Economista defende renda básica e imposto progressivo sobre propriedades, renda e heranças
O economista francês Thomas Piketty, 49, uma das maiores referências mundiais no debate sobre redistribuição de riquezas, considera que a desigualdade no Brasil atingiu um nível “totalmente excessivo” e que dificulta a prosperidade do país.
Em entrevista exclusiva ao MyNews, Piketty defendeu a adoção da renda básica e do imposto progressivo sobre propriedades, renda e heranças como estratégias para redução da pobreza. “No longo prazo é certo que mesmo as elites se beneficiariam de pagar mais impostos”, afirma.
Em seu novo livro, “Capital e Ideologia” (Ed.Intrínseca), o economista faz um mergulho na história do desenvolvimento e reacende o debate sobre a construção de sociedades mais igualitárias. Isso justamente em um momento no qual o mundo vivencia uma aceleração no processo de concentração de riquezas.
Piketty propõe o que chama de “socialismo participativo”, em que resgata políticas implementadas em países europeus e nos EUA que contribuíram para o progresso, enquanto melhoravam a distribuição de renda ao longo do século XX. O economista quer abrir o debate sobre a evolução do capitalismo.
Thomas Piketty: A evolução ainda vai precisar de tempo, mas, no longo prazo, eu sou otimista. O capitalismo de hoje já é muito diferente daquele de um século atrás. O modelo do socialismo participativo que eu proponho para o século XXI não é algo que cai do céu, mas está no prolongamento de transformações que já ocorreram. Um exemplo é o direito do proprietário. Se pegarmos o caso da França, há um século o proprietário podia expulsar um inquilino ou demitir um empregado do dia para noite. Isso mudou enormemente.
Houve a implantação de um estado de bem estar social, de um sistema de seguro social, de imposto progressivo sobre rendas e sobre herança. Esse avanço no século XX foi um grande sucesso, porque permitiu que a redução da desigualdade e o aumento da prosperidade caminhassem juntos.
Porém, desde 1990, o capitalismo vive uma nova fase, às vezes, sem limites para o mercado, o que favoreceu o aumento das desigualdades. Eu penso que a grande desilusão que veio após a queda do comunismo explica em parte isso.
O caso da Rússia é emblemático desse excesso. O país que tinha abolido a propriedade privada se tornou a capital mundial dos oligarcas, da falta de transparência financeira. Ela poderia ter se tornado uma Suécia social-democrata.
Depois da crise de 2008, muitas pessoas começaram a se dar conta de que fomos muito longe no hipercapitalismo, houve uma evolução política. O debate no Partido Democrata nos EUA, com Bernie Sanders, é muito diferente do que tínhamos nos anos 1990, por exemplo.
Quando pensamos no presente imediato a evolução parece complicada, pois vemos Trump nos EUA, Bolsonaro no Brasil, Brexit no Reino Unido. Em uma perspectiva histórica de longo prazo, é claro que o capitalismo pode mudar.
A renda básica é necessária para lutar contra a pobreza extrema, mas é um erro pensar que é uma arma mágica que vai resolver tudo.
Ela deve estar integrada a uma perspectiva mais ampla: é preciso uma lei que melhore as condições de trabalho e o salário mínimo, que se tenha sistemas de educação e de saúde pública acessíveis. É necessário ainda um sistema fiscal justo, que permita financiar todas essas despesas sociais, e que evite a concentração excessiva da renda no topo da pirâmide.
Um dos resultados práticos da renda básica é aumentar o poder de negociação dos mais pobres. Com ela, a pessoa não é forçada a aceitar qualquer salário ou condição de trabalho. Isso é justamente o que incomoda os empregadores, que gostariam que os pobres fossem obrigados a aceitar qualquer coisa.
Eu penso que o ideal a longo prazo, no caso do socialismo participativo, seria a renda básica vir junto com uma herança mínima para todos. Os milionários não se dão conta de que não possuir nada ou ter 50 mil, 100 mil euros não é a mesma coisa. No segundo caso, a pessoa pode fazer planos e negociar com a sociedade. Vai além do dinheiro, é uma questão de poder controlar sua própria vida.
Sempre haverá desigualdades, mas é preciso que elas fiquem em um limite razoável. Eu acredito que o nível de desigualdade no Brasil é totalmente excessivo. A ideia de que o Brasil tem que ficar rico para reduzi-la é um erro. Historicamente, a prosperidade é resultado de mais igualdade.
No século XIX e no começo do século XX, os países que são atualmente os mais ricos do mundo tinham níveis de desigualdade de renda comparáveis aos do Brasil de hoje, onde os 50% mais pobres têm apenas 10% da renda total e os 10% mais ricos têm 50% dela.
A concentração nesses países caiu fortemente por causa de choques violentos, como as guerras mundiais. Mas também porque houve uma política de imposto progressivo que permitiu que a contribuição dos mais ricos financiasse a educação e as despesas sociais.
Nos EUA, entre 1930 e 1980, a taxa superior aplicada às mais altas rendas foi em média de 81%. E isso não matou o capitalismo americano. Aliás, ele nunca foi tão próspero como nesse período.
Nos anos 1980, 1990, o estado reduziu muito esse tributo com a ideia de que ia gerar mais inovação, crescimento econômico e de que todos iam se beneficiar. Na verdade, o crescimento foi dividido por dois.
Se essa promessa de prosperidade tivesse funcionado, se tivéssemos tido um crescimento excepcional da renda média e do salário médio, os EUA não estariam enfrentando toda essa agitação política.
Eu acredito que o PT no poder teve grandes êxitos e também falhas. Uma das grandes conquistas foi aumentar significativamente a participação dos 50% mais pobres na renda total graças a políticas sociais como o Bolsa Família e ao aumento do salário mínimo. Nesse sentido, a chegada do Bolsonaro ao poder é uma interrupção, é muito negativa.
Depois o que vimos no governo do PT é que essa melhora na situação dos 50% mais pobres se fez “em detrimento” dos 40% do meio [classe média] que estão entre os 50% mais pobres e os 10% mais ricos. Os 10% mais ricos conservaram ou mesmo melhoraram sua posição.
Isso aconteceu em parte por causa de uma ausência de uma reforma fiscal verdadeiramente ambiciosa que permitisse lançar mão da contribuição dos mais ricos. Como resultado, parte da classe média brasileira teve a impressão de que não se beneficiou do governo, o que contribuiu politicamente para o fim dessa experiência.
Sou consciente de que o sistema político brasileiro torna muito difícil a adoção de uma política fiscal ambiciosa. O sistema eleitoral faz com que, mesmo presidentes eleitos com 60% [dos votos], como o Lula, não tenham maioria no parlamento para governar. Isso leva à formação de coalizões muito amplas e artificiais que podem contribuir para arranjos que não ajudam muito.
A longo prazo é certo que mesmo as elites se beneficiariam de pagar mais impostos, porque no Brasil o nível de desigualdade se torna negativo para o crescimento e para a prosperidade. Porém, no imediato, nos próximos 10, 15 anos, as elites – no Brasil e no mundo – vão tentar defender seus interesses.
Depois, não pode esperar que os mais ricos voluntariamente tenham vontade de pagar mais impostos. É preciso ter uma maioria que consiga impor essa política. Historicamente, a redução das desigualdades não se fez no consenso, mas em situações de conflito, frequentemente resultado de crises extremamente graves, como a crise dos anos 30.
A crise que atravessa o Brasil hoje pode ajudar a tomar consciência da necessidade de mudança? Talvez.
É preciso continuar aprofundando medidas de transferência para os mais pobres, a renda básica já avançou com o Bolsa Família. Também é preciso ir mais longe com a valorização do salário mínimo.
É necessária uma grande reforma fiscal que coloque para contribuir os de mais alta renda e, sobretudo, os de mais alto patrimônio. O Brasil não tem um imposto sobre herança na esfera federal e na maior parte dos Estados as taxas são muito baixas, 1%, 2%, 3%.
Enquanto isso, qualquer brasileiro paga taxas indiretas de 30% nas contas de eletricidade ou quando faz suas compras. Tem alguma coisa de anormal aí.
Também existe uma necessidade de transparência sobre o patrimônio. É preciso que seja de conhecimento público qual é a natureza e a amplitude desta concentração de patrimônio para que, em seguida, a gente possa observar como isso evolui. Sem essa transparência, é muito difícil ter uma deliberação democrática pacificadora.
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