Proposta pretende equiparar qualquer aborto realizado no Brasil após 22 semanas de gravidez ao crime de homicídio
por Sofia Pilagallo em 13/06/24 13:21
Slogan 'Criança não é mãe' viralizou na internet nos últimos dias | Foto: Pixabay
O slogan “Criança não é mãe” viralizou na internet nos últimos dias e deu nome a uma campanha encabeçada por dezenas de organizações da sociedade civil. Isso porque pode ser votado nos próximos dias o Projeto de Lei 1904/24, que propõe uma alteração penal sobre o aborto. O procedimento é hoje permitido no Brasil em três situações: quando a gravidez é fruto de um estupro, representa risco à vida da mulher ou em casos de anencefalia fetal (malformação que resulta na ausência parcial do cérebro e da calota craniana do feto). A lei não impõe um limite de idade gestacional para nenhum dos casos. Mas o PL, cujo regime de urgência foi aprovado na noite de segunda-feira (12), quer mudar isso.
A proposta, apresentada pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e outros 32 parlamentares, pretende equiparar qualquer aborto realizado no Brasil após 22 semanas de gravidez ao crime de homicídio. A regra valeria inclusive para os casos em que o procedimento é autorizado pela legislação brasileira, como na gestação decorrente de estupro.
As crianças, sobretudo as mais vulneráveis socialmente, seriam as mais afetadas caso o PL fosse aprovado. Elas representam boa parte de quem busca os serviços de aborto com uma gravidez já avançada, uma vez que, em casos de abuso sexual, o tempo para identificar a gestação costuma ser maior.
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“A criança é afetada principalmente pela incapacidade de entender que ela sofreu um abuso sexual e as consequências disso”, afirma a médica ginecologista Rhaisa Cunha. “A grande maioria desses abusos acontece no meio familiar, então há uma dificuldade, seja por medo ou vergonha, em comunicar o ocorrido a um responsável de confiança. Muitas vezes, a menina já chega no hospital com uma dor abdominal ou um sangramento, o que indica uma gravidez mais avançada, geralmente acima de 22 semanas.”
Além das crianças, mulheres em qualquer situação de vulnerabilidade, seja ela social ou de outra ordem, também serão as principais afetadas caso o PL seja aprovado. Isso inclui, por exemplo, mulheres que apresentem alguma deficiência mental ou física. Mas, em alguma medida, a proposta colocaria todas as mulheres em risco.
Ainda que o aborto seja permitido por lei em três situações, muitas mulheres enfrentam dificuldade para encontrar médicos que realizem o procedimento, mesmo nas bases legais. Em alguns casos, a demora pode ultrapassar 22 semanas. Para a advogada Gabriela Souza, fundadora do escritório Gabriela Souza Advocacia para Mulheres, o PL é inconstitucional.
“Ele viola não só a Constituição, como vários tratados internacionais, a exemplo da Convenção de Belém do Pará e da CEDAL (Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher), que garantem proteção a mulheres vítimas de abuso sexual”, explica. “Há também uma desproporção preocupante com relação às penalidades para aborto e estupro, nesse caso. Enquanto a vítima poderia passar até 20 anos na cadeia, o abusador seria condenado a no máximo 10 anos de reclusão.”
O Brasil caminha na contramão de seus vizinhos da América Latina. Dos 13 países do continente, 6 descriminalizaram ou legalizaram o procedimento, sendo Argentina, Chile e Colômbia os mais recentes. Argentina, Uruguai, Guiana e Guiana Francesa estabeleceram leis que orientam e asseguram a interrupção da gravidez. Já Chile e Colômbia não classificam o aborto como crime.
Para Gabriela, esse retrocesso é reflexo de um Congresso extremamente conservador, composto em sua maioria por homens que desconhecem a realidade dessas meninas e mulheres. Ela ressalta que o PL “traz uma ideia de dominação sobre os corpos das mulheres” e “põe em xeque direitos conquistados por elas há décadas”.
Saúde pública
No Brasil, apesar de o aborto ser permitido por lei somente em três situações, isso não significa que ele não seja realizado fora dessas circunstâncias. Na realidade, o procedimento é feito com muita frequência, mas sem nenhuma segurança. Segundo dados da ONG Gênero e Número, entre 2012 e 2022, 483 mulheres morreram por aborto em hospitais da rede pública de saúde do Brasil. A maior parte dessas mortes ocorreu por “falha na tentativa de aborto”. Nesses casos, a cada 28 internações, uma paciente veio a óbito.
“A criminalização do aborto faz com que mulheres, em especial as mais vulneráveis socialmente — pobres e pretas, vindas de regiões periféricas das grandes cidades ou dos rincões do país — procurem tratamentos muito arriscados realizados por pessoas não capacitadas”, diz a ginecologista Rhaisa Cunha. “Com isso, muitas mulheres sofrem consequências graves, como infecções generalizadas, perfurações uterinas, hemorragias e até mesmo a perda do útero. Isso quando não morrem. Então, quando se tem uma quantidade significativa de mulheres necessitando de atendimento e internação por conta de uma falha na tentativa de aborto, isso é sem dúvida uma pauta de saúde pública.”
Rhaisa ressalta que o termo “saúde pública” diz respeito também a medidas que deveriam ser pensadas pelo Estado para ensinar crianças e adolescentes sobre contracepção eficaz e, principalmente, capacitá-las para identificar e denunciar um abuso sexual. O Brasil sofre com a falta de políticas públicas voltadas para esses fins, e os números mostram isso.
De acordo com dados do SUS (Sistema Único de Saúde), o ano de 2022 atingiu recorde histórico em número de estupros e estupros de vulneráveis, com 74.930 vítimas. Destas, 6 em cada 10 são crianças com idade entre 0 e 13 anos. Em 10 anos (2013-2022), a média de meninas menores de 14 anos que deram à luz foi de 21.905,5 por ano. Isso significa que, a cada ano, mais de 20 mil meninas deixaram para trás a infância ou a adolescência para viverem a maternidade.
Entenda o projeto de lei que pode colocar meninas abusadas no banco dos réus:
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