Quando vamos punir os torturadores pelos crimes que aconteceram no período da ditadura militar?
por Kelly Guimarães em 07/12/22 17:41
Foto: Unsplash
Quando eu era criança conversava com minha avó materna sobre como era a vida dela quando ela era mais jovem. Ela era de um tempo que não se conversava tanto. Não havia tempo pra conversar. Havia criado 5 filhos sozinha. Nascera nos anos de 1937, onde não havia tantas oportunidades para mulheres estudarem. Uns poucos anos antes, 1932, as mulheres podiam votar. Mas não havia tantas mulheres separadas e nem não ‘casadas’. Esse histórico machista ainda nos assola…
Auge da ditadura militar, minha avó materna já tinha todos os filhos e, certamente, também sofria os julgamentos de algumas pessoas que a viam como ‘moderninha’ pra época. Provavelmente. Ela expulsara, dali um tempo, de casa o marido que não colaborava e já dava seus sumiços com outras mulheres. Foi uma atitude muito inovadora e revolucionária pra uma época em que os homens eram autorizados a terem casos extraconjugais e frequentarem bordéis. Tempos antigos onde os homens eram autorizados a desrespeitarem as esposas e a família, onde havia lei que tornava a esposa ‘objeto’ de posse do marido, para trabalhar precisava de autorização, para se operar para não ter mais filhos também, só alguns exemplos. E ainda tem gente que tem saudade dessa época. Estranho não?
Tenho saudade da minha avó Vandinha, mas vendo essa sociedade brasileira doente, acredito que ela está mais segura em um outro plano.
“ Ainda vais escrever sobre mim em algum livro”
Vandinha
Eu adorava vê-la cozinhar. Uma das coisas que minha avó me inspirou a fazer. Ela trabalhava dia e noite para levar o que comer aos filhos. Foi ela quem me ensinou a fazer biscoitos, pães e bombons de chocolate.
Sempre gostei de saber sobre suas histórias. E ela me dizia para eu contar as histórias. Acho que ela não queria perder tempo só falando rsrsrs. Ela tinha pouca escolaridade, mas sempre foi uma referência de força e atitude para mim. Ela viveu numa época de intervenção militar em que agentes do governo invadiram a casa dela à procura de qualquer coisa para punir e sumir com pessoas. Ela me contava que as pessoas viviam com medo. Algumas falavam qualquer coisa e já apanhavam na rua. Outras não se sentiam seguras para andar nas ruas. Não era uma época tranquila, diferente do que pensam alguns que ainda hoje pedem a volta deste período.
Minha avó me contava que muitas vezes agentes fardados entravam de forma nada gentil na casa dela apenas para sondar, ver se havia algo suspeito. Acreditava que era uma maneira de eles criarem pânico e mostrar quem ‘mandava’ e a quem deveriam ‘temer’. E de fato se vivia com medo e sob suspeita. Se vivia com sensação de perseguição constante e com receio de falar qualquer coisa que parecesse algo contra o sistema opressor ditatorial da época.
É surreal como algumas pessoas sem noção e extremistas, movidas por um movimento de seita, pedem retorno de um regime que retira totalmente o direito de ir e vir do cidadão. Certamente, não tem nenhuma ideia do que é ter suas casas invadidas, suas intimidades violadas, seus familiares em perseguição, seus conhecidos desaparecidos, seus pertences confiscados, suas filhas e mulheres violentadas, suas vidas reduzidas a nada.
Minha avó contava que não podia, depois de um determinado horário, ficar andando pela rua era proibido, não podia ouvir músicas de protestos que eram ‘proibidas’, não podia ter barulho ou movimento nas casas que parecessem movimento contra o regime totalitário intolerante, não podiam ler livros que o regime julgava subversivo, não podia cantar música de protesto ou ouvir músicas censuradas. Basicamente, não havia arte, cultura e nem vida social com liberdade. A vigilância e o medo eram constantes.
Acreditar que um outro ser humano é inferior a ti ou é inimigo por pensar diferente, devem ser os primeiros indícios de que algo na cabeça não está bem. Outro, é o fato de achar que um pequeno grupo tem razão e vai salvar o mundo. E por fim, que vai aparecer um salvador para mostrar que a maioria que pensa diferente está errado, e a minoria que está disposta a matar e morrer, estão com toda razão e autorizados a cometer todo tipo de agressão e perversidade de forma grotesca e animalesca. Ao final do dia, basta pedir perdão a um deus que permite violência em seu nome.
Felizmente, a minha consciência é de respeito, tolerância e compaixão. A minha não religião prega a educação e o amor.
Vandinha dizia que para quem tinha filhos na universidade, o regime militar, a vida era muito pior, pois haviam movimentos estudantis e eventos que eram, sumariamente, abominados pelo regime intolerante ditatorial.
Uns tempos atrás estive no interior da Argentina. Há museus que expõem os horrores da ditadura militar naquele país. Lá, os crimes contra os cidadãos já foram punidos. Os ‘hermanos’ aceitaram que houve um regime castrador e a sociedade declara que não se tolera nem em pensamento a suspensão de seus direitos políticos e sociais. Muitos movimentos populares existem para contar para quem veio depois que naquele país “ditadura nunca mais” e que os direitos humanos nunca mais serão violados. Para isso é importante e prioritário assumir e aceitar que esse cárcere de intolerância ocorreu.
Minha pergunta é: quando vamos punir pelos crimes contra a humanidade que aconteceram no período da ditadura militar os torturadores de cidadãos? Quando serão punidos os responsáveis pelas centenas de desaparecidos? Quanto teremos a instauração do tribunal para obrigar a divulgação dos crimes cometidos no período? Quando haverá justiça e fim desse silêncio, que ainda ecoa na cabeça de centenas de famílias que nunca mais verão seus entes queridos?
Até quando vamos negar que houve um extermínio de vidas brasileiras entre 1964 até 1985? Pessoas que não tiveram chance de contar suas histórias. Pessoas que tiveram suas dignidades aniquiladas. Pessoas que não puderam voltar para suas casas ao final do dia.
Vovó certamente teria refletido, nesses últimos dias, que deve estar sobrando tempo na agenda dessas pessoas e suas geladeiras devem estar cheias, pois na época dela, se trabalhava um dia todo para alimentar ao fim do dia os filhos que ficavam em casa esperando para fazer a refeição.
Faz um ano e dois meses que Vandinha está num outro plano realizando suas viagens pelos continentes e orando por nós. Ela sonhava em conhecer outros país. Fisicamente, nunca pôde, mas agora ela tem o universo todo para conhecer.
Sou feliz e grata por ter podido fazer parte da vida dela como neta. Tínhamos personalidades fortes, de vez em quando rolava uma conversa mais estressada. Nunca aceitei certas coisas, desde criança. Provavelmente, aprendi com ela. Foi uma vida de muitas histórias, conversas e boas lembranças. Olhe por nós Vandinha, que aqui o negócio está esquisito!
*Kelly Guimarães é estra em Inovação e Empreendedorismo, treinadora de equipes ágeis e diversas, gestora de projetos estratégicos, e Sommelière de vinhos e viajante nas horas vagas
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