Para Clara Marinho, com a redução das despesas discricionárias, espera-se que as propostas sobre revisão e flexibilização das despesas primárias ganhem tração
Com a forte redução das despesas discricionárias a partir de 2027, espera-se que ganhem tração propostas sobre revisão e flexibilização das despesas primárias. Dado o histórico recente do debate público, elas tendem a se dividir em dois grupos: um de cunho fiscal, com atenção particular à sustentabilidade da dívida; e outro ancorado nos instrumentos da administração pública, com referência na entrega de bens e serviços à população.
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O primeiro grupo de propostas deve mirar reformas no financiamento da seguridade social e da educação, entre outras políticas públicas com vinculações constitucionais e legais. Hoje, esses gastos representam mais de 90% do orçamento da União, sendo protegidos de cortes nos eventuais esforços fiscais. Propostas assim costumam contar com o apoio do mercado, dado seu amplo interesse no tema. Seu desafio é convencer a população e o sistema político de que essa reorganização faz sentido, ao assumir que cortes de gastos levam à redução do endividamento público sem prejudicar o crescimento econômico.
O segundo grupo de propostas se concentra em ajustes incrementais, focados no redesenho das políticas públicas, em que a economia de recursos transita de forma dinâmica como pressuposto e resultante delas. Seu desafio é convencer o mercado e o sistema político de que é possível azeitar as engrenagens institucionais dos Ministérios sem grandes choques, gerando melhoria no resultado fiscal e crescimento, ao mesmo tempo em que a população é beneficiada.
O melhor dos mundos seria que as pessoas que elaboram soluções de um ou outro grupo pudessem dialogar. Isto é, que aqueles que transitam na Faria Lima ouvissem quem pisa no chão do Vale do Ribeira (SP), de Cumaru do Norte (PA) ou de Mutum (RS), e se sentissem igualmente convidados a conhecer essas realidades. E que aqueles que operacionalizam e defendem as políticas públicas setoriais compreendessem melhor a big picture dos desafios macroeconômicos e fiscais, formulando modelos de financiamento ainda mais aderentes à realidade do país.
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Ocorre que os trânsitos são restritos. E à medida que vai se aproximando o período eleitoral, outro risco se avizinha: com adversários políticos cada vez mais transformados em inimigos, consensos mínimos sobre as especificidades de uma reforma do gasto ficam ainda mais difíceis.
Nesse sentido, o debate sobre o orçamento e o financiamento das políticas públicas está sujeito a uma fragmentação ainda maior no futuro próximo, evidenciando as próprias limitações de “pensar na caixa”. Ocorre que propostas de caráter exclusivamente fiscal tendem a se chocar com as demandas mais imediatas da sociedade. Ao mesmo tempo, soluções elaboradas a partir da lógica específica de cada setor de intervenção estatal são propensas a superestimar os próprios desafios, em detrimento da compreensão do todo.
Assim, é crucial que sejam criados espaços de formulação em que aspectos econômicos e sociais sejam debatidos de maneira construtiva. Promover fóruns que contemplem sujeitos sociais e instituições de diferentes segmentos é um importante passo para romper as dualidades entre o “econômico” e o “social”, entre “fiscalidade” e “equidade”.
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O diálogo e a cooperação não são meros gestos simbólicos, mas pré-condições para a construção de consensos que viabilizem, técnica e politicamente, a transformação do orçamento público. Ignorar a necessidade de conciliar sustentabilidade fiscal com as demandas sociais e territoriais pode nos levar à adoção de medidas impopulares e com alto custo político.
Ainda que eventuais medidas fiscalistas prosperem, elas podem provocar novas distorções alocativas, aprofundando as dissonâncias entre as expectativas da população e a capacidade de resposta do Estado. Nós já sabemos bem como esse filme se desenrola. E para onde um enredo semelhante pode nos levar.