Sob a indiferença das presidências, o baixo-clero impõe ao Legislativo padrões de casa de tolerância
Em 06/09/23 19:04
por Política com Bosco
João Bosco Rabello traz uma bagagem acumulada em mais de 45 anos de profissão, em grandes veículos nacionais como O Globo e O Estado de S.Paulo. Sua coluna, agora no MyNews, traz insights valiosos e análises aprofundadas do cenário político direto de Brasília para os leitores.
Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados
Houve tempo em que o chamado baixo clero formava uma maioria silenciosa na Câmara dos Deputados, sem influência na condução dos trabalhos legislativos.
A orientação política era formulada por um núcleo parlamentar estimado em menos de uma centena de deputados e senadores. O baixo clero era administrado na sua pauta essencialmente paroquial e fisiológica.
Por um momento chegou ao poder maior e presidiu a Câmara, a partir de um motim que elegeu o deputado pernambucano Severino Cavalcanti, cuja plataforma de campanha era a independência ou morte – prevalecendo esta última.
Severino não durou no cargo, defenestrado pela materialização daquilo que chamava de liberdade e autonomia parlamentar: flagrado na extorsão do concessionário da lanchonete da Câmara, que lhe garantia um complemento salarial, desabou do cargo.
Não sem antes protagonizar um episódio que ficou célebre ao negociar a participação de seu núcleo na estrutura da Petrobras. Indagado nos bastidores sobre o que desejava na empresa, respondeu em público: “Quero aquela diretoria que a gente fura poço e sai petróleo”.
Até aqui, qualquer livro sobre esse enredo poderia ter o título de “Ascensão e queda do baixo-clero”. Mas ainda viria a eleição de um dos seus mais autênticos representantes, Jair Bolsonaro, para a presidência da República.
O baixo clero se define como o extrato parlamentar que busca vantagens pessoais e provincianas, uma espécie de bancada de vereadores federais. Se caracteriza pela pouca e conveniente visibilidade. Atua nas sombras, vive do varejo e não influía no atacado.
O ex-presidente Bolsonaro era parte disso. Como Severino Cavalcanti, ascendeu ao poder no vácuo moral programado pela operação Lava Jato que associou ao combate à corrupção a criminalização da política. Chegou à presidência da República no figurino de um outsider, embora com 28 anos de mandato.
Com Bolsonaro, como se viu, a ascensão não foi breve, embora ele tenha se esforçado nesse sentido. Sua gestão despertou outro baixo clero – o de um eleitorado que se identificava com o sentimento de exclusão com origem na antítese democrática – o do manda quem pode e obedece quem tem juízo.
Bolsonaro passa lentamente do topo da cadeia alimentar política para o ostracismo, uma transição impregnada de processos e ações, uma delas já responsável pela sua inelegibilidade.
Mas fica o bolsonarismo e, mais grave, a predominância do baixo clero no Legislativo, onde continua maioria, porém não mais silenciosa. E, diferentemente do passado, tolerada em todos os seus abusos e escândalos. É um permanente garimpo ilegal de vantagens que hoje alcançam o comércio de joalherias.
Em 2013, uma massa ainda não detectada pelos políticos ganhou as ruas com uma pauta inesperada e acuadora: a cobrança de correspondência entre a carga de impostos e o péssimo serviço entregue aos contribuintes – e mesmo a ausência dessa contrapartida.
O movimento logo ganhou um slogan, na esteira dos preparativos para a Copa do Mundo do ano seguinte, 2014: “Queremos o padrão Fifa”, numa alusão ao súbito up grade do Estado nos serviços necessários para sediar a Copa.
Numa analogia válida, instalou-se no Congresso o que se pode chamar de “Padrão Brunini”, extraído do comportamento do deputado Abílio Brunini, candidato à prefeitura de Cuiabá, que só não tirou ainda a roupa na CPMI do 8 de Janeiro, palco que escolheu para produzir vídeos e imagens para a sua campanha, mesmo não integrando a comissão.
Poderia também ser o “Padrão Nikolas”, deputado mineiro que conspira contra a sanidade da juventude brasileira. Nikolas, porém, perdeu para Brunini no volume de produção de fakes e molecagens. Poderia ainda ser o “padrão Malta”, que remete ao senador Magno Malta, de conhecido perfil baixo clero.
Há outros exemplos, como o do tenente Zucco, que preside a CPI do MST como se estivesse em um churrasco no quintal de sua casa e com padrão militar que trata parlamentares, sobretudo a bancada feminina, como subordinados da caserna.
A lista é grande, a confirmar que o baixo clero é que determina hoje o comportamento e os rumos (ou a falta de) do Legislativo instalando na casa de debates o não-debate.
O pior ainda não é isso: é a condescendência dos líderes parlamentares – os de partidos e os que presidem as duas casas, que fazem olhar de paisagem para toda essa ópera bufa.
Destaque para o presidente da CPMI do 8 de janeiro, deputado Arthur Maia, que ao invés de enfrentar os atores desse processo de desmoralização do Legislativo, preferiu punir quem documenta esse caos, impedindo acesso de fotógrafos na sala de sessões e estabelecendo seu próprio AI-5 com atos de censura aos trabalhos da mídia.
Aos presidentes Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, fica o registro da indiferença a tudo isso, que se reflete na falência das comissões de ética das duas casas, que funcionam como tribunais de anistia a infratores contumazes, inclusive dos regimentos internos.
Hoje o Legislativo, no quesito comportamental, virou uma casa de tolerância, como se dizia antigamente dos bordéis mundanos.
O parlamento, que reivindica com êxito o protagonismo político, é uma casa, nesse momento, em que predomina a molecagem desabrida, com deputados e senadores comendo melancias, usando perucas, desrespeitando mulheres e representantes transgêneros eleitos, em uma orgia política que desafia a previsão de Ulysses Guimarães de que o próximo Congresso será sempre pior.
Ulysses, certamente, não imaginou que sua profecia chegaria a tanto, avalizando a variante de uma máxima conhecida, que passa agora a ser “o inferno é o limite”.
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