Ao longo de cinco anos, Karina Miotto viu de perto o sofrimento dos povos originários da floresta e chegou a receber ameaças por escrever reportagens de denúncia
por Sofia Pilagallo em 19/07/24 13:01
Karina Miotto posa ao lado de uma árvore na Amazônia | Foto: Sitah
O início da carreira da jornalista e ativista ambiental Karina Miotto foi marcado por uma crise de identidade. Ela sabia que queria ser jornalista, mas desejava trabalhar com propósito. Precisava de um norte. Então, certo dia, uma experiência xamânica com ayahuasca escancarou o óbvio.
Após cinco anos morando na Amazônia, escrevendo reportagens de denúncia, vendo de perto o sofrimento dos povos originários e enfrentando ameaças, Karina teve um quadro de burnout, e decidiu que era hora de ir embora. Hoje, segue firme no ativismo, mas recalculou a rota. Ela escreveu um livro sobre tudo o que passou — Changemakers, a coragem de transformar o mundo —, a ser lançado neste domingo (21), em São Paulo. Ao MyNews, ela conta sua história:
“Eu estava perdida. Sabia que queria ser jornalista, mas não sabia para quê. Até então, já havia passado pelos principais veículos do país, como as revistas do grupo Abril e o jornal Folha de São Paulo, mas não me identificava com nenhuma pauta que fazia. Desejava trabalhar com propósito. E então, em um ritual xamânico, tive a resposta que tanto buscava.
Sempre fui uma pessoa muito conectada com a natureza. Era óbvio que eu precisava trabalhar com isso, mas, por algum motivo, não conseguia enxergar essa possibilidade. No dia do ritual, tudo ficou muito claro. Foi minha segunda experiência com a ayahuasca.
Eu estava com um grupo de pessoas na Serra do Mar. Depois de tomar o chá, nos foi proposto um exercício: pegar uma cadeira, colocá-la sobre as costas e andar, em silêncio, até o topo de uma montanha. Assim fizemos. Ao longo da caminhada, comecei a sentir uma energia muito forte entrando pelos meus pés. Essa energia me atravessou. Percorreu meu corpo todo, saiu pelo topo da minha cabeça e começou a vir em ondas.
Quando olhei para o lado, vi uma montanha. Ela não era mais só uma montanha, era a Dona Montanha. Enxerguei a entidade ali, o ser. Olhei para as árvores. Comecei a sentir a energia de cada uma, como indivíduos. A brisa parecia me acariciar o rosto. Olhei para uma formiga que carregava uma folha nas costas e comecei a chorar. Pensei, comigo: ‘Qual é a diferença entre nós? Você, aí, carregando essa folha. Eu, carregando essa cadeira.’
Saindo de lá, enviei uma mensagem a todos os repórteres e editores do site O Eco. Ninguém me respondeu. Então descobri que o diretor desse veículo também havia passado por um processo parecido — de ter escrito para vários lugares até entender que o caminho dele era cuidar da natureza por meio do jornalismo. Pensei: ‘É isso’. Mandei uma mensagem. Ele me respondeu que estava com a vida corrida, que iria viajar a São Paulo na quarta-feira seguinte e que depois me escreveria. Não me contentei.
Sem avisar, peguei um táxi e fui encontrá-lo no aeroporto. Em um pedaço de papel, escrevi o nome dele e fiquei lá, esperando. Em determinado momento, ele sai por uma porta, vê a placa e dá risada. Olha para mim e diz: ‘Estou impressionado’. E foi assim que virei repórter freelancer d’O Eco.
No início, continuei morando em São Paulo e escrevendo sobre os problemas que via por aqui. Em paralelo, segui participando de rituais com ayahuasca e me conectando com a espiritualidade. Até que, certo dia, tive outra visão, que novamente mudaria o rumo de tudo.
A visão conectou a minha dor com a dor da Amazônia. Me fez sentir a floresta como um ser. Eu sentia a dor das árvores, dos animais. E então, ouvi novamente, dentro de mim, uma voz: ‘Venha. Você está pronta agora’. Gosto de dizer que aquilo não foi um convite para um chá da tarde. Foi uma convocação. E, ali, eu já não tinha mais nenhuma dúvida.
Cheguei em casa e chorei por uma semana seguida, lembrando da visão do ritual, que ainda estava muito vívida. Avisei meus pais que me mudaria para Manaus dali a seis meses. Tudo fluiu magicamente, como se a espiritualidade estivesse do meu lado.
Certo dia, uma colega do Eco me chamou para ir a uma conferência de imprensa do Greenpeace. Lá, conheci a diretora da organização, que me convidou para ser voluntária na Amazônia, com tudo pago. Avisei meus editores d’O Eco, que logo manifestaram interesse de me ter como correspondente. Aceitei a proposta.
Morei na Amazônia entre 2006 e 2012. Ao todo, foram cinco anos, porque fiz uma pausa de um ano para ir aprender inglês nos Estados Unidos. Durante o tempo trabalhando na floresta, fiz inúmeras reportagens de denúncia. Escrevia sobre o desrespeito aos povos originários e a destruição do ecossistema.
Os problemas ambientais são inúmeros. Não é só o desmatamento, como muitas pessoas pensam. É retirada ilegal de madeira, barragem em rio, invasão de terra indígena. Fora o problema da violência. Eu mesma já cheguei a ser ameaçada.
Com o tempo, o sentimento de impotência diante de tanto sofrimento foi me consumindo, e comecei a adoecer. Ao mesmo tempo em que escrevia reportagens de denúncia para O Eco, também trabalhava em uma ONG para impedir a construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, que afetaria comunidades ribeirinhas da região.
A gota d’água do meu esgotamento emocional se deu no dia em que entrei em uma comunidade e uma senhora, bastante abalada, veio falar comigo. Com lágrimas nos olhos, ela disse: ‘Karina, por favor, nos ajude a salvar a nossa terra’. E eu sabia que a terra dela seria alagada. Ver aquela cena me destruiu.
Demorei a entender o que estava acontecendo comigo. Naquela época, não se falava em burnout, ainda mais em ativistas. Eu soube que tinha algo de muito errado comigo quando percebi que já não estava mais feliz. Não conseguia sentir alegria ou entusiasmo. Meu mundo ficou preto e branco. Então decidi que era a hora de ir embora.
Saí da Amazônia e fui morar no Rio de Janeiro. Lá, fiz cursos e aprendi sobre Ecologia Profunda. Percebi que, para salvar a Amazônia, eu precisava despertar a conexão emocional das pessoas com a floresta. Então criei o Reconexão Amazônia, um projeto pioneiro para promover o despertar emocional das pessoas em relação à floresta. Dali em diante, eu seria como o beija-flor da fábula, que joga uma gotinha de água na floresta pegando fogo. Faria a minha parte, à minha maneira.
Em 2019, uma paixão avassaladora me fez sair do Brasil para ir morar na Austrália. O relacionamento não deu certo, mas continuei morando lá mesmo assim. Ao longo de cinco anos vivendo no país, escrevi um livro sobre tudo o que passei. No fim, acho que eu precisava desse distanciamento.
Ainda na Amazônia, e depois do burnout, participei de vários rituais com ayahuasca, mas nunca obtive uma resposta. Nunca entendi o por quê de ter passado por tudo isso. Pensando bem, foi melhor assim. Se eu tivesse entendido tudo logo de cara, teria tomado outros caminhos. E esse livro provavelmente não existiria.”
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