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BRASIL

O holocausto é aqui!

Nosso 'turning point' como brasileiros acontece agora ao encararmos a tragédia dos Yanomami

por Maria Aparecida de Aquino em 06/02/23 16:26

Povo Yanomami sofre crise humanitária (Foto: Mário Vilela/Funai)

O transcorrer do tempo e a repetição das imagens faz com que se naturalizem fatos que nunca poderiam ser naturalizados. Recentemente, vimos tantas vezes as cenas criminosas de destruição do malfadado dia 08/01/2023, atingindo o Palácio do Planalto, o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional, que elas quase já se naturalizaram para nós. Não causam tanto estupor e indignação como nos primeiros momentos. Precisamos lutar contra isso e manter forte a indignação, pois, só ela impedirá que estes fatos se repitam. Pelo contrário, a cada vez que as enxergarmos, devemos descobrir novos elementos para ativar nosso repúdio.

Assim é com as cenas que mantém vivo nosso horror ao contemplar as imagens da liberação dos campos de concentração nazistas ao término da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Imagino o estupor do mundo ao dizer que contemplava essas cenas pela primeira vez. Afinal, o mundo todo se fechou numa negação conveniente afirmando o desconhecimento do que acontecia no intramuros do nazismo.

Gérard Vincent em memorável artigo para a magnífica coleção História da Vida Privada: Guerras ditas, guerras silenciadas e o enigma do identitário (vol. 5: Da Primeira Guerra a nossos dias. SP, Cia. das Letras, 1992. p. 201-247) observa que os franceses gostam de enfatizar seu desconhecimento sobre o que acontecia com os judeus no período.

Em 1940 parte da França foi conquistada pelos nazistas e o país viveu seu turning point, seu momento de inflexão, onde foram colocadas à prova todas suas mais profundas concepções enquanto povo e país. A França ocupada pelos nazistas viveu um pesadelo de colaboracionismo – os franceses (muitos) que colaboravam com o nazismo – e, como em todo território dominado pelos alemães, o horror da perseguição implacável aos judeus mandados para campos de concentração e para a morte.

Moravam na França cerca de 300.000 judeus. Estatísticas baseadas nos arquivos alemães calculam que cerca de 75.721 judeus franceses foram deportados para a “solução final”, o extermínio, e os mesmos dados apontam para 2.500 sobreviventes, ou seja, apenas 3% ao término do conflito.

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Vincent pergunta: os franceses sabiam? Sua resposta é que: eles sabiam da deportação ao vê-los desaparecer. Não poderiam imaginar o que era a “solução final”.

Até que ponto isso pode eximi-los de culpa?
Nosso turning point como brasileiros acontece agora ao encararmos a tragédia dos Yanomamis. A maioria dos povos indígenas que povoam as Américas migraram da Ásia em direção ao Continente Americano, através do Estreito de Bering, cerca de 15.000 anos atrás. Os Yanomami estabeleceram-se na região que ocupam atualmente há aproximadamente um milênio.

Depois de uma longa luta e muitas denúncias sobre a sua condição e devastação pelo contato, particularmente, com o garimpo, em 1992, finalmente, houve a demarcação do território Yanomami. Seu território no Brasil é de mais de 9,6 milhões de hectares. Para se ter uma ideia, é o dobro do tamanho da Suíça. Se reunirmos suas terras no Brasil com as da Venezuela, onde também habitam, chegaríamos ao maior território indígena coberto pela floresta em todo o mundo.

Segundo reportagem da Revista Carta Capital – edição número 1245, de 08/02/2023, p. 16 -, o território Yanomami possui “a tabela periódica inteira”, tal a riqueza e a diversidade mineral contida em suas terras. Se isto poderia representar sinal de prosperidade para o povo, transformou-se na razão de sua desgraça, dada a ganância dos exploradores que para lá se dirigem para roubar as riquezas de seu solo e conduzir uma verdadeira operação de extermínio do povo.

Até final do século XIX, os Yanomami mantinham contato apenas com outros grupos indígenas vizinhos. Seus primeiros encontros diretos com caçadores e soldados da Comissão de Limites ou viajantes estrangeiros deu-se entre 1910 e 1940. Entre 1940 e 1960, o contato se sofistica com a presença das missões católicas e evangélicas que lá se estabeleceram. O encontro sempre foi danoso aos Yanomami, trazendo surtos epidêmicos de doenças que não existiam na região e dizimaram parte do povo.

Porém, foi durante a Ditadura Militar que se desenvolveu o Plano de Integração Nacional, com a abertura da estrada Perimetral Norte invadindo o território Yanomami. Desenvolveu-se o RADAM, um Projeto de Levantamento de Recursos Amazônicos, que alertou para a existência de importantes jazidas minerais na região. Estava dado o mote para a invasão do território e para o desencadear da corrida do ouro. Em 1993, garimpeiros invadiram uma aldeia e assassinaram 16 indígenas, o que ficou conhecido como “Massacre de Haximu”. Houve julgamento e condenação por genocídio do episódio.

Estimativas calculam que, entre Venezuela e Brasil, existiriam aproximadamente 35.000 Yanomamis, sendo que, só no Brasil, teríamos cerca de 15.000 pessoas distribuídas em 250 aldeias.

No mês de janeiro de 2023, o Ministério da Saúde decretou emergência para combater o descaso com a população Yanomami depois da denúncia do Ministério dos Povos Indígenas de que cerca de 570 crianças morreram nos últimos 4 anos devido ao avanço descontrolado do garimpo ilegal.

A visão desoladora da situação dos Yanomamis só encontra semelhança com a dos campos de concentração no momento de sua liberação em 1945. Sabemos que o aval dado pelo último governo para o garimpo na região tem profunda responsabilidade com este novo genocídio.

Porém, da mesma forma como não adianta aos franceses apelar para o desconhecimento da situação de holocausto judaico em seu território, não adianta a nós brasileiros alegarmos o mesmo desconhecimento em relação à situação de genocídio dos Yanomamis. Nada vai nos eximir da culpa enquanto povo.

Foi muito bom para os franceses encarar seu colaboracionismo com o nazismo. A nós brasileiros será salutar compreender que a tragédia Yanomami é responsabilidade de todos nós.

Só assim poderemos crescer como população digna e soberana!

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