62% dos municípios brasileiros não contam com cobertura jornalística, quem mais sofre é a população local
por Luiz Henrique Matos em 07/12/20 00:42
Quando você soube da crise energética no Amapá — o maior blecaute já ocorrido no país — fazia quantos dias que o estado estava às escuras? Das 16 cidades do estado, 13 ficaram sem energia elétrica. O problema começou na noite do dia 3 de novembro, uma terça-feira, mas foi só próximo do final da semana que tomou parte do noticiário nacional com vídeos e postagens de cidadãos em redes sociais denunciando a condição em que se encontravam. De acordo com o Atlas da Notícia, projeto realizado pelo Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor) em parceria com o Volt Data Lab, em 9 dos 16 municípios do Amapá não existe sequer um veículo de comunicação em funcionamento. A maior parte do estado passou dias em condição de calamidade e mais da metade das cidades não tinha profissionais locais fazendo a cobertura para prestar informações à população.
O jornalismo local é um serviço essencial que está sob ameaça no Brasil. Cresce a cada ano o número de cidades que não contam com a presença de nenhum veículo jornalístico. São os chamados desertos de notícias. De acordo com o estudo, estamos falando em 62% dos municípios brasileiros, o que deixa 18% da população nacional sem acesso aos fatos e eventos cotidianos ou informações sobre serviços locais.
Se forem somados a esse número os municípios que contam com a presença de apenas um ou dois veículos – os quase desertos, que também representam um indicador preocupante – chega-se a 81% de municípios com escassez de cobertura jornalística sendo feita por veículos de rádio, impressos, televisão ou online.
Finalmente, outro indicador crítico é a concentração de veículos nas regiões Sul e Sudeste do país: 65% segundo o levantamento. Os locais mais pobres e com menor acesso à educação no Brasil são também os mais carentes em acesso à informação local. Ainda que não seja possível provar uma relação direta entre um indicador e outro, as cidades com maior oferta de jornalismo local apresentam também melhores resultados nos índices de desenvolvimento humano.
Apoiar o jornalismo local significa combater diretamente a falta de transparência sobre dados públicos e funciona como instrumento para reduzir o nível de desinformação em diferentes escalas. Cidadãos bem informados sobre o que se passa em seu entorno votam com mais consciência, se mobilizam em favor de pautas de bem comum e são capazes de prestar apoio mais efetivo às suas comunidades.
O problema é profundo. Ao longo dos últimos anos, a situação econômica do país, as mudanças no comportamento de consumo de conteúdo por parte da população (cada vez mais digital) e transformações nos modelos de negócios para essa indústria, que antes eram ancorados na venda de publicidade e classificados, contribuíram para o fechamento de muitos veículos que se propunham a fazer a cobertura do noticiário nesses locais. Mas a despeito dos fatores econômicos e sociais que atrapalham o desenvolvimento desses empreendimentos, existe também um grande desafio cultural nas empresas de mídia. A atualização profissional, a absorção de novas habilidades e disciplinas e a transformação do negócio em um serviço digital estão entre as áreas de foco que muitos veículos existentes carecem.
“Democracy dies in darkness” (“a democracia morre na escuridão” em tradução livre), é o slogan do jornal Washington Post. E o jornalismo local tem papel fundamental em ser o holofote que permite à sociedade conhecer e enxergar os fatos para realizar seus julgamentos pessoais, cobrar autoridades, saber quem morreu na vizinhança, a que horas fecha o cartório, preencher palavras cruzadas ou ler charges do dia.
Desertos deste tipo também existem e crescem próximo de grandes centros. Em São Paulo, cidade mais rica do Brasil, em um raio superior a 20 quilômetros a partir da Avenida Faria Lima, principal centro de negócios da cidade, a periferia carece de cobertura local. Nos bairros e cidades à margem da capital, parte significativa dos jornais e rádios locais são controlados por políticos – por sorte, há exceções, sobre as quais comentarei adiante.
Em cada cidade sem cobertura jornalística, quem mais sofre é a população local que a princípio fica sem notícias sobre o que se passa à sua volta e, como consequência, é lesada pela negligência do poder público que não é fiscalizado, pelo crescimento nos casos de corrupção, pela falta de acesso a informações e prestação de serviços essenciais.
Nos últimos anos, surgiram no Brasil iniciativas que procuram ampliar a cobertura e a voz do jornalismo local que ressoam como sinal de esperança. Os dados revelados pelo Atlas da Notícia são um grande passo para evidenciar o problema, mas o surgimento de novos empreendimentos jornalísticos nessas regiões e alternativas de apoio aos veículos locais tradicionais em seu processo de transformação no ambiente digital começam a dar frutos em algumas cidades.
Na Grande São Paulo, iniciativas como a da Agência Mural cumprem papel fundamental de lançar luz sobre os fatos do cotidiano das periferias e atuam com correspondentes locais (chamados muralistas), que vivem na região, para produzir conteúdo a partir dos bairros e cobrir o que acontece em cada um dos 32 subdistritos da capital paulista e nas cidades da região metropolitana. No ar há 10 anos, a agência tem firmado parcerias com veículos nacionais e usado canais em plataformas digitais para expandir sua capacidade de produção e distribuição de conteúdo. Recentemente a Mural divulgou que está expandindo a presença da agência para a cidade de Salvador na Bahia.
Em Minas Gerais, estado com maior número de municípios no país (853 no total), estima-se que 70% das cidades estejam às escuras. O jornal Estado de Minas lançou há alguns meses o projeto Regiões. Nessa iniciativa, construída em parceria com a Google News Initiative, jornalistas são recrutados em suas cidades natal para contribuir com reportagens sobre suas cidades, que passam a alimentar editorias locais no site do jornal. Desde o início do projeto, sete regiões do estado e aproximadamente 200 cidades passaram a ter cobertura local. Recentemente, o veículo comemorou a publicação da primeira notícia a partir de Fama, cidade com 2.000 habitantes que tinha, finalmente, representatividade no noticiário. A ambição da iniciativa é mitigar completamente os desertos de notícias no estado.
O surgimento de novas startups de jornalismo no Brasil é outro sopro de boas novas que têm contribuído para fortalecer o noticiário local e o ecossistema de mídia. Em geral, são operações mais dinâmicas, que fazem uso de tecnologias de colaboração, mantêm foco em desenvolvimento e aprimoramento de seus produtos e adotam plataformas digitais para distribuição de conteúdo, construção de comunidades e procuram adotar de modelos de negócios que combinam fontes de receita diversas – que passam por venda de assinaturas, captação colaboração de leitores membros, crowdfunding, eventos e venda de anúncios de forma direta ou automatizada (a publicidade programática).
Nesse cenário, surgiram veículos como o MyNews, que há dois anos vem fazendo cobertura do noticiário de forma descentralizada a partir do YouTube e consegue lançar luz sobre o cotidiano de regiões menos usando uma extensa rede de colaboradores presente em todo país e que agora expande sua operação nesse novo site. Surgiu também a Agência Tatu de Jornalismo de Dados, recentemente selecionada entre as empresas a serem aceleradas no GNI Startup Lab do Google, que desde 2017 se propõe a produzir material jornalístico sobre o estado de Alagoas utilizando dados dispostos em portais de transparência e acessados por meio de solicitações feitas aos órgãos pela Lei de Acesso à Informação (LAI). Estima-se que 75 das 102 cidades de Alagoas sejam desertos de notícias.
Investir e fomentar a produção jornalística local, portanto, é uma necessidade prioritária. É também, para novas iniciativas, uma oportunidade para construir comunidades ao redor do interesse comum das cidades e sua população.
A internet tem papel fundamental no processo de capacitação e empoderamento dessas iniciativas, oferecendo condições para redução de custos e também na ampliação do poder de distribuição e abertura no acesso a informação para as pessoas. À medida que o acesso à internet é cada vez maior no país e 7 em cada 10 brasileiros já estão conectados (segundo dados da última Pesquisa TIC Domicílios), a rede se torna o principal canal para publicação e acesso a notícias.
Para reduzir a desigualdade, é preciso prover acesso, dar espaço para todas as vozes, é necessário que se amplie o ambiente de debate para que cada cidadão, em sua cidade, possa ter acesso ao essencial: informações bem apuradas, dados transparentes, senso de comunidade, serviço local e, por que não, charges e palavras cruzadas.
Luiz Henrique Matos é diretor de parcerias do Google no Brasil, responsável pelo relacionamento com grupos de mídia e integrante do grupo de trabalho global da Google News Initiative. Formado em Comunicação pela Universidade Mackenzie em São Paulo e pós-graduado pelo Insper, trabalha há 20 anos com mídias digitais, com passagens pelos grupos UOL/Folha, Editora Abril e America Online.
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