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Ernesto Araújo usou Itamaraty para conseguir cloroquina

Telegramas revelam mobilização do corpo diplomático brasileiro para conseguir importar o medicamento. Para embaixador, Ernesto “é um fiel capacho de seus chefes”

por Vitor Hugo Gonçalves em 04/11/21 10:04

Mesmo após a Organização Mundial da Saúde (OMS) ter interrompido testes clínicos com a cloroquina, e depois de associações médicas terem alertado para a ineficácia e o risco de efeitos colaterais provenientes do uso contínuo do medicamento, Ernesto Araújo, ex-ministro das Relações Exteriores do Brasil, direcionou os esforços da máquina diplomática brasileira para garantir o fornecimento do fármaco ao país.

Ernesto Araújo, ex-chanceler brasileiro, mobilizou os esforços do Itamaraty para importar cloroquina ao país.
Ernesto Araújo, ex-chanceler brasileiro, mobilizou os esforços do Itamaraty para importar cloroquina ao país. Foto: Marcos Corrêa (PR).

Esse planejamento foi descoberto por intermédio de telegramas obtidos pela Folha de S. Paulo, além de dados e informações fornecidos por pessoas envolvidas nas negociações.

Exonerado no final de março, Ernesto Araújo, que será ouvido na CPI da Covid na próxima quinta-feira (13), deverá prestar esclarecimentos sobre possíveis prejuízos na aquisição de insumos e vacinas devido à política externa praticada em sua gestão.

A busca do Itamaraty pela cloroquina começou em março de 2020, dias depois de o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) mencionar uma “possível cura para a doença” nas redes sociais: “Hospital Albert Einstein e a possível cura dos pacientes com Covid-19. Agora há pouco os profissionais do hospital Albert Einstein me informaram que iniciaram um protocolo de pesquisa para avaliar a eficácia da cloroquina nos pacientes com Covid-19”, escreveu ele.

Em pronunciamento durante reunião do G-20, em 26 de março, relatada em telegrama, o presidente falo em “testes bem-sucedidos, em hospitais brasileiros, com a utilização de hidroxicloroquina no tratamento de pacientes infectados pela Covid-19, com a possibilidade de cooperação sobre a experiência brasileira”. No mesmo dia, o Ministério das Relações Exteriores pediu, também via telegrama, que os diplomatas tentassem “sensibilizar o governo indiano para a urgência da liberação da exportação dos bens encomendados pelas empresas antes referidas e outras que se encontrem em igual condição, cujo desabastecimento no Brasil teria impactos muito negativos no sistema nacional de saúde”. Na época, o governo indiano havia limitado a exportação da cloroquina.

Em outra comunicação, no dia 15 de abril, o ministério pede que a embaixada na Índia faça gestões junto ao governo indiano para liberar uma carga de hidroxicloroquina comprada pela empresa Apsen antes de a exportação ser vetada por Déli e para que a venda da droga seja normalizada.

Assegurando “resultados animadores”, a chancelaria brasileira promoveu inúmeros pedidos do para obtenção do remédio. Um dos telegramas, por exemplo, afirma que o Itamaraty teria solicitado à Organização Pan-Americana de Saúde um contato com o governo indiano para conseguir a liberação de um lote contendo milhões de doses de hidroxicloroquina.

Mesmo depois de a Sociedade Brasileira de Infectologia, a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia e a Associação de Medicina Intensiva Brasileira desaconselharem o uso do medicamento, o Itamaraty continuou acionando a estrutura diplomática para garantir o fornecimento de hidroxicloroquina.

Efeito Ernesto Araújo

Para o diplomata brasileiro Paulo Roberto de Almeida, “o Itamaraty é um pouco como o Exército, pois a base do trabalho é a hierarquia e a disciplina, fazendo com que os diplomatas cumpram funções”. O embaixador explica que o funcionamento das relações internacionais do Brasil é, em parte, exercido por orientações estruturais.

“Há uma grande diferença entre telegramas puramente de informações, de envio de notícias e boletins, e telegramas que dão instruções… Quando chega um telegrama com instruções, os diplomatas têm que cumprir imediatamente”, elucida Almeida.

Embaixador Paulo Roberto de Almeida em entrevista ao canal MyNews.
Embaixador Paulo Roberto de Almeida em entrevista ao canal MyNews. Foto: Reprodução (MyNews).

“Chegou um telegrama em Nova Deli, como pode ter chegado em outros lugares, para outras vacinas, com instruções para contatar o governo e auxiliar na exportação de medicamentos junto a empresas privadas, numa época em que já havia tido um primeiro estresse, em janeiro, quando se tentou importar vacinas da fábrica autorizada pela AstraZeneca, mas depois verificou-se que se tratava de importar cloroquina, devido a demanda do Bolsonaro”, remonta o diplomata. “Acredito que Nova Deli fez os contatos, mas que o governo indiano já devia estar estressado com as demandas brasileiras, porque elas se anteciparam, inclusive, à vacinação na própria Índia”.

De acordo com Paulo, o relacionamento de Ernesto Araújo com a família do presidente da República explica a corrida pelo medicamento ineficaz estimulada pelo Itamaraty: “A divulgação pela Folha desses telegramas não causa surpresa a nós, pois confirma o que já sabíamos – não só os diplomatas como os observadores externos, a exemplo de vocês, jornalistas: o Ernesto Araújo é um capacho da família Bolsonaro, submisso total. […] Ele faz tudo, até mais do que é pedido, para provar que é um fiel capacho de seus chefes”.

Questionado sobre a participação do ex-chanceler na CPI da Covid, o embaixador afirma que Araújo “será ridicularizado mais uma vez”, tendo em vista a compreensão pública e científica da inutilidade da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19.

“Como já há um embate entre o atual ministro da Saúde e a CPI da Pandemia, o Ernesto deve estar muito preocupado, porque ele será obrigado a mentir ou a dizer a verdade, falar que ele cumpriu funções do Bolsonaro mesmo tendo evidências de todas as partes, não só do Brasil, de que não era adequado [o uso da cloroquina]. Ele estará em maus lençóis, e é muito possível que ele invente uma desculpa para se ausentar”, completou Almeida.

Posicionamento da Apsen

Em nota enviada ao MyNews, a Apsen afirma que entrou em contato com o Ministério da Saúde e o consulado na Índia para garantir o seu fornecimento de medicamentos. Confira a íntegra da nota.

“A APSEN Farmacêutica produz hidroxicloroquina no Brasil há 18 anos, com indicação no tratamento de pacientes crônicos com lúpus e artrite reumatoide. Em abril de 2020, com as dificuldades de importação impostas pela pandemia, os esforços da companhia foram concentrados na manutenção do tratamento sem prejuízos à saúde dos mais de 100 mil pacientes crônicos em uso contínuo do medicamento; e em segundo momento, na contribuição com os estudos em andamento na época para análise da possível eficácia para o tratamento da COVID-19. Reforçamos que, os pedidos de compras de insumos são realizados a cada final de ano para atendimento do ano seguinte, portanto os pedidos referentes ao ano de 2020 haviam sido feitos em novembro de 2019 junto aos fornecedores indianos. Com a proibição das importações por parte do governo indiano em abril de 2020, a Apsen trabalhou com estoque reduzido e comercialização racionalizada durante os meses de abril, maio, junho e julho. Diante do cenário de possível desabastecimento, contatamos o Ministério da Saúde e o consulado da Índia para auxiliar com importação dos insumos adquiridos em novembro de 2019, assegurando assim o tratamento dos pacientes que fazem uso contínuo dessa medicação, conforme indicação em bula e prescrição médica.”

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