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Coluna do Mister U

POLÍTICA

O Moinho de Vento de Lira

Lira encena uma aventura quixotesca quanto à disputa com Pacheco sobre o retorno das comissões mistas para as medidas provisórias. Não apenas é uma derrota certa, como denotará que seu tempo passou

por Mister U em 31/03/23 18:31

Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados (Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil)

Nos últimos dias, os líderes maiores do Congresso Nacional têm travado uma violenta batalha em torno da tramitação das Medidas Provisórias. Entretanto, como costuma ser o caso na nossa complexa teia de relações políticas, está em disputa algo muito além de uma prerrogativa processual: trata-se, talvez, do confronto que dará início à redefinição do centro gravitacional da política brasileira.

De um lado, temos o Presidente da Câmara dos Deputados, apelidado por aliados e detratores de Rei Arthur, dada sua condição de autoridade monocrática, construída por anos de empenho, embates duros, cumprimento de acordos, gerenciamento de recursos e centralização de poder. Lira destronou Maia, o “Primeiro Ministro”, que teve o mais longo mandato consecutivo na cadeira mais alta da Câmara, e comandou o Congresso com uma ascendência sobre o Poder Executivo jamais vista, graças ao despreparo e abandono voluntário do posto do Presidente Bolsonaro. Lira comandou a transição do ponto de vista político e se reelegeu para o comando da Casa com a votação mais ampla da história, suportado por um bloco que reuniu, essencialmente, todos os deputados, da direita à esquerda.

Por que, então, imaginar que Lira está num momento de inflexão? Justamente, por ter atingido o apogeu de sua força ao tempo que perdeu o acesso aos incentivos (leia-se, orçamento secreto) que sedimentaram seu poder absoluto no biênio anterior. Na ausência desses recursos e da perspectiva de uma nova eleição no horizonte, o grupo de líderes que lhe serve como tenentes já se assanha em torno de sua sucessão, como os príncipes de um monarca em idade avançada.

O que resta, então, ao Rei Arthur, desprovido de seu tesouro? A prerrogativa que, institucionalmente, define a Presidência do Poder Legislativo: o poder de agenda. Cabe ao presidente de uma casa parlamentar definir o calendário de sessões e as matérias que serão apreciadas, bem como o seu ritmo, sentindo o pulso dos seus pares. E aí reside a razão do embate em torno das medidas provisórias: a continuidade ou encerramento de um ato dos então presidentes de Câmara e Senado, que criou um rito excepcional em função do contexto de distanciamento social, dispensando a instalação das comissões mistas para analisar cada MP.

Uma questão à primeira vista pontual, a rigor até procedimental, com ondas de repercussão política difíceis de antecipar, que exigem um breve mergulho por minúcias do processo legislativo. Pelas disposições do tal ato conjunto, que Lira se recusou a revogar em fevereiro, as medidas provisórias seguem direto para apreciação pela Câmara dos Deputados, pendente a apresentação de um parecer. Este documento é do encargo de um relator, que estuda a matéria e oferece uma análise e, não raro, aperfeiçoamentos, que podem implicar em mudanças profundas nas disposições originais propostas pelo Poder Executivo, bem como servir de veículo para os infames “jabutis”, matérias estranhas ao tema que pegam carona na célere apreciação da matéria no Congresso. Quem tem a prerrogativa de definir esses relatores? O Presidente da Câmara, Arthur Lira.

Num cenário em que o Poder Executivo não possui base parlamentar para impor sua vontade, no formato adotado por Lula em seus dois primeiros mandatos, mas que também não se permite resignar a relegar a pauta a um controle pelo Legislativo, como fizera Bolsonaro, o Congresso hoje manifesta esse impasse na forma de uma agenda esvaziada.

Lira, por sua vez, não pode mais dispor da agenda e pautar o que quiser: se o fizer, corre o risco de ver sua imagem de líder feroz e imbatível se desfazer num castelo de areia. O Rei Arthur é tão refém quanto o Governo, ao qual ameaça e chantageia com frequência, de uma armadilha de imagem: nem um nem outro pode mostrar que não controla o Plenário. O que difere é a expectativa: antes mesmo de ser eleito, Lula viu o resultado do primeiro turno impor a realidade de um governante fragilizado. Lira, fiado na narrativa de vencedor e imponente, porém sem nenhum escudeiro realmente fiel e com data e hora para perder o poder, precisa se proteger atrás de ultimatos implausíveis e afirmar que não pauta nada “para o Governo não ser derrotado”. A verdade é que sua autoconfiança está abalada: gastou todas as fichas que podia (cargos, novas comissões, reajuste de cota, até burlar as regras de escolha de gabinetes e apartamentos funcionais) para se reeleger, mas não tem meios para sustentar seu sempre sedento exército do Centrão. Nos combates violentos da arena política, tudo que sangra demonstra que pode morrer.

Para antever o futuro, a melhor ferramenta segue sendo o passado. O que assombra Arthur é a história de outro rei escocês, Macbeth, destinado a cair com a mesma violência com que derrubou seu antecessor. Aliás, o histórico de ex-Presidentes da Câmara demonstra que este trono é mais do que desconfortável: ele é basicamente letal para carreiras políticas. Contados os últimos vinte anos, a cadeira teve outros dez ocupantes além de Lira: quatro foram eventualmente presos, dois foram retirados da cadeira por cassação ou renúncia, e apenas três conseguiram ser bem-sucedidos no pleito subsequente ao mandato como Presidente.

Na Câmara Alta, o desafiante nesse embate tem um perfil muito distinto. Rodrigo Pacheco não foi criado no meio político convencional. Sua carreira, além de recente, é meteórica: foi alçado a um primeiro mandato de Deputado, no qual presidiu a prestigiosa Comissão de Constituição e Justiça, concorreu ao Senado e foi eleito na imprevisível eleição de 2018. Lá, conquistou a direção da Casa com a benção de Davi Alcolumbre, a quem promete devolver o assento em 2025.

Sua reeleição, entretanto, foi objeto de disputa com a oposição no que também poderia ter significado uma ferida fatal para o Governo. Sem Pacheco, Lula teria o indócil Senado, dominado pelas forças conservadoras, reverberando eventuais “pautas-bomba” advindas da Câmara Baixa, obrigando o Presidente ao desgaste do veto e ao risco de vê-los derrubados. Apesar de seu papel estratégico, Pacheco foi colocado em segundo plano pelo Governo, que acenou com mais e mais concessões para Lira.

Mineiro e paciente, o Presidente do Senado buscou alternativas ao rompimento com sua contraparte da Câmara. Entretanto, a vociferação crescente de Lira sobre as medidas provisórias e a clara disposição em impor a interpretação que concentraria o poder em suas mãos levou a uma reação de Pacheco, orquestrada pelo desafeto alagoano e experiente arquiteto Renan Calheiros. Ao forçar a mão sobre o procedimento de apreciação das MPs, rejeitando alternar a vital indicação de relatores com Pacheco, Lira viu as areias escorrerem entre seus dedos: a tinta de sua caneta secou com uma mera decisão em sede de questão de ordem da Presidência do Congresso Nacional, que coincide ser a mesma pessoa que comanda o Senado. As medidas provisórias retornarão ao rito previsto na Constituição Federal, determinado pelo Supremo Tribunal Federal, e detalhado nos regimentos.

Os efeitos da mudança não serão sentidos de imediato. Outras cenas se desenrolarão até a acomodação final das peças no tabuleiro, com a maior expectativa para a tomada de posição do Governo e dos líderes partidários em cada Casa. É preciso lembrar que, se a espada de Lira está perdendo o fio, ele ainda tem na cintura uma adaga chamada “impeachment”, que atemoriza qualquer Presidente da República. De forma análoga, ele também possui um ponto fraco, que eventualmente vai trazê-lo de volta ao mundo real: seus processos no STF, que podem encerrar de forma brutal sua carreira política. Por fim, quando a névoa dessa batalha baixar, um Quixote talvez enxergue que os gigantes eram, em verdade, moinhos de vento.

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