Há motivos substantivos e procedimentais para que a comissão provoque grandes estragos no governo e dificulte a reeleição de Bolsonaro, sua prioridade absoluta
por Cláudio Gonçalves Couto em 31/05/21 13:00
Num cenário de pandemia e diante das dificuldades que qualquer governo teria para lidar com ela, talvez fosse inevitável que se produzisse uma CPI para investigar o desempenho dos gestores governamentais. Afinal, a pandemia coloca desafios sérios para os administradores públicos, inclusive devido ao desconhecimento inicial de sua real gravidade e do funcionamento do vírus, fazendo com que houvesse dificuldade para respostas rápidas e certeiras. As polêmicas iniciais sobre o uso ou não da máscara, sobre as formas de contágio e sobre medicamentos potencialmente eficazes demonstram isso. Não por acaso, comissões de investigação têm sido criadas por outros parlamentos mundo afora.
Em outubro passado, o parlamento canadense abriu uma investigação, apesar da renitência do Executivo; na Letônia, um comitê investigativo foi montado em abril para aferir os erros do governo; na Espanha foi aberta uma investigação relativa às vacinas, que acabou atravancada pela resistência do PSOE e do Podemos; no Reino Unido, Boris Johnson é pressionado a instalar um comitê independente de inquérito; no Parlamento Europeu também se discute a necessidade de uma investigação.
No Brasil, contudo, a confusão produzida pelo governo Bolsonaro foi além do que seriam erros normais (ainda que graves) de governos normais. Além de sermos o último país do mundo cujo governo nacional ainda insiste em medicamentos ineficazes e perigosos, como a cloroquina, temos um chefe de Estado que sabotou abertamente a vacinação, desdenha da ciência e ataca esforços de governos subnacionais para lidar com o problema.
Num cenário desses, mais do que identificar erros administrativos e políticos, a investigação tende a revelar crimes graves, alguns deles inclusive passíveis de serem considerados crimes contra a humanidade. Mais do que apenas negligência ou incompetência, houve um ativismo antissanitário e anticientífico que deve ter ceifado milhares de vidas.
A anormalidade do atual governo, contudo, não se limita às iniciativas contrárias às recomendações das autoridades sanitárias mundo afora, ou mesmo ao bom senso. Bolsonaro é um presidente sui generis também em sua relação mais ampla com os outros poderes, com governos subnacionais, com governos estrangeiros, com a imprensa, com a universidade, com as Forças Armadas e com a burocracia pública de um modo geral.
Demorou a montar uma coalizão no Congresso e, mesmo após o fazer, produz frequentes atritos desnecessários com o Legislativo – em especial com o Senado, onde se instalou a CPI em claro desfavor da bancada governista. Cria inimigos em todas as frentes e gera uma militarização da burocracia de Estado que produz não só um aparelhamento corporativo de cargos e suas respectivas prebendas, mas também solapa a capacidade administrativa governamental. O colapso do funcionamento do Ministério da Saúde durante a calamitosa gestão do General Eduardo Pazuello, que coalhou a pasta de apaniguados fardados, é o exemplo máximo dos danos que essa forma de conduzir a administração pública pode produzir.
Por isso a CPI tira o sono do presidente. Há motivos substantivos e procedimentais para que a comissão provoque grandes estragos no governo e dificulte a reeleição de Bolsonaro, sua prioridade absoluta. Os substantivos dizem respeito à gestão temerária da saúde, que vem sendo facilmente aferida pela comissão, tão numerosas e conhecidas são as evidências. Os procedimentais concernem ao caos no relacionamento político do governo com os mais diversos atores. Não é casual que, nessa situação, o presidente tente comprometer com seu projeto pessoal as Forças Armadas. Afinal, criando mais e mais inimigos por todos os lados, restam-lhe poucas opções que não tentar recorrer à força bruta para se proteger.
A questão é que historicamente as Forças Armadas só embarcaram em aventuras autoritárias no Brasil quando havia uma coalizão mais ampla a invocar sua intervenção. Além de Bolsonaro, sua família e alguns membros das forças de segurança, agindo em proveito próprio, em quem mais pode o presidente se fiar para seguir adiante com seu projeto pessoal de poder?
Por essas razões, a CPI tende a minar cada vez mais não só a popularidade do governo, mas sua capacidade de levar a cabo quaisquer projetos, em especial aqueles voltados unicamente aos caprichos presidenciais.
Cláudio Gonçalves Couto é professor da FGV EAESP, coordenador do Mestrado Profissional em Gestão e Políticas Públicas (MPGPP) e produtor do canal/podcast “Fora da Política Não há Salvação”. Twitter: @claudio_couto.
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