem”.

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