Bruno Cavalcanti

MUDANÇA NA LEI

Aprovação de Instrução Normativa da Lei Rouanet é ignorância econômica, alertam produtores

Instrução Normativa (IN) foi publicada na segunda semana de fevereiro e oficializou determinações da Secretaria da Cultura.

por bruno cavalcanti em 13/02/22 13:47

Presidente da República Jair Bolsonaro (PL) ao lado do secretário da Cultura Mario Frias. Foto: Reprodução (Secom)

A publicação na terça-feira (8) de uma Instrução Normativa (IN) que oficializou as mudanças na Lei de Incentivo à Cultura (Rouanet) propostas pela Secretaria Especial da Cultura, comandada pelo ator Mário Frias, escancarou, na visão de uma série de profissionais de diferentes áreas do mercado das artes, a intensa perseguição que o governo Jair Bolsonaro (PL) trava contra a classe artística desde que subiu ao Planalto em janeiro de 2019.

A IN aprovada pelo Presidente determinou uma série de mudanças robustas nos mecanismos da lei que, desde que foi criada em 1991 pelo então secretário de cultura da Presidência da República, Sérgio Paulo Rouanet, tem se sustentado como um dos principais pilares para a produção de espetáculos de grande e médio porte no Brasil.

A lei prevê que empresas destinem verbas para projetos culturais e as abatam de seu imposto de renda. Foi através desse mecanismo de incentivo que, no campo do teatro, por exemplo, o Brasil se tornou um dos grandes produtores de musicais da América Latina, se sobressaindo como o mercado mais visado para produtores e agentes que negociam direitos internacionais de grandes espetáculos originários da Broadway, em Nova York, e do West End, em Londres.

Por seu caráter de incentivo irrestrito, a Rouanet passou a ser visada não apenas dentro do mercado, mas na guerra político-ideológica que se trava no Brasil desde, pelo menos, a primeira eleição do ex-Presidente e atual pré-candidato ao Planalto Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2002, quando uma série de artistas declarou apoio ao petista na batalha contra o tucano José Serra (PSDB). 

Teatro Municipal de São Paulo, localizado na área central da cidade. Foto: Rovena Rosa (Agência Brasil)

Nasceu, então, o discurso solitário de que o Partidos dos Trabalhadores comprava votos dos artistas graças às promessas de dinheiro por meio da Rouanet. A entrada de Gilberto Gil à frente do Ministério da Cultura (2002-2008) aprofundou essa visão, sustentada por figuras como o cantor e compositor Lobão, que, em série de entrevistas, declarou que o autor de Drão e Aquele Abraço “entrou no Ministério rico e saiu milionário”.

A visão de que o Brasil vivia uma farra com o dinheiro público na cultura se aprofundou quando, disputando a reeleição ao Planalto, Dilma Rousseff (PT) ganhou apoio maciço da classe artística no segundo turno contra o tucano Aécio Neves. O impeachment da presidente, as tentativas do governo Michel Temer (MDB) de dizimar o Ministério da Cultura e a intensa campanha da classe artística contra a eleição de Jair Bolsonaro (PL) contribuíram para que uma parte da população se virasse contra os mecanismos da Lei sem de fato compreendê-los.

Falta de visão econômica

Após subir ao Planalto, um dos primeiros atos de Jair Bolsonaro foi estabelecer novos tetos de captação para a Lei Rouanet. Ainda sob a gestão do secretário Roberto Alvim, o teto sofreu um corte brusco de R$ 59 milhões. 

O valor original permitido para a captação era de R$ 60 milhões, reduzido a R$ 1 milhão. Grandes musicais poderiam, contudo, captar até R$ 10 milhões, valor que inviabilizou grandes produções mantidas apenas pela Rouanet, fazendo com que produtoras buscassem apoio em leis de incentivo estaduais e municipais. À época, estipulava-se um congestionamento de projetos em leis como o ProAc e o Promac, em São Paulo.

Com a nova Instrução Normativa, os tetos voltaram a cair. O teto de captação teve um corte de 50%, fazendo com que shows, exposições e peças de teatro passem a captar até R$ 500 mil. Grandes musicais estão autorizados a captar até R$ 6 milhões.

Teatro de Santa Isabel, localizado na área central do Recife. Foto: Andréa Rêgo Barros (PCR)

Outras mudanças também chamam a atenção, como o valor estipulado de R$ 3 mil como cachê máximo por apresentação a um profissional de cena (músicos, atores, cantores etc.), mediante aprovação prévia da Secretaria, que não deve avaliar mais apenas o orçamento, mas a ficha técnica e a proposta de montagem de cada espetáculo, show, publicação literária, etc.

Para a produtora e escritora Bruna Burkert, a nova medida é um tiro no pé numa visão econômica. “A Rouanet foi criada por um governo com ideias liberais, e atende a uma demanda liberal. Reduzir o valor de captação em um ano em que a inflação está chegando aos dois dígitos não tem outra resposta senão a perseguição ao setor”, explicou.

“Por que reduzir a captação num cenário em que as coisas estão mais caras? Os profissionais estão voltando a trabalhar agora, o mercado está começando a aquecer, há dois anos as coisas tinham um preço, agora têm outro, e isso se reflete em material base para a produção de cenários, figurino, aluguel de teatro, produtos de limpeza e, claro, o supermercado, afinal a inflação vai comer os cachês e os valores estipulados para cada linha do orçamento”.

O produtor, dramaturgo e diretor Kiko Rieser argumenta que, tal qual na primeira mudança, em 2019, esta nova alteração pode causar um congestionamento de projetos e inviabilizar o pequeno produtor, indo completamente contra o argumento utilizado pelo governo Bolsonaro de priorizar produções fora do eixo Rio-São Paulo.

“Esse limite inviabiliza grandes produções, e acaba prejudicando pequenos produtores porque a verba da cultura é sempre escassa e, quanto mais se aperta esse gargalo, mais se acirra a disputa por financiamento. Mesmo produtores que nem sequer pleiteiam a Lei Rouanet acabam impactados, porque todo o setor cultural colapsa”, afirmou o produtor, que acena para o desconhecimento do impacto econômico da medida.

Registro do Festival de Música Nacional FM, realizado em Brasília. Foto: José Cruz (Agência Brasil)

“Vale lembrar que, para além da perseguição ideológica, existe uma falta de visão estratégica e econômica, indo até contra os preceitos liberais que supostamente norteariam o governo, já que um estudo da Faculdade Getúlio Vargas (FGV) mostra que a Rouanet traz retorno 59% maior do que o valor financiado, isto é, a cada real investido, há um retorno de R$ 1,59. A Rouanet é, antes de qualquer julgamento moral, um investimento lucrativo”.

Menos marketing, mais sensibilidade

Rieser ainda acena para o fato de a Lei precisar, sim, de reformulações, mas com um estudo aprofundado. “É bem verdade que há muito a ser discutido e reformulado: a lei dá a diretores de marketing autonomia sobre a gestão de dinheiro essencialmente público, o que acaba, em geral, privilegiando projetos de maior apelo comercial, bem como há frouxidão com relação a contrapartidas (incluindo acessibilidade no valor do ingresso), e mesmo aos desdobramentos do projeto, mas nada disso está sendo repensado por Mário Frias. O que há é um absoluto desmonte, que asfixia toda uma cadeia produtiva e ainda se mostra economicamente prejudicial ao Estado”.

É dessa visão que compartilha o ator, diretor, produtor e gestor do Teatro União Cultural Eduardo Martini, que enxerga uma resolução mais pragmática para os problemas que cercam a Lei e não entraram em pauta nas mudanças propostas por Frias.

“Precisamos de pessoas que realmente vivam de arte, trabalhem com este ofício de uma forma séria, que entendam de restauração, do mercado de shows, de exposições, do mercado audiovisual e editorial, enfim, uma pessoa que tenha passado verdadeiramente por estes mercados para compreender a demanda da Lei. Quando você dá a chance ao setor de marketing das empresas de determinar para onde vão os patrocínios, o teto de captação não vai fazer diferença nenhuma, porque eles vão continuar escolhendo a quantidade de seguidores no Instagram, e não a qualidade do trabalho”, declarou.

Ainda que a IN determine que patrocinadores que aportarem projetos com valores acima de R$ 1 milhão precisam investir 10% do valor em projetos de proponentes que não obtiveram patrocínios anteriores, Martini insiste que não se trata de uma determinação da Lei, mas um caso de desqualificação dos profissionais direcionados à área de patrocínio.

“É necessário saber da demanda de uma peça com 20 pessoas, de uma peça de duas pessoas, de um monólogo, de um show de um cantor com vários músicos, ou de uma banda, ou de um show de voz e violão. Quanto custa restaurar um Da Vinci, por exemplo? É preciso ter essa consciência para que se possa de fato propor uma alteração na Lei ou em qualquer mecanismo cultural. Como você mensura o trabalho de um diretor, por exemplo? Trata-se de uma consciência cultural que não existe porque os profissionais que lidam com esses trâmites são desqualificados”, afirmou Martini.

Registro do Festival Nacional de Teatro Universitário do Distrito Federal. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom (Agência Brasil)

Pelo mesmo caminho vai o produtor e diretor do selo Conexão Musical, Fran Carlo. O profissional, que tem no currículo trabalhos com nomes como Marina Lima, Vânia Bastos, Marcia Alcina e Peninha, acredita que o essencial é ter alguém à frente da Secretaria com a sensibilidade de compreender que a limitação de captação vai refletir, por exemplo, na democratização de acesso à cultura.

“Na linha de shows essa limitação diminui a amplitude de uma turnê. Você não vai mais poder fazer uma turnê nacional, viajando pelas capitais do Brasil e, muito menos, por cidades menores, onde você vai ter a demanda de aluguel de equipamento de som e de luz, por exemplo. Isso também limita o tamanho da sua equipe, o que faz com que o mercado absorva menos gente, mantendo alto o grau de desemprego. É matemática simples, quanto menos dinheiro, menos pessoas empregadas. Daí você não vai poder ter cenário, por exemplo, o que já impossibilita a contratação não só de um cenógrafo, mas de um cenotécnico e sua equipe”, explicou.

“Nesta situação, os produtores vão passar a priorizar mercados mais simples de se viajar, como os do sudeste, e então você volta ao mesmo problema que vêm se discutindo há anos: a centralização do poderio econômico e do acesso à cultura. Estados mais distantes não vão ser contemplados com as turnês, e nem os artistas locais vão ter a chance de sair de sua terra natal para de fato tentar a sorte em mercados maiores. Você limita, você sufoca e assim você vê que estamos trabalhando com pessoas que não têm sensibilidade, respeito e muito menos conhecimento de como funciona o mercado da cultura das artes no Brasil”, declarou.

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